segunda-feira, 19 de outubro de 2009

São Paulo, domingo, 18 de outubro de 2009


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+(s)ociedade

Ratos de laboratório
Três livros dissecam as fraudes em experimentos científicos e como universidades e centros de pesquisas tentam acobertá-las


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Isaac Newton já foi acusado de errar cálculos em seus trabalhos sobre luz e óptica
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CLIVE COOKSON

O biólogo sul-core- ano Woo-suk Hwang, especialista em células-tronco, fez manchetes em 2005 por ser a primeira pessoa a clonar embriões humanos. No ano seguinte seu nome voltou a frequentar os jornais, dessa vez porque se descobriu que seus resultados eram falsos.
A fraude em pesquisas é um dos segredos culposos do mundo científico. Acadêmicos e administradores costumam ignorar os erros de conduta cometidos em pesquisas, a não ser que um caso de desonestidade seja tão gritante que se torne obrigatório tomar uma atitude a respeito. Eles gostam de afirmar que a fraude é uma nódoa rara a macular o rosto aberto e confiável da ciência.
Entretanto, os poucos acadêmicos seniores que estudam os erros de conduta de cientistas dizem que os responsáveis pelas políticas do setor subestimam gravemente a prevalência desse mal.
Michael Farthing, vice-reitor da Universidade de Sussex [Reino Unido], estima que as universidades britânicas orientadas às pesquisas apresentam, em média, um caso sério de fraude por ano, totalizando anualmente cerca de 40 fraudes importantes apenas nesse país.
Nicholas Steneck, da Universidade de Michigan e cronista americano destacado dos erros de conduta científicos, acredita que entre 0,1% e 1% de todos os pesquisadores -ou seja, milhares de pessoas em todo o mundo- cometem "práticas seriamente erradas". Só uma minúscula parcela dos casos chega ao conhecimento da mídia; a maioria nunca chega a ser detectada ou relatada, e as instituições costumam tratar sem alarde os poucos casos dos quais tomam conhecimento. Três livros muito diferentes agora procuram trazer os erros de conduta científica para o centro das atenções.
Woo-suk Hwang ainda é o fraudador científico mais famoso. Mas o mais prejudicial, em termos do número de descobertas que falsificou e dos colegas respeitados que induziu ao engano, foi Jan Hendrik Schön. Ele foi visto como jovem nome promissor da física até que seu engodo espantoso foi descoberto, em 2002. Schön prometeu revolucionar a eletrônica. Especializou-se em "persuadir" materiais orgânicos -plásticos- a demonstrar propriedades antes desconhecidas, incluindo a supercondutividade e a emissão de luz laser.
Cientistas de uma dúzia dos maiores laboratórios de física desperdiçaram anos de esforços e milhões de dólares tentando reproduzir e explicar as descobertas feitas por Schön, ao longo de quatro anos, na mundialmente famosa Bell Labs, em Nova Jersey [EUA], e que foram publicadas nos periódicos de primeira linha "Science" e "Nature".

Busca transatlântica
Agora, a jornalista Eugenie Samuel Reich, especializada em investigações de fraudes, montou a história de Schön em "Plastic Fantastic" [ed. Palgrave Macmillan, 200 págs., 15,99, R$ 44], um trabalho maravilhoso de redação forense.
Schön tinha 31 anos quando a Bell Labs o demitiu, em 2002, após um relatório externo ter detalhado sua fraude. Fugiu para a Europa, e Reich o rastreou e falou com ele ao telefone, mas Schön se negou a explicar suas ações ou motivações.
Por isso, o livro é baseado na investigação das publicações de Schön e em entrevistas com 125 colegas e cientistas que interagiram com ele. Olhando em retrospectiva, é espantoso que todos tivessem confiado por tanto tempo no jovem e simpático alemão. As pessoas se culparam quando não conseguiram reproduzir os experimentos dele e aceitaram desculpas educadas que apresentava para não lhes mostrar seus materiais e equipamentos.
Mas não há nada de novo nas acusações de erro de conduta. Historiadores já acusaram Isaac Newton [1642-1727], fundador da física moderna, de errar cálculos em seus trabalhos sobre luz e óptica.
O espectro das fraudes e dos erros de conduta pode abranger desde a falsificação em grande escala de experimentos, como nos casos de Hwang e Schön, até a modificação mais ligeira de algo que o pesquisador vê como leituras falhas em um instrumento.
Um dos projetos mais famosos na história da ciência foram os experimentos de Gregor Mendel, no século 19, com a reprodução de ervilhas. Mas seu trabalho vive há anos à sombra de acusações de que seus resultados teriam sido estatisticamente "bons demais para serem verdadeiros" -ou seja, de que deve ter adulterado dados para os adequar a sua teoria emergente do que hoje chamamos de genes dominantes e recessivos. O biólogo e estatístico britânico R.A. Fisher sugeriu que os dados deveriam ter sido falsificados -embora, provavelmente, por um assistente, não pelo próprio grande monge.
A probabilidade de que dados reais se encaixassem nas proporções esperadas por Mendel entre características dominantes e recessivas teria sido de sete em 100 mil, calculou Fisher. Cientistas e historiadores discutem há anos a validade ou não da conclusão de Fisher. Em "Ending the Mendel-Fisher Controversy" [Encerrando a Controvérsia Mendel-Fisher, Universidade de Pittsburgh, 330 págs., US$ 27,95, R$ 48], cinco especialistas, encabeçados por Allan Franklin (Universidade de Colorado), fazem a defesa de Mendel.
Absolvem Mendel e seus assistentes da acusação de fraude proposital -embora ele possa ter deixado de levar em conta observações que teriam tornado suas descobertas menos nítidas e contundentes.

Ficção
Já Allegra Goodman teve pleno acesso a Cliff Bannaker quando escreveu sobre sua alegada fraude no Instituto Philpott, em Cambridge, Massachusetts -porque Bannaker é fruto da imaginação dela. "Intuition" [Intuição, Atlantic Books, 344 págs., 12,99, R$ 36], o terceiro romance da autora, é um brilhante relato fictício do que pode levar um cientista a manipular dados.
Bannaker não é um fraudador, como Schön ou Hwang; é mais um selecionador de dados ou alguém que usa dados imprecisos, como Mendel. O que o move, além do desejo de honra e glória científicas, é uma forte convicção intuitiva de que sua cepa de vírus respiratório sincicial é capaz de converter células cancerosas em células normais.
Ele persiste em seus experimentos, apesar de receber ordens da direção do laboratório para suspender o trabalho. Com o tempo, começa a registrar regressões espetaculares de tumores em animais. A intuição e o ciúme motivam a ação de sua acusadora principal, Robin Decker.
Este é um romance, é bom recordar, de modo que Decker está longe de ser uma parte imparcial -é uma colega pesquisadora pós-doutoranda cujo trabalho não está indo a lugar nenhum, e é também a namorada a quem Bannaker não anda prestando a devida atenção. Goodman cria uma obra-prima de ambiguidade, mas o que apresenta muito bem é o fato nu e cru acerca da ciência que muitos de nós preferimos esquecer: que cada "prova" e cada "verdade" nos são trazidas por humanos, que estão muito longe de serem infalíveis.

Fraudadores amigáveis
As motivações variam, mas uma característica de muitos fraudadores científicos é sua certeza de que estão com a razão. Mas o caso de Schön parece ter sido diferente. Não era um grande pensador independente, motivado por sua crença em suas próprias ideias brilhantes.
Como Reich demonstra, ele pegou as melhores ideias aventadas por outros pesquisadores em seu campo e, então, aparentemente, as colocou em prática. Se alguém tecia especulações sobre como criar um supercondutor orgânico ou um laser de plástico, Schön colocava a ideia em prática.
"Assim, não surpreende que os cientistas tenham ficado tão maravilhados com os artigos dele", escreve a jornalista. "Schön convertera as melhores ideias deles em dados falsificados que não podiam deixar de ser atraentes. Isso ajuda a explicar a razão pela qual as afirmações dele foram tão bem recebidas e também por que elas tiveram algo em comum com resultados posteriormente obtidos de fato por outros cientistas."
Os três livros sugerem que os fraudadores científicos bem-sucedidos tendem a ser pessoas simpáticas e amigáveis, como os fraudadores financeiros que procuram arrancar dinheiro de suas vítimas. Evitam fazer inimigos que possam procurar evidências de erros de conduta e então os expor.
Schön continuou por tanto tempo por ser alguém que se mostrava ansioso por agradar as pessoas; Bannaker teria podido evitar o sofrimento a que foi exposto se tivesse tratado melhor sua namorada. Os cientistas gostam de falar da natureza "autocorretora" das pesquisas científicas -o fato de que experimentos falhos serão corrigidos por trabalhos futuros. Mas Reich argumenta que a autocorreção quase falhou no caso de Schön.
Ele acabou sendo exposto não pelas dezenas de pessoas que tentaram reproduzir seu trabalho e levá-lo adiante, mas por dois físicos que observaram que Schön usara dados idênticos em artigos sobre dois experimentos diferentes, publicados respectivamente pela "Nature" e pela "Science".
Para Farthing, mais preocupante ainda que os casos sérios de fraude é "a corrente subjacente de modificações ligeiras de resultados, algo que ocorre com muito mais frequência e que vem perturbando a literatura científica". As novas tecnologias ampliam as possibilidades de modificações, por exemplo com a manipulação digital sutil de imagens.
Universidades e instituições de pesquisa vêm há 20 anos intensificando a contragosto seus esforços para fazer frente ao problema. Mas os mecanismos para detectar, relatar, investigar e resolver erros de conduta em pesquisas científicas ainda são insuficientes.
Deveria ser possível para cientistas procurar mais ativamente por sinais de desonestidade entre seus colegas -por exemplo, quando examinam artigos no processo de revisão por pares, que antecede a publicação-, mas sem destruir a confiança entre pesquisadores, da qual depende a condução eficiente da ciência.



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A íntegra deste texto saiu no "Financial Times". Tradução de Clara Allain .

fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1810200916.htm

domingo, 11 de outubro de 2009

O Pensamento e o Movente - Primeira Parte

Diz-nos Zenão de Eléia. Caso um corpo queira se deslocar de A até B deve, antes disso, chegar até metade deste mesmo trajeto. Mas, para chegar até esta metade, deve - igualmente - percorrer metade desta metade. E, antes de se deslocar este quarto da reta original, tem de andar metade-da-metade-da-metade. E assim até o infinito! Chegar ao final de uma reta, então, é percorrer uma sequência infinita de pontos. Logo, a mudança mostra-se contraditória e impossível, visto que - logicamente - não se pode chegar ao fim do infinito. Numa corrida entre o célere Aquiles e uma tartaruga, exemplificando, na qual Aquiles dá alguns passos de vantagem ao quelônio, o animal sempre venceria pois, para alcançar o ponto no qual se encontra o cascudo réptil, o herói deveria atingir um ponto anterior ao desejado e, antes deste ponto, um outro ponto e assim em diante.
Os sistemas filosóficos, para Bergson, de tão abstratos e imprecisos que são, não se ajustam à nossa realidade. Pensemos, novamente, no móvel que quer sair de A e chegar em B. Lembrem-se da física colegial. A duração do deslocamento se mede pela trajetória do movente, num tempo dado e linear. Este tempo, entretanto, não se relaciona à duração mesma, mas a momentos, a paradas virtuais do tempo. Quando construímos matemáticas e dizemos que um evento X se dará ao final dum tempo t, dizemos - com isto - que teremos contado até o evento um número t de simultaneidades duma mesma categoria.
A consciência, neste esquema, não passa pela "fadiga da espera". Um caso simples: antes que esta quinta-feira última chegasse ao fim, eu comecei a planejar o dia de sexta: iria à universidade, pela manhã, participar dum coletivo de estudos ao qual faço parte; logo após, iria almoçar num restaurante nas proximidades do local; ao término da refeição, eu iria ao mercado municipal produzir dados para uma pesquisa etnográfica; e, depois de uma ou duas horas no mercado, eu voltaria à universidade para assistir um debate entre dois professores. Meu dia estava totalmente delineado e, de fato, aconteceram todas estas coisas que pré-vi e na mesmíssima ordem que as desenhei. No entanto, eu tratei o tempo como se ele já tivesse passado. Defini seus contornos exteriores, mas não posso definir suas matizes interiores. Extrai do mundo o suscetível de repetição e cálculo, ou seja, aquilo que não dura. Essa duração, escamoteada pela ciência, difícil de ser colocada em linguagem, é a nossa vida mesma!
Zenão, a metafísica, a filosofia, a ciência, a linguagem. Todos estudam o tempo e o espaço como coisas de mesma natureza. Troca-se "justaposição" por "sucessão" e está tudo resolvido. Chamamos o tempo, mas é o espaço que sempre responde. Somos tentados a perguntar, então. Se a inteligência descarta a temporalidade real não é porque o nosso entendimento sobre as coisas assim o exige? A inteligência retém posições. Um ponto. Outro ponto. Um terceiro ponto. O que se passa no "entre", no interstício, é ignorado.
A inteligência não liga muito para a mudança. E, caso reclamemos da falta de mobilidade da linguagem espacial da inteligência, esta começa a figurar outros pontos, estrangulando-os em intervalos cada vez menores rumo ao infinitesimal. Coisa natural, visto que nossa ação intelectiva só se dá sobre estes pontos. O que a inteligência tem por movimento é a simples sucessão simultânea de duas paradas virtuais no tempo, vendo o movimento como uma sucessão de posições e o tempo como uma sucessão de instantes. Tal qual um cinematógrafo é o nosso entendimento, um sucedâneo que recompõe artificialmente a duração e a mudança. Mas a duração e a mudança mesmas são uma outra coisa. Não o suceder, mas o fluir. O real não são os estados ao longo da mudança, mas a continuidade da transição. O real é a mudança, progressiva, ininterrupta, indivisível, substancial, que adere em si mesma numa duração que se alonga sem fim.
Quando Zenão assinala as "contradições do movimento e da mudança" ele fala dum movimento e duma mudança como nossa inteligência os representam. Está inaugurada, aí, a metafísica, mas uma metafísica que é simples encadeamento artificial de proposições, um construto hipotético que ultrapassa a experiência móvel e plena. Os "grandes problemas" que a metafísica colocou, para Bergson, não passam de "problemas mal colocados", pois não correspondem ao movimento, à mudança ou ao tempo, mas a pacotes linguístico-conceituais que tomamos por realidade. Torna-se necessária, aqui, uma metafísica que respeite a experiência, a duração. A metafísica de Zenão (e de todos os filósofos e cientistas após ele) nega a coisa mesma que define o tempo: o fluxo da duração. Criação contínua, novidade, imprevisibilidade.
Bergson coloca num mesmo plano tanto o determinista quanto o crente no livre-arbítrio. Este, para Bergson, reduz a sua liberdade à simples escolha de duas os mais opções que se lhe afiguram, como "possibilidades" ansiosas para se "realizar". Admitem, assim, que a estrada está igualmente dada. Não fazem idéia de que a ação nova, inteiramente não pré-existente a si, nem mesmo como possibilidade pura, é que é o ato livre.
A vida interior é como um copo de água açucarada, que faz necessária a espera da dissolução do açúcar na água. Ou como uma melodia, que não pode ter sua duração diminuída sem ser alterada. Na evolução da natureza, da vida, da consciência há constante criatividade. Criação perpétua não de realidades, mas de possibilidades. Quando o músico compõe a sua canção, podemos dizer que a sua obra era possível antes de ser real, se com isto entendemos que não existiam obstáculos a uma tal realização. Mas Bergson cavouca um pouco mais e afirma: no momento em que o músico possui uma idéia da canção que fará, a canção já está pronta!
Nossa lógica de pensamento é retrospectiva. Tende sempre a lançar para o passado, como possibilidade, as realidades atuais. Será por um feliz acaso dizermos, justamente, o que interessará ao historiador do futuro sobre o presente de outrora (seu passado, nosso hoje). Quando o historiador do futuro considerar o nosso presente - e quando nós consideramos nosso passado - procuramos, aí, a explicação de nossos presentes, daquilo que o presente contém de novidade e de diferença em relação a este passado. Desta novidade futura, visto que é criação, não podemos ter idéia alguma. As possibilidades passadas que enxergamos de uma coisa qualquer são miragens da nossa realidade.
Ao encerrar esta primeira parte, Bergson deixa claro que não se trata de renunciar à lógica representativa da inteligência - de natureza espacial e de utilidade social - mas fala da necessidade em torná-la flexível e adaptável à duração, a uma evolução que não é desenvolvimento, mas criação. Kant coloca a "coisa em si" como aquilo que escapa à consciência, visto que, para atingi-la, necessitaríamos duma capacidade intuitiva que, segundo o mesmo, não possuímos. Bergson refuta, dizendo que a inteligência adquiriu hábitos da prática que formam, reformam, deformam a realidade. Organizam-na em arranjos que vêm de nós. Se nós os construímos, podemos deles nos livrar. E, assim, entramos em contato direto com o real. O mal da filosofia, como foi colocado inicialmente, é a sua imprecisão. É a sua lida com objetos de pensamento que não são talhados de acordo com as coisas mesmas. A proposta: afastar os conceitos já prontos, nos proporcionando uma visão direta do real e a construir conceitos novos, levando em consideração as articulações do real e forjados na exata medida de nosso objeto, estudando-os neles mesmos e não na abstração generalizada do espaço...
BERGSON, Henri; O pensamento e o movente - primeira parte; In Bergson: Coleção os Pensadores; Trad. Franklin Leopoldo e Silva; pp.147-166.