quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Diário de Campo - 04.09.09

Após um ano morando à cerca de 500 metros da feira do Castelo Branco, fui a ela pela segunda vez. Engraçado como passei tantas vezes ao lado de, mas não por ela, e a sensação que esta diferente experiência causa. A rua pela qual costumo cortar caminho quando volto para casa de alguns lugares, não parece a mesma, some em meio a tantas imagens e sons.
Não que eu fosse totalmente “virgem” desse espaço repleto, ou melhor, atropelado, de gente, frutas, verduras, carnes, sensações. Costumava ir a feira com minha mãe há alguns anos quando morava em outro bairro, e embora não gostasse de acordar cedo aos sábados ia contente carregar as sacolas (aquele mingau que fazia de meu café da manhã, o iogurte de ameixa que levava para casa e o modo como os feirantes atendiam seus clientes sempre me chamavam atenção).
Bom, nesta minha segunda experiência ainda me sinto meio deslocado, não sei, tenho a impressão de que sou notado pelos olhares como um estranho... talvez seja só uma impressão.
Logo que chego, enquanto espero João - andar com ele parece me dá mais conforto, já que ele já não é um “estranho no ninho” – dou de cara com o carro da Emsurb no inicio da feira. Em seguida vejo um fiscal discutindo com um feirante enquanto outro “confisca” sua cesta de abacaxis. Como já fiquei sabendo não é permitido colocar produtos naquele local – no chão do início da feira.
Observo a cena: o mesmo feirante que teve seus abacaxis “confiscados” retira suas outras mercadorias para não perdê-las também, um vendedor de morangos diz que se eles vierem tomar a sua, ele joga no chão e pisa, mas não deixa eles levarem, o rapaz que vende Cd e Dvd aguarda os fiscais irem embora para abrir o porta malas e expor sua mercadoria enquanto seu som toca.
Enfim, observo tudo – que parece já pertencer ao cotidiano da feira – mas ainda meio distanciado. Ensaio ir conversar com o feirante do abacaxi mas acabo não indo, fico esperando João chegar.
João chega e vamos caminhar pela feira, alguns olhares de reconhecimento e acenos parecem dirigir-se para nós. Seu Ulisses, que eu já tinha conhecido em outra oportunidade, diz que as coisas “vão indo”. Fala da impossibilidade de atender algumas recomendações do Estado, pois o mesmo não dá condições para isso. "Como colocar freezer aqui, se não tem energia? Olha os “gatos” E estes banheiros? Ficam longe, sujos, são usados para o consumo de drogas."
Passamos pela banca do presidente da Associação dos Feirantes, mas o mesmo não se encontrava lá. João, então, resolve perguntar por Seu Antônio. Segundo sua irmã, Eleonora, ele estava em uma reunião e ela, que trabalha na Associação visitando as feiras e cadastrando o pessoal, estava substituindo-o nesse dia.
Ao falarmos da nossa pesquisa ela se mostrou interessada, a fim de conversar. Enquanto conversávamos algo interessante aconteceu: a pessoa que recebe o pagamento do aluguel das bancas de metal (os feirantes até então pagavam seis reais pelo dia) passa e para surpresa de Dona Eleonora a taxa tinha aumentado para sete reais, sem ninguém ter sido avisado. Ela diz que não irá pagar e liga para seu Antônio para saber se ele havia sido informado do aumento. Ele também não sabia e reafirma que não é para ninguém pagar.
Alguns feirantes que estavam próximos, depois de ela ter dito para eles não pagarem, falaram, preocupados, da possibilidade de serem deixados sem banca na outra semana. Ela continuou afirmando para não pagarem, que deixassem sem banca.
Por fim, depois de algumas manifestações de preocupação de serem deixados sem banca, ela concluiu: “Quem é associado não vai pagar, quem não for que pague!”.
Após esse ocorrido, nos despedimos dela e voltamos a caminhar pela feira em direção a saída. Olhei para João mas não disse nada, e ele com um balançar de cabeça e um sorriso confirmou que algo interessante perpassava aquela fala.
Fomos embora então, mas com a impressão de que, como disse João, a associação é dos associados.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Foucault revoluciona a História (Paul Veyne) parte I

Antes de começar digo que este texto do Paul Veyne é um achado. Não no sentido em que foi perdido e, devido ao acaso ou mediante busca árdua, aparece novamente, visto que é então um texto considerado célebre quando se fala em comentário sobre Michel Foucault. No entanto, é justamente aí que se inscreve como um achado, uma raridade: em meio à insegurança que circula pela leitura de comentadores, estas linhas trazem novo ar à leitura dos textos foucaultianos. Explico, como disse o próprio Veyne, o texto tenciona apresentar a utilidade prática do método de Foucault e o faz belamente através de mostras de seu funcionamento, ou seja, para além das linhas carrancudas - redundantes nos ditos sobre a obra do filósofo-historiador -, Paul Veyne trata sim do método, mas o faz passar antes pela experiência. Ele diz então que são dois os seus deveres (p. 151): 1. falar antes como historiador que como filósofo; 2. falar mediante exemplos.

O exemplo do qual extrai raciocínios, nem ao menos é seu. Trata-se da explicação da suspensão dos combates de gladiadores trabalhada por Georges Ville em livro póstumo sobre a gladiatura romana. Para iniciar, uma intuição: “os fatos humanos são raros, não estão instalados na plenitude da razão, há um vazio em torno deles para outros fatos que nosso saber nem imagina” (p.151). Esta é a “intuição inicial de Foucault”, “não é a estrutura, nem o corte, nem o discurso”, é a raridade. Esta indicação possibilita uma leitura diferenciada dos acontecimentos como veremos seguindo a lógica do fim da gladiatura.

Uma resposta fácil se coloca frente à pergunta sobre o porquê da suspensão pouco a pouco dos combates durante o século IV de nossa era, quando imperavam reis cristãos: “essas atrocidades cessaram devido ao cristianismo” (p.152). Pois bem, Paul Veyne diz que os cristãos só reprovavam a gladiatura dentro dum quadro geral de condenação a todos os espetáculos. Dentre estes, pior era o teatro! Suas indecências e prazeres levavam o público a cometer pecados da carne, enquanto que o sangue que corria dos gladiadores conhecia um fim em si mesmo. Morre aqui esta resposta. Então será a resposta encontrada no humanitarismo, condição amplamente humana? “Também não é isso; o humanitarismo só existe em uma pequena minoria de pessoas com nervos fracos” (p.152); este é facilmente confundido com o sentimento de prudência onde se teme principalmente o risco da crueldade habitar as populações e levá-las a violência. Não é exatamente o mesmo que lamentar a vida humana dos gladiadores.

Na grande maioria da população, os gladiadores provocavam sentimentos ambivalentes de atração e repulsa, pois por um lado exercia o fascínio da morte, o gosto em ver sofrer, por outro havia a angustia de ver a paz pública agredida em seu seio por assassínios legais de não inimigos nem criminosos. Em Roma, ao contrário de muitas civilizações onde o medo político prevaleceu, a atração que as vedetes de arena exercia se sobrepôs e então instituiu-se a gladiatura. “A mistura de horror e de atração acabou por levar à solução de injuriar esses mesmos gladiadores que eram acamados como vedetes e de considerá-los impuros como o sangue, o esperma e os cadáveres” (p.153). Esta solução permitia que os combates fossem assistidos na mais completa paz de consciência. Porém o que espanta é que “essa inocência na atrocidade era legítima, e até legal, e até mesmo organizada pelos poderes públicos (...) o horror está em que esse horror público não é encoberto por nenhum pretexto” (p.153).

Se não foi causado pelo cristianismo, nem pelo humanitarismo, nem pela sabedoria pagã, o que então causou esta mudança de sensibilidade e mentalidade, onde o horror passa a dominar a situação frente à atração provocando, assim, a suspensão definitiva das gladiaturas? Solução provisória: “é no poder político que se oculta a explicação para a gladiatura e para sua supressão, e não no humanitarismo ou na religião. Entretanto, é preciso buscá-la na parte imersa do iceberg ‘político’, pois foi lá que algo mudou, que tornou inimaginável a gladiatura em Bizâncio ou na Idade Média. É preciso desviar-se de ‘a’ política, para distinguir uma forma rara, um bibelô político de época cujos arabescos inesperados constituem a chave do enigma. Dito de outra maneira, é preciso desviar os olhos dos objetos naturais para perceber uma certa prática, muito bem datada, que os objetivou sob um aspecto datado como ela; pois é por isso que existe o que chamei acima, usando uma expressão popular, de ‘parte oculta do iceberg’: porque esquecemos a prática para não mais ver senão os objetos que a reificam aos nossos olhos” (p.154).

Seguindo esta proposta inversiva, somos tentados a pensar na relação travada entre dois grandes objetos naturais a-históricos: os governantes e os governados. “Em vez de acreditar que existe uma coisa chamada ‘os governantes’ relativamente à qual os governados se comportam, consideremos que os ‘governados’ podem ser tratados seguindo práticas tão diferentes, de acordo com as épocas, que os ditos governados não têm senão o nome em comum” (p.154). É este o exercício de funcionamento do método foucaultiano o qual Paul Veyne propõe ao tratar seus exemplos. Neste caso os nomes governantes e governados são antes abstrações que em nada expressam as práticas singulares de época. Em um momento estes nomes podem estar relacionados tanto a práticas disciplinares que despolitizam os corpos e prescreve-lhes o que fazer; em outro pode representar a relação onde certas coisas são proibidas, mas sem seus limites interiores podem movimentar se livremente; em mais outro pode expressar o poder do soberano de explorar a fauna humana habitante de seu principado. Deste modo percebe-se que os nomes são insuficientes, ou melhor, aparam as arestas das práticas singulares para que estas caibam dentro de seus padrões de suficiência.

Outras tantas práticas são possíveis quando deixados de lado os nomes-suficientes e observamos o que as pessoas realmente fazem. Este exercício coloca em termos de descontinuidades os acontecimentos humanos, situa-os no vazio, limitando-os. Os objetos naturais “governados” e “governantes” não resistem a tal análise, pois pretendem colocar-se fora da história, quando tudo se relaciona com tudo e tudo é histórico. As diferentes práticas objetivam, ou seja, produzem “objetos naturais” que em uma dada época é população, em outra uma fauna e em outra uma horda; aqui os objetos naturais através da história perdem totalmente o sentido prático e torna-se uma operação racional teórica. Então uma revolução científica se efetiva onde as aparências são invertidas para que apareçam claramente as prática raras, os bibelôs de época, tal qual uma roupa que do lado avesso mostra suas costuras.

Então, novamente desloca-se a questão. A pergunta feita inscreve-se em um como isto aconteceu? Quais práticas produziram objetos históricos que antes ansiavam pelo sangue das vedetes de arena e quais outras práticas tão divergentes o repudiava com veemência? Imagina que em uma dada situação, as pessoas fossem realmente como animais, como um rebanho a ser guiado em sua marcha histórica, o pastor não é o seu dono, porém tem o direito de tosquiá-las para seu proveito; cabe a ele garantir a sobrevivência enquanto rebanho frente aos perigos, fraquezas e covardias dos maus instintos animais, à pauladas se necessário. A política do pastor “limita-se a conservar o rebanho em sua marcha histórica; quanto ao resto, sabemos muito bem que os animais são animais. Tentamos não abandonar pelo caminho muitos animais famintos, pois isso desfalcaria o rebanho: se preciso, lhes damos de comer. Damo-lhes, também, o Circo e os gladiadores, de que tanto gostam, pois os animais não são nem morais, nem imorais (...) Num único ponto, que não é a moralidade dos animais, somos impiedosos: em sua energia. Não queremos que o rebanho enfraqueça, pois seria a sua perda e a nossa” (p.156). Este povo-rebanho são os romanos e os pastores são os senadores, assim, a gladiatura funciona como uma “escola para enrijecer os telespectadores”; alguns não a suportam, fraquejam, mas instintivamente os pastores simpatizam com os animais brutos, duros e insensíveis, pois é através deles que o rebanho sobrevive.

Mas “se em vez de carneiros, nos tivessem confiado crianças, se nossa prática tivesse objetivado um povo-criança e nos tivesse objetivado, nós próprios, como reis paternais, nosso comportamento teria sido inteiramente outro: teríamos levado em consideração esse pobre povo e dado razão à medrosa recusa à gladiatura” (p.156). Aqui, os fracos e frágeis ganham a simpatia do rei-pai, afinal as crianças precisam de cuidados e a gladiatura, visto então como assassinato gratuito, foi suspendida, pois é o que de mais grave existia. Mas então por que a prática “guia de rebanho” foi substituída pela prática “mimar crianças”? “Uma dessas razões, no caso, foi que no século IV, em que se tornaram cristãos, os imperadores deixaram, também, de governar por meio da classe senatorial (...) Livre do Senado, administrando por meio dum corpo de simples funcionários, o imperador deixa de exercer o papel de chefe dos guias do rebanho: assume um dos papéis que se oferecem aos verdadeiros monarcas, pais, sacerdotes, etc. E é também por isso que se faz cristão” (p.157).

Foi então o conjunto da história que levou a uma mudança na prática política, nada aqui de racionalizações, muito mais de acasos e contingências. O método então funciona na descrição positiva do que um imperador paternal faz e o que faz um guia de rebanho; então as práticas aparecem não como obscuro subsolo da história, porém muito simplesmente o que fazem as pessoas. “Que derrocada da filosofia política racionalizadora! Quanto vazio ao redor desses bibelôs raros e de época, quanto espaço entre eles para outras objetivações ainda não imaginadas! Pois a lista de objetivações permanece aberta, diferentemente dos objetos naturais” (p.157).

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Carta a uma amiga que inventa

Crônicas de um trabalho docente: A invenção como imanente a vida (Título da tese de Ana Paula)

A escrita da Paula me coloca uma questão, antes mesmo que ela comece a colocar as questões que envolvem a sua discussão, naquilo que é formal na organização de uma tese. Paula se nega a fazer uma introdução do seu trabalho. Traz para si uma vontade de autonomia para quem escreve e para quem vai ler. Daí, rapidamente, diz de uma política de estabelecer protocolos para produção de textos acadêmicos, a qual ela não quer se inserir. Diz que sua tese é uma quebra de protocolo e que seu texto fora escrito com uma vontade de ser útil, de modo não protocolar.
É daí que estabeleço uma questão desde já. Melhor, estabeleço uma problematização que vai nortear a minha fala aqui; hoje. Como ler algo que se quer útil e não diz de um modo de otimizar essa utilidade? Parece algo muito estranho, se constratado como os modos de escrever no contemporâneo.
É raro, hoje em dia, se deparar com uma escrita, seja ela acadêmica, literária ou técnica, onde não exista um modo de decodificação posto aos olhos dispostos à leitura. Aprendemos isso na escola, em casa e na rua. Aprendemos isso com a supervalorização que a imagem possui na atualidade. Paul Virilio denuncia essa situação onde um modo de viver acelerado induz um consumo instantâneo das imagens. Consumo instantâneo das coisas, só é possível quando pre-existe uma codificação que relaciona um ponto ao outro, que serializa cadeias de relação entre as coisas, antes mesmo que essas coisas se façam, aconteçam.
Paula, na política de escrita que utiliza para falar do trabalho docente, encontra um modo de resistir a esses modos seriais de dizer e de viver. Faz uma aposta no jogo jogado e denuncia o jogo arrumado.
Daí, Paula diz que seu trabalho de produção de tese se faz como uma cartografia, e de como essa experiência se dava e que ganhava linhas. São variadas as experiências que confirmam essa decisão metodológica no seu texto, no desenho que foi ela procedendo, sem que houvesse antes uma imagem que pudesse refletir ou ter por referência.
Paula assim, nas suas crônicas, perforre movimentos, percepções, sensibilidades, relacionamentos que se fazem palavras na produção de sua carta; de seu texto. Dispõe uma heterogenese em folhas a serem impressas em papel A4, e agora, ali sentada, aguarda a leitura institucional daquilo que fez. É impotante lembrar que ela, ainda no texto, diz também que não o fez sozinha. Muitos, uma multidão lhe acompanhava na produção das páginas.
Mas isso que foi cartografia para a Paula-hifem-multidão (explicar se for o caso), merece ser lido, pensado e vivido agora apenas como um mapa, que é a coisa mais objetiva que se pode falar de uma tese? Ou é possível um outro modo de leitura para essa escrita?
Bom, minha experiência é pouca no ramo de falar de teses. Assim, como um noviço nesse tipo de demanda, posso confessar aqui, que ainda não aprendi a ler teses como teses. Por isso, peço licença aos companheiros de banca, para não ler a tese da Paula, como uma tese, no sentido mais estrito que essa palavra possa ter. Digo que esse pedido não trata de um desejo do meu eu. Trata-se antes de uma impossibilidade minha, que diante desse texto não ver como ser um EU que sabe ler teses. Principalmente quando a tese, já desde a sua não-introdução, sugere ser outra coisa além de tese.
Assim sendo, vou buscar a melhor coisa que creio ser possível, para percorrer esse texto e depois falar dele. Vou buscar uma intangível alteridade de ser Multidão-hifem-Paula-Simone, Nice, Virginia, Adriano-Teresa-Lia-Rosana-Roberta-Lidia-João-Beth-Povo-da-Beth-Instituições de ensino privadas e públicas, bergon, foucault, deleuze, pássaro azul e mais um bocado de outras possibilidades não nomeadas. Assim quem sabe, possa encontrar a cadência de escrita para dizer dessa leitura. Assim quem sabe, possa fazer parte dessa diferença, que grita ao ouvir a ordem de silêncio. Assim, quem sabe, possa utilizar a precariedade do ser professor, não apenas como um estado de falta, mas como uma condição de insuficiência. Retirei essas duas possibilidades de leitura do dicionário do Houaiss.
Olhando lá o termo e fazendo dele uma leitura um tanto quanto intuitiva, pensei que a condição de precariedade só é falta, quando o sujeito se quer absoluto, melhor resoluto em seus propósitos. Se o sujeito se diz insuficiente, ele não se torna refém daquilo que se mostra precário, pois ele já assumiu essa condição para si. Condição de passagem. Condição de não se querer perpétuo. Uma política de estar na multidão. Uma ética de ser apenas depois da experiência. Uma estética de não instrumentalizar as cores que usa para pintar. Eis em mim, a condição de insuficiência. Uma insuficiência que não se representa. Que não se quer entre o mais e o menos. Uma insuficiência sem relógio de pulso. Uma insuficiência da utilidade no mundo do descartável.
Assim, aqui vou por atalhos. Passo pela página, melhor pela latitude 141 de sua carta, quando ao entrar para dar uma aula numa instituição privada de ensino, um professor ao fechar a porta, imaginava a sala num outro espaço institucional em busca de fazer o insuficiente num espaço que se queria suficiente. Lembro que vivi e sobrevivi por quase seis anos trabalhando no ensino privado, utilizando dessa tática. Quase sempre. Muitas vezes a utilizava de modo solitário para fazer passar o tempo da obrigação do fazer, noutras de modo compartilhado, pois pesava também para os alunos a condição de suficiência, de vigilância da manutenção dos níveis de comportamento previamente estabelecidos. Acontecimentos alegres e tristes, como os que você relata em suas crônicas.
Bom, agora estou há três anos no ensino superior público e semana passada, quase entrei em pânico, quando por pouco não reviveu em mim a tática disposta na latitude 141, já experimentada por mim em outros territórios.
Em alguma outra latitude de sua carta, você diz que é frágil a fronteira entre as instituições de ensino público e privado. Relia sua carta, quando passei por essa experiência que vou dizer aqui de modo breve. Experiência que articula as cidades de aracaju e vitória, que relaciona a possibilidade de ser um eu com a possibilidade de estar na multidão.
A universidade federal de sergipe, onde trabalho, vive um violento processo de expansão. Nesse tempo que estou lá, dobraram número de alunos, de cursos de graduação, de professores. Triplicaram os cursos de pós-graduação, de alunos vinculados ao pibic e por aí vai. Uma revolução se fez na cultura do Campus. Prédios se edificam a todo momento e os espaços para estacionamento de carros estão esgotados. Entretanto, as marcas desse processo se estabelecem essencialmente na política do mais e do menos. Na contabilidade gerencial que busca anular a paixão, a autonomia e a singularidade que emergem nos movimentos da multidão.
Veja só, semana passada, eu fui ao encontro de uma turma de Psicologia Geral, com 55 alunos, de pelo menos oito cursos diferentes. Íamos lá falar de William Wundt e a experiência imediata. Cumprimento os alunos, faço a verificação de frequência e pergunto quem leu o texto. Cinco levantam a mão. Após essa resposta, algo passa a se movimentar em mim. Eu não sei o que é, mas sei do que se trata.
Percorre-me uma força estranha. Algo que naquele momento não me fazia bem e punha em questão o sentido do trabalho que deveria ser feito. Silenciei, mas via um transtorno se encaminhar em meu corpo. Bom, mas se uma força estranha leva Caetano Veloso, Roberto Carlos e uma multidão a cantar a plenos pulmões, desde o começo dos anos oitenta do século passado,não poderia essa força estranha me fazer calar naquele momento. Entre nós, aqui, eu já não sou muito de calar.
Voltando. Não poderia deixar retornar a condição de um silêncio que adoece, mas que me permitia fazer do sulficiente, insuficiente na UVV. Era uma tática de sobrevida e também de vida importante, mas lá havia um patrão e um salário que ele pagava. Nas instiuições públicas de ensino superior, o patrão não fala, não manda calar, não manda trabalhar. Enfim o patrão não manda.
Nessa turma, quantitativamente falando, frequentam as aulas, 44 alunos. Uma entrou há poucos dias em licença maternidade. Inventou um filho para deixar de assistir as aulas. Eis uma latitude interessante. Eis um atalho. Pensei com meus botões; esse povo precisa engravidar.
Perguntei quem estava com o texto. Quase todos.
Então pedi que o lessem por meia hora. Após esse tempo pedi que produzissem uma pergunta sobre o que leram, que necessariamente começasse por O QUE, ou QUEM, ou POR QUE, ou COMO. Cinco minutos para realizar a tarefa. Devo dizer que pedi também que colocassem o nome abaixo da questão produzida, dando assim um tom de avaliação ao procedimento.
Passados os cinco minutos, fui ter com eles. Todos haviam feito a tal questão. Disse eu então: Quem fez a questão começando com O QUE? Resposta: tantos de braços levantados. Quem fez a questão começando com Por que? Outros tantos. Quem fez a questão começado com a palavra quem? Menos, mas ainda alguns tantos.
Daí perguntei. Quem fez a questão começado com a palavra COMO? Um braço se levanta no meio da sala. Um braço, apenas um braço.
Daí fui conversar com eles sobre o que querem essas palavras quando perguntam. Para onde elas apontam. Que tipo de saber elas edificam e sustentam. Engraçado que o texto de trabalho anterior havia sido um que organiza a história da psicologia como campo de práticas e saberes, dispondo tanto lógicas e procedimentos hermenêuticas como também daquilo que Foucault, ao olhar pros inventos vivos dos gregos, deu o nome de estética da existência.
O texto não havia ainda reverberado nos estudantes e eu ali, buscando lidar com a tal força estranha. Buscado percorrê-la, antes que ela me percorresse.
Propus então a condição de gravidez aos alunos. Quem quizesse poderia ir embora e ficar em casa até o momento da avaliação. O tal do REUNI já fez isso antes de mim. Reprovado por falta e com média, toca adiante a vida na grade curricular.
Quem não quizesse engravidar, ficaria ali comigo. Por vontade, lendo os textos e participando das aulas. Dei 48 horas para decidirem, afinal engravidar não é coisa sem consequência. Na quinta-feira, voltaram todos. Perguntei quem estava preparado para engravidar. Ninguém levanta o braço e eu ainda estava a percorre a força. Não havia ainda a insuficiência necessária para a vocalização de um canto.
Insuflei a moçada. Aliviei os riscos. Disse que seria feito o mesmo trabalho da aluna gestante e que ela ainda não sabia que trabalho seria esse. Um aluno quis que adiantasse o ter do tal trabalho. Disse que não poderia fazer isso. Uma gravidez leva tempo e o trabalho seria o momento do parto. Não poderia ali me fazer parteiro ou anestesista. Também não era possível admitir que dava para ficar grávido e ter o filho no mesmo dia. Então ele desistiu. Continuamos a nossa negociação e encontramos um bom termo para os nossos encontros.
Não vou continuar nessa história, pois preciso voltar para esta, que fala mais alto em nosso presente. Voltar para esse momento em que escrevo para a Paula.
Paula, minha amiga. Creio que esses alunos que encontramos em qualquer lugar, denunciam tão bem como você, essa condição de precisar ser suficiente, quando o viver, o brincar de viver, demanda insuficiência.
Não vejo então outra possibilidade, que não levar a cadência que você traz para as nossas aulas. Para mim com eles. Quando você decide por um texto não providencial, de um modo muito aberto você me diz como não deixar que os alunos engravidem antes do tempo, antes que uma vontade potende articule tal decisão.
Fosse apostar, diria que esse alunos, que são pra mim, a melhor expressão dessa fronteira que instala indiferença na vida, quando muito, passaram seu tempo lendo textos da suficiência. Textos da sufuciência que os percorriam no ensino fudamental e médio. Aprendendo durante esse tempo a transformar a insuficiência que bem traziam em suficiência. Isso em qualquer disciplina. História, geografia, matemática, ciências, língua portuiguesa e literatura. Algo tipo assim. Aulas de literatura e interpretação do texto. Quem é o protagonista? Quem é o antagonista? Do que trata o texto? Não se pergunta que atalhos o texto produz em seus leitores.
A única aluna que fez uma questão com a palavra COMO, foi sem saber um atalho para que eu invertesse em mim, a relação com a tal força estranha. Entretanto, ela não sabia dizer bem o que lhe levou a fazer tal formulação. Disse que queria saber do processo. Só isso. Pode parecer muito. Pode parecer pouco. Mas pode também não se tratar disso. Melhor, assim como o seu texto, a questão dela, em mim, precisa não se tratar disso.
Desse modo a questão dela se fez rara, assim como é rara a sua tese. Sua carta-tese é rara em muitos sentidos. É rara em sua singularidade que expressa paixão, cuidado e compromisso. Isso é bom. Muito bom e bonito. Mas ela é rara também em frequência. Quando estava em formação acadêmica, não me foram disponibilizados textos como o seu. Textos-atalhos. Minto. As vezes apareciam, mas eram raros, escassos e distantes enquanto possibilidade de existência e utilidade. A arte lá, a gente cá.
Seu texto me trouxe aqui. Me trouxe até a UFES. A UFES onde cursamos psicologia.
Seu texto agora, carrego para a minha UFS, para que meus alunos, amigos e outros, possam saber da sua força e da sua escrita-multidão. Para que possam também saber que não é preciso saber tanto quanto diz uma condição de suficiência e que os protocolos podem existir. Devem existir. Mas eles não são condição para o belo, para o diferente, para a invenção. Eles são condição para a repetição. São condição para a necessidade. Para uma ordenação de crises que a própria ideologia da ordem ajudou a forjar.
Sua carta é outra coisa. Ele é o texto que precisa estar presente em todo dia. Precisamos perserverar no trabalho pela condição de insuficiência. Sabemos bem disso. Não sabemos bem como fazer isso, pois isso só se faz em ato.
Mas preciso dizer que sua carta me foi útil e que acredito que ela vai continuar sendo, pois é um belo invento e como bem diz você, a invenção é imanente a vida!
Agradeço a você e a Beth Barros pela leitura do texto e por estar aqui com vocês, tecendo esse acontecimento. É isso. Tenha meu abraço!

PS: Essa foi a minha fala ao participar da banca de doutoramento de Ana Paula Figueredo Louzada, junto ao PPGE/UFES