quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Cidades de mil olhos

Em: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2009/12/23/ult5772u6705.jhtm


23/12/2009 - 07h02
Um milhão de câmeras de segurança gravam São Paulo em reality show às avessas
Rodrigo BertolottoDo UOL NotíciasEm São Paulo

Quem transita pela capital paulista é gravado por mais de 100 câmeras diferentes, desde o elevador de seu prédio, aos cruzamentos de avenidas, à lojinha da esquina, à plataforma do metrô e até à mesa de trabalho. É tanta filmagem que daria para montar um longa-metragem diário e individual, tão arrastado como um filme iraniano e tão previsível como um blockbuster norte-americano.
Um reality show às avessas: 41 milhões de protagonistas e só poucas centenas de espectadores. Essa pode ser a definição do monitoramento eletrônico no Estado de São Paulo, que deve chegar até o final do ano com um milhão de câmeras de segurança (50% está na região metropolitana). A grande maioria está em mãos privadas.
Esse número foi projetado pela Abese (Associação Brasileira das Empresas de Sistemas Eletrônicos de Segurança), com base nas vendas em 2009. E deve causar arrepio em quem tem mania de perseguição, mas a polícia prefere não pensar nisso."No começo, achei que poderia provocar uma paranoia, mas na verdade houve muita aceitação e poucas críticas", comenta Dalmo Álamo, superintendente de operações da Guarda Civil Metropolitana, que aponta 83 câmeras para vigiar o centro de São Paulo.Suas lentes têm capacidade de zoom de um quilômetro para afastar ladrões, traficantes e camelôs. "Com essa capacidade poderíamos entrar pela janela dos apartamentos particulares, mas cada operador tem uma senha e um supervisor, para evitar qualquer desvio na função e quebra de privacidade", completa Álamo, que aponta a redução em 50% nos locais filmados.
Ele chama de hot spot (pontos quentes) os cenários gravados. Em 2010, mais 135 deles entraram no sistema, que deve ser integrado com o da Polícia Militar e CET (Companhia de Engenharia de Tráfego). E a tendência é migrar das objetivas para a periferia da cidade. "O videomonitoramento cria ilhas de segurança. O delito muda para outro lugar. E é para lá que mandamos nossos policiais", explica o superintendente.É obrigatório o paralelo com o livro "1984", do escritor britânico George Orwell, que relata uma sociedade totalitária controlada pelo Big Brother (líder fictício cujo nome batizou o programa mundial de TV) por meio de "teletelas". O personagem principal escreve seu diário no único quarto que escapou do monitoramento estatal.O próprio sistema de circuito interno de vídeo foi criado em 1942 na Alemanha nazista, desenvolvido em parte pela empresa Siemens e usado durante a Segunda Guerra Mundial para observar o lançamento dos foguetes V-2. "Em um Estado brando como o nosso, as câmeras servem para segurança, mas em um governo policialesco poderiam servir para o controle político, assim como outras tecnologias", analisa Renato Janine Ribeiro, professor de filosofia da USP (Universidade de São Paulo) conhecido por suas opiniões sobre temas sobre violência.O parâmetro de Estado policial também é germânico: a Stasi, polícia política da Alemanha Oriental, com 90 mil agentes infiltrados plantando câmeras e microfones nas casas e minutando o dia-a-dia dos potenciais opositores. Segundo Mário Louzã, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, a combinação de tecnologias pode aumentar a sensação persecutória. "Colocar CPF nas notas fiscais ou rastreadores em carros geram mais informação sobre as pessoas do que as câmeras de segurança", afirma.
Já para Janine, a tecnologia é um instrumento que não gera poder, mas aumenta o poder de quem maneja esses vídeos - a maioria em mãos privadas. "A sociedade aceita porque essas câmeras criam uma sensação de segurança, mas é preciso estabelecer limites. Acho que as filmagens por celular podem ser perigosas, afinal, na maioria das vezes é difícil saber quem é o autor", opina o filósofo.De acordo com o advogado especialista em direito público Carlos Ari Sundfeld, ainda é necessária uma regulamentação para as empresas de segurança, as grandes detentoras de tantas imagens. "São verdadeiras guardas privadas que cresceram muito nos últimos anos. É preciso criar regras para a gravação, armazenamento e apagamento dessas imagens."Um exemplo disso é a empresa de segurança privada Haganá, que monitora 800 condomínios e 300 indústrias em São Paulo - chega a ter 100 câmeras em um único prédio. "Adotamos o conceito israelense de defesa: a guerra é da fronteira para fora. Por isso, as imagens têm que se concentrar na calçada do prédio, onde está nosso inimigo", define José Antonio Caetano, diretor comercial da empresa. Haganá, que significa "proteção" em hebraico, tem como diretor operacional José Bernardes Markuz, que serviu no exército de Israel.

O procedimento padrão, tanto em órgãos públicos quanto em empresas privadas, é apagar automaticamente as imagens armazenadas após um período que vai de uma semana a um mês. Em geral, apenas um encarregado tem acesso a esse conteúdo durante esse tempo.Contudo, o ponto mais frágil do processo e que pode gerar o vazamento de imagens por parte de hackers é a conexão das câmeras para as centrais de monitoramento. Em geral, é feita por banda larga. No caso do Metrô é diferente: como a companhia de transporte tem uma rede física, utiliza fibra ótica para a transmissão de vídeos.

A guarita blindada é o QG do prédio. O porteiro (ou controlador de acesso, como eles preferem chamar) é funcionário deles e não pode ser visto nem pelos moradores. Se deixa aberta a porta da guarita ou permite a entrada de alguém, é repreendido via rádio pelos operadores de monitoramento a quilômetros de distância. "Outro dia, um rapaz estranho entrou na guarita do prédio do [piloto de F-1] Felipe Massa. Acionamos nossas viaturas, mas depois descobrimos que era um pedreiro", conta Caetano. Para Janine, essa vasta profusão de câmeras atualmente causou o surgimento das "imagens-lixo". "São vídeos sem informação, sem interesse. É impossível ver tudo isso tamanha a profusão de imagens." Richard Pereira comprova diariamente isso. Ele é supervisor do Centro de Controle da Segurança do Metrô e comanda três operadores. O quarteto é encarregado de monitorar 948 câmeras, número que vai chegar a 1.400 no ano que vem. Um volume de pessoas entre catracas, corredores, vagões e plataformas desfilam diante deles durante as oito horas de expediente, acionando via rádio quando algum imprevisto acontece. "Os trens e os passageiros seguem linhas retas. Qualquer movimentação diferente chama a atenção. Dessa forma podemos controlar tantas câmeras", passa a receita Pereira, que trabalha há 21 anos no metrô, que desde a inauguração em 1974 tem um sistema de TV interno. Só na estação Sé, há 35 lentes para acompanhar 750 mil pessoas que passam diariamente por lá.Muitas dessas imagens, porém, acabam nos telejornais, como parte dos "giros de reportagem" e "show de imagens", como a do bebê que caiu nos trilhos na Austrália ou a bêbada que quase foi atropelada nos EUA. "Antes as câmeras eram caras e estavam na mão de poucos. Hoje, a mídia tem que lidar com essas imagens que não são produzidas por ela", afirma Laurindo Leal Filho, professor aposentado da Escola de Comunicações e Artes da USP. Para Leal, um dos reflexos da enxurrada dessas imagens no noticiário é as pessoas se acostumaram com a estética desbotada e desenquadrada dessas câmeras. "Durante 30 anos o brasileiro foi condicionado com o tal padrão Globo de qualidade, mas essa profusão de câmeras e a internet derrubaram isso. As pessoas querem o conteúdo desses flagrantes. Acho que até por isso a TV digital não emplacou por aqui. As pessoas não querem ver o fio da bolinha de tênis, querem ver imagens que tragam informação, mesmo com a baixa qualidade dessas câmeras de segurança", analisa.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

As cidades invisíveis dos fragmentos narrativos

“A oitenta milhas de distância contra o vento noroeste, atingi-se a cidade de Eufêmia, onde os mercadores de sete nações convergem em todos os solstícios e equinócios. O barco que ali atraca com uma carga de gengibre e algodão zarpará com a estiva cheia de pistaches e sementes de papoula, e a caravana que acabou de descarregar sacas de noz-moscada e uvas passas agora enfeixa as albardas para o retorno com rolos de musselina dourada. Mas o que leva a subir os rios e atravessar os desertos para vir até aqui não é apenas o comércio das mesmas mercadorias que se encontram em todos os bazares dentro e fora do império do Grande Khan, espalhadas pelo chão nas mesmas esteiras amarelas, à sombra dos mesmos mosqueteiros, oferecidas com os mesmos descontos enganosos. Não é apenas para comprar e vender que se vem a Eufêmia, mas também porque à noite, ao redor das fogueiras em torno do mercado, sentados em sacos ou em barris ou deitados em montes de tapetes, para cada palavra que se diz – como ‘lobo’, ‘irmã’, ‘tesouro escondido’, ‘batalha’, ‘sarna’, ‘amantes’ – os outros contam uma história de lobos, de irmãs, de tesouros, de sarna, de amantes, de batalhas. E sabem que na longa viagem de retorno, quando, para permanecerem acordados bambaleando no camelo ou no junco, puserem-se a pensar nas próprias recordações, o lobo terá se transformado num outro lobo, a irmã numa irmã diferente, a batalha em outras batalhas, ao retornar de Eufêmia, a cidade em que se troca de memória em todos os solstícios e equinócios.” (As Cidades Invisíveis, Italo Calvino)

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Eufêmia, cidade invisível descrita pelo escritor italiano Ítalo Calvino, habita o tecido urbano de Aracaju. Nas manhãs de sexta feira na rua Coronel João Gonçalves do Bairro Castelo Branco (rua da famosa sorveteria Castelo Branco que dá na praça da Caixa d’água), acontece uma feira livre. Lá encontramos variados tipos de mercadorias oferecidas: vendem-se desde frutas, verduras, carnes, peixes, aves, arroz, feijão, farinha, ervas e laticínios até utensílios de casa, roupas, DVDs, relógios, cadeados, produtos de limpeza e mesmo filhotes de cães à R$ 5,00. No entanto, são coisas possíveis de serem encontradas em outras feiras ou supermercados. Seus produtos de comércio, como em Eufêmia, não dizem da sua singularidade.

Este mercado a céu aberto é organizado em três fileiras de bancas metálicas cobertas por lonas de cores opacas, criando, assim, dois corredores estreitos para o fluxo de pessoas, carrinhos-de-mão para transporte de compras, bicicletas e para a realização do negócio. Este comércio não está somente preso à disponibilidade das mesas, realiza-se também no chão e em suportes improvisados, além de alguns negociantes que vendem suas mercadorias transitando pelo local.

A feira livre do Bairro Castelo Branco constitui na rua um espaço de acontecimentos. Porém, sua geografia diz de um espaço esquadrinhado para melhor eficiência do controle e organização dos corpos. Suas bancas sugerem um ordenamento preocupado com a higiene pública que atravessa as práticas do planejamento urbano. Bancas de carnes, aves e peixes não podem existir frente aos estabelecimentos de comércio e às habitações - são então alocadas nas praças onde o odor de seus restos orgânicos pode ser melhor sanado.

Não abandonando a mesma lógica de racionalização do espaço, é importante observar as praticas de vigilância. É comum ver policiais transitando pela feira, pois existe um posto policial na praça da caixa d’água. Eles tencionam evitar o distúrbio, os furtos, as brigas e garantir um funcionamento ordeiro da vida. Com efeito, fiscais da Empresa Municipal de Serviços Urbanos verificam se as leis que regulamentam a feira livre estão sendo cumpridas. É interessante atentar, pois ele não está lá para realizar cobranças, porém exerce função exclusiva de policiamento extensivo através da organização da feira. Os negociantes o chamam de “o rapa”, pois guarda o poder de apreender os produtos e equipamentos quando não normatizados.

Estes movimentos trabalham segundo uma mesma lógica de gerência da vida que apareceu a partir do século XVI na problemática do governo - o que Michel Foucault chama de artes de governar. Ela aparece com relação a questões bastante diferentes e com dimensões múltiplas como, por exemplo, problema do governo de si; problema do governo das almas; problema do governo das crianças; problema do governo do Estado. As artes de governar, se infiltraram no aparelho estatal produzindo novas práticas que substituem as do poder soberano ao tempo que cristalizam o que se chama de razões de Estado

Então, é a lógica racionalista do Estado liberal que possibilita a instauração, na tessitura do espaço urbano, de técnicas e procedimentos para o governo dos vivos, ao que se chamou biopolítica: entendam isto como a maneira pela qual se tentou, desde o século XVIII, racionalizar os problemas propostos à prática governamental, pelos fenômenos próprios a um conjunto de seres vivos constituídos em população. Partilhando este quadro de práticas biopolíticas, foi em determinado momento de nossa história que nasceu um tipo específico de medicina que pode ser chamada de medicina social pela maneira como tematizou a questão da saúde da população e procurou intervir sistematicamente na cidade de maneira geral, objeto privilegiado de suas práticas. O urbano é visto pelos fazeres higienistas como lugar da desordem, do amontoado de corpos que se encontram e transmitem entre si males diversos. O que é então efetivado é a própria transformação da cidade; é sua adequação a um plano geral de funcionamento e evolução; é a abolição de todo acúmulo e a ordenação de todo contato. Em suma, com a medicina social do século XIX, nasce o planejamento urbano.

Na feira do Castelo Branco, as gerências da vida visam ordenar as práticas infames que permeiam o cotidiano. A cidade é então um espaço tenso entre as tecnologias de higiene para controle das populações e as difusas artimanhas das gentes inventando espaços efêmeros e precários para que a vida escape. Sobre isto se abre passagem para a potência das artes cotidianas de fazer, microfísica das resistências que se efetuam no dia a dia frente às limitações verticalmente colocadas. Como disse Michel de Certeau “No limite, esta ordem seria o equivalente daquilo que as regras de metro e rima eram antigamente para os poetas: um conjunto de imposições estimuladoras da invenção, uma regulamentação para facilitar as improvisações”.

Com um certo olhar mais demorado é possível ver nas fissuras das forças gerenciáis cidades invisíveis dentro da cidade, suas singularidades. Ali se produzem fragmentos de Eufêmia no Castelo Branco, possíveis não através de uma naturalização da feira-livre como isto ou aquilo, mas pela observância de suas práticas. Como na cidade dos solstícios e equinócios, um espaço de encontros possíveis e de histórias possíveis. Aqui habita o interesse em iluminar as vidas obscuras, existências anônimas deixadas às sombras do poder sem maiores importâncias: ou seja, produzir e fazer aparecer aos olhos, narrativas da vida dos homens infames. Objetos raros que brotam do asfalto cotidiano.

E são tantos estes infames da vida ordinária. Vidas que pertencem a essas milhares de existências destinadas a passar sem deixar rastros, não fossem os microscópicos combates urbanos, as pelejas cotidianas, as práticas efêmeras que não objetivam glorias e somem na velocidade do acaso quando do encontro com o poder coercitivo que se exerce nos meandros da vida cotidiana onde o banal é analisado segundo a fina rede cinza da administração, da mídia e da ciência. Como diria Foucault: “Assim é a infâmia estrita, aquela que, não sendo misturada nem de escândalo ambíguo nem de surda admiração, não compõe com nenhuma espécie de glória”.

São mulheres que penduram panos e lençóis por trás das bancas para protegerem-se do sol e narram histórias da vida na feira e na cidade, enquanto descarnam pés e mãos de boi ou vendem meio quilo de fígado ao freguês que para, compra, às vezes conversa e se vai. Homens que enraivecidos esbravejam contra as últimas sugestões dadas pelos órgãos públicos para regulação e progressiva higienização da feira como a possível implantação de refrigeradores que impossibilitariam financeiramente o trabalho de muitos feirantes. Jovens que trabalham indo e vindo carregando compras de outrem e fazem também a comunicação da feira com outros espaços da cidade ou simplesmente tomam, ou fingem tomar, conta dos carros em troca de algumas moedas.

As gerências da vida investem justamente no empobrecimento da experiência que é de cunho coletivo. Assim dificultam a atividade narrativa da vida infame já que apregoam um modo individualizante e disciplinado de existir. Porém é neste processo que esta pesquisa se inscreve e toma uma dimensão política. Disse Walter Benjamin que a narração é um processo artesanal e tem como matéria prima a experiência. É justamente a partir desta experiência urbana que são potencializadas essas histórias que contam miudíces dos combates inglórios, cidades invisíveis então.

Potencializar histórias do homem comum abre espaço para que a vida passe e efetue a implosão de alguns “universos carcerários” que nos atam a engessamentos do real. “Dessa implosão, pedaços de histórias incompletas, fragmentos de narrativas seriam montados pelas urgências políticas do agora, atentas às que ficaram no passado na metade do caminho, inacabadas, interrompidas pela força da barbárie ou pelo esquecimento ávido de futuro”, diria Luis Antônio Baptista. E neste sentido se intenta produzir condições para que, partindo de seus limites, efetuem-se ultrapassamentos dessas histórias esquecidas, histórias indecisas que podem funcionar como minúsculos artefatos bélicos na guerra política da vida.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

A Intuição como Método

Lembro duma agonia que me trespassava o espírito - sim, era mais inquietante do que consigo relatar, mas menos dramática do que estão a imaginar - durante os períodos iniciais do curso de psi. Estudava práticas experimentais e estatística, naquele momento. Daí, encontro o mesmo pensamento, dia desses, ressoando nos versos iniciais duma poesia do Bergson. O menino, inclusive, tomou conta de meu vocabulário, tal qual aquele amigo com quem trocamos trovas, provas e prosas diárias. Canta o filósofo que nossas reflexões brincam com termos e conceitos que não correspondem às articulações do real. Sujeitamo-nos a problemas tais como são formulados pela linguagem. Corolário: dentro da própria pergunta que - previamente - formulamos, já se encontram as possíveis respostas que podem saná-la, respostas coexistentes ao problema colocado. Seja na filosofia especulativa, seja na ciência empírica, sejam em nossas práticas do cotidiano, trata-se mais de encontrar um verdadeiro problema que de resolvê-lo. O conjunto-solução é irmão gêmeo da função-problema e encontra-se coberto, em toda a sua simplicidade, pela complexidade de termos e conceitos da questão. Trocadilha o menino, então, que - posto o problema - resta des-cobrir a resposta.
Coisa bonita de se ver na obra de Bergson é a sua crítica aos falsos problemas. Lembrem de nossa conversa sobre o Zenão. Mudança, movimento e tempo postos em termos de imutabilidade, imobilidade e espacialidade. Zenão põe problemas que emperram, travam, dãobug. Melodia que cai no ritornelo, igual àquelas sonatas do Beethoven "executadas" num celular. Problemas que não levam à lugar algum, visto estarem bem fixados em espaços mal definidos. Igualmente mal colocado é o problema da origem do Ser. Quer o chamemos de matéria original, de razão espiritual, de princípio motor, de Deus ou de qualquer outra palavreta, caímos numa mesma querela. Para esta causa primeira, deve - seguindo a mesma lógica que rege seus consequentes - ter havido uma causa a lhe servir de antecedente. E uma causa da causa. E uma causa da causa da causa. E assim vamos desenrolando o novelho, como um gatinho brincante, até ficarmos totalmente paralisados numa rede caótica de pontos a nos emaranhar. Implícito a este problema está a seguinte crença: o Ser veio preencher um vazio, um nada que preexistia à existência deste Ser mesmo. Antes do Ser, não tinha nada. Ou, dito doutra maneira, antes do ser não tinha "coisa alguma"; ou, refinando ainda mais nosso pensamento, tinha o Nada!
O Nada, neste esquema, preexistia ao Ser como que de direito, sem exigir explicação. A superioridade de Bergson não está na sua inteligência. Ele não resolve o problema! Mas - garoto esperto - ele não o coloca. Sabe que quando se fala em Nada, caminhamos no terreno da pura especulação; lidamos, assim, com uma idéia pura feita para fazer funcionar o problema anteriormente posto. O Nada é só uma miragem, uma idéia, uma palavra. Pensar nestes termos vazios, nos quais o Ser brinda o Nada com a sua chegada seria - usando uma metáfora do próprio - supor que há mais numa garrafa bebida pela metade que numa garrafa cheia, pois nesta última há apenas vinho e, na primeira, vinho e vazio! Outra querela muito semelhante - e igualmente falsa - é a batalha dialógica em cima da Ordem universal e do Caos que o precede. A mesmíssima peça que, embora contracenada com atores outros, mantém os mesmos personagens.
Ambas as ilusões - tanto o Nada quanto o Caos - velam um mesmo erro. O erro de que há menos no vazio e na desordem que no Ser e na Ordem. Se forçarmos a vista só um pouquinho, veremos que há mais "idéias" no vazio que no Ser, na desordem que na Ordem, quando os primeiros representam algum conteúdo intelectual. Dois exemplos podem elucidar tal assertiva: um clássico, do Bergson; e outro meu, vividamente meu. Primeiro, o do menino. Se eu levo um brother para um cômodo de minha casa que ainda não mobiliei, direi a ele que no quarto não tem nada, mesmo sabendo que o ambiente está cheio de ar. E de poeira. E de teias de aranha. E de micróbios. Mas como não é sobre nada disso que sentamos nem é nenhuma dessas coisas que estamos a esperar ou precisar, nada disso conta. Tanto pra ele, quanto pra mim. Agora o meu exemplo, o qual já vivenciei pelos seus dois gumes. O professor que formula uma questão para seus alunos! Ao colocar um problema a ser resolvido pela classe, o docente espera uma determinada solução, aguardando que determinados pontos sejam cobertos pela escrita do alunado. Caso um respondente entenda a pergunta duma maneira inesperada ao professor, sua resposta será totalmente vazia de sentido a este. Será o mesmo que Nada! E é aí que caímos num outro termo mal-analisado: o possível. Com o desenrolar imprevisível da realidade, tendemos a projetar para o passado - retrospectivamente - aspectos que consideramos no presente. O possível é a miragem do presente no passado!
As questões, para Bergson, devem - antes de qualquer coisa - ser postas em termos temporais, não espaciais. Os conceitos e termos devem colar no objeto, respeitando a sua duração mesma. No entanto, se quisermos analisar a duração, seremos obrigados a entrar no jogo programático da inteligência e a seguir sua natureza. Devemos tentar recompo-la numa multiplicidade de estados de consciência sucessivos. Infelizmente! Sucedâneo de instantes, assim como a flecha de Zenão! Esta sequência de pontos - tão numerosos quanto mais obsessivo for nosso esforço intelectual - forma uma trajetória unitária. É o colar de contas bergsoniano! Essa multiplicidade abstrata e essa unidade abstrata, combinadas, não devem pretender sintetizar a duração num conceito, mas sim nos causar uma tensão bem determinada, nos instalar no ponto exato onde uma intuição pode ser apreendida. Intuição, esta, que é o "de-fora" da inteligência, visão sintética que, para ser objetivada, deve passar pelas analíticas conceituais - ponto por ponto - da linguagem intelectiva.
Se a linguagem, típica da inteligência, reúne todas as diversidades num único pacote conceitual pelas suas similitudes, a intuição tem, como objeto, a diferença. E aqui utilizo - Oh, menino que gosta duma poesia! - mais uma metáfora do Bergson (que ele pede emprestada de Ravaisson, na verdade) para nos indicar a clareira desta floresta negra. Pensemos nas cores do arco-íris, do vermelho ao violeta. Há duas maneiras de se fazer filosofia em cima delas. A primeira - inteligente - é dizer que todas são cores! Laranja, amarelo, verde, azul, anil. Mas faz-se notável que, para obtermos esta idéia geral - o conceito de cor - apagamos do laranja o que faz dele laranja, do anil o que faz dele anil, do verde o que faz dele verde. "Cor" é uma definição negativa, visto que representa o vazio. O trabalho deste filósofo é unificar o plural, extinguindo a luz que diferencia as diferentes nuances e confundindo-as todas na treva do universal. A unificação segunda - intuitiva - lida com os infinitos matizes e os faz convergirem, através duma lente, a um mesmo ponto. Este filósofo busca a luz branca, pura, do qual todos os raios multicolores provêm! Enquanto o primeiro pensa "o que é isto?", o segundo se questiona "o que faz com que isto seja isto e não aquilo?", "de onde provém isto?" ou "como isto é possível?". Bergson, figurado como anti-intelectualista, não nos convida a abandonar nossas razões, mas a abrir os nossos olhos para uma casualidade para além do causal, do fixo e do determinado. Um convite que, embora ainda receoso e deslocado, eu já aceitei. Grita o menino em meus ouvidos: menos conceitos e mais vida!...

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

São Paulo, domingo, 18 de outubro de 2009


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+(s)ociedade

Ratos de laboratório
Três livros dissecam as fraudes em experimentos científicos e como universidades e centros de pesquisas tentam acobertá-las


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Isaac Newton já foi acusado de errar cálculos em seus trabalhos sobre luz e óptica
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CLIVE COOKSON

O biólogo sul-core- ano Woo-suk Hwang, especialista em células-tronco, fez manchetes em 2005 por ser a primeira pessoa a clonar embriões humanos. No ano seguinte seu nome voltou a frequentar os jornais, dessa vez porque se descobriu que seus resultados eram falsos.
A fraude em pesquisas é um dos segredos culposos do mundo científico. Acadêmicos e administradores costumam ignorar os erros de conduta cometidos em pesquisas, a não ser que um caso de desonestidade seja tão gritante que se torne obrigatório tomar uma atitude a respeito. Eles gostam de afirmar que a fraude é uma nódoa rara a macular o rosto aberto e confiável da ciência.
Entretanto, os poucos acadêmicos seniores que estudam os erros de conduta de cientistas dizem que os responsáveis pelas políticas do setor subestimam gravemente a prevalência desse mal.
Michael Farthing, vice-reitor da Universidade de Sussex [Reino Unido], estima que as universidades britânicas orientadas às pesquisas apresentam, em média, um caso sério de fraude por ano, totalizando anualmente cerca de 40 fraudes importantes apenas nesse país.
Nicholas Steneck, da Universidade de Michigan e cronista americano destacado dos erros de conduta científicos, acredita que entre 0,1% e 1% de todos os pesquisadores -ou seja, milhares de pessoas em todo o mundo- cometem "práticas seriamente erradas". Só uma minúscula parcela dos casos chega ao conhecimento da mídia; a maioria nunca chega a ser detectada ou relatada, e as instituições costumam tratar sem alarde os poucos casos dos quais tomam conhecimento. Três livros muito diferentes agora procuram trazer os erros de conduta científica para o centro das atenções.
Woo-suk Hwang ainda é o fraudador científico mais famoso. Mas o mais prejudicial, em termos do número de descobertas que falsificou e dos colegas respeitados que induziu ao engano, foi Jan Hendrik Schön. Ele foi visto como jovem nome promissor da física até que seu engodo espantoso foi descoberto, em 2002. Schön prometeu revolucionar a eletrônica. Especializou-se em "persuadir" materiais orgânicos -plásticos- a demonstrar propriedades antes desconhecidas, incluindo a supercondutividade e a emissão de luz laser.
Cientistas de uma dúzia dos maiores laboratórios de física desperdiçaram anos de esforços e milhões de dólares tentando reproduzir e explicar as descobertas feitas por Schön, ao longo de quatro anos, na mundialmente famosa Bell Labs, em Nova Jersey [EUA], e que foram publicadas nos periódicos de primeira linha "Science" e "Nature".

Busca transatlântica
Agora, a jornalista Eugenie Samuel Reich, especializada em investigações de fraudes, montou a história de Schön em "Plastic Fantastic" [ed. Palgrave Macmillan, 200 págs., 15,99, R$ 44], um trabalho maravilhoso de redação forense.
Schön tinha 31 anos quando a Bell Labs o demitiu, em 2002, após um relatório externo ter detalhado sua fraude. Fugiu para a Europa, e Reich o rastreou e falou com ele ao telefone, mas Schön se negou a explicar suas ações ou motivações.
Por isso, o livro é baseado na investigação das publicações de Schön e em entrevistas com 125 colegas e cientistas que interagiram com ele. Olhando em retrospectiva, é espantoso que todos tivessem confiado por tanto tempo no jovem e simpático alemão. As pessoas se culparam quando não conseguiram reproduzir os experimentos dele e aceitaram desculpas educadas que apresentava para não lhes mostrar seus materiais e equipamentos.
Mas não há nada de novo nas acusações de erro de conduta. Historiadores já acusaram Isaac Newton [1642-1727], fundador da física moderna, de errar cálculos em seus trabalhos sobre luz e óptica.
O espectro das fraudes e dos erros de conduta pode abranger desde a falsificação em grande escala de experimentos, como nos casos de Hwang e Schön, até a modificação mais ligeira de algo que o pesquisador vê como leituras falhas em um instrumento.
Um dos projetos mais famosos na história da ciência foram os experimentos de Gregor Mendel, no século 19, com a reprodução de ervilhas. Mas seu trabalho vive há anos à sombra de acusações de que seus resultados teriam sido estatisticamente "bons demais para serem verdadeiros" -ou seja, de que deve ter adulterado dados para os adequar a sua teoria emergente do que hoje chamamos de genes dominantes e recessivos. O biólogo e estatístico britânico R.A. Fisher sugeriu que os dados deveriam ter sido falsificados -embora, provavelmente, por um assistente, não pelo próprio grande monge.
A probabilidade de que dados reais se encaixassem nas proporções esperadas por Mendel entre características dominantes e recessivas teria sido de sete em 100 mil, calculou Fisher. Cientistas e historiadores discutem há anos a validade ou não da conclusão de Fisher. Em "Ending the Mendel-Fisher Controversy" [Encerrando a Controvérsia Mendel-Fisher, Universidade de Pittsburgh, 330 págs., US$ 27,95, R$ 48], cinco especialistas, encabeçados por Allan Franklin (Universidade de Colorado), fazem a defesa de Mendel.
Absolvem Mendel e seus assistentes da acusação de fraude proposital -embora ele possa ter deixado de levar em conta observações que teriam tornado suas descobertas menos nítidas e contundentes.

Ficção
Já Allegra Goodman teve pleno acesso a Cliff Bannaker quando escreveu sobre sua alegada fraude no Instituto Philpott, em Cambridge, Massachusetts -porque Bannaker é fruto da imaginação dela. "Intuition" [Intuição, Atlantic Books, 344 págs., 12,99, R$ 36], o terceiro romance da autora, é um brilhante relato fictício do que pode levar um cientista a manipular dados.
Bannaker não é um fraudador, como Schön ou Hwang; é mais um selecionador de dados ou alguém que usa dados imprecisos, como Mendel. O que o move, além do desejo de honra e glória científicas, é uma forte convicção intuitiva de que sua cepa de vírus respiratório sincicial é capaz de converter células cancerosas em células normais.
Ele persiste em seus experimentos, apesar de receber ordens da direção do laboratório para suspender o trabalho. Com o tempo, começa a registrar regressões espetaculares de tumores em animais. A intuição e o ciúme motivam a ação de sua acusadora principal, Robin Decker.
Este é um romance, é bom recordar, de modo que Decker está longe de ser uma parte imparcial -é uma colega pesquisadora pós-doutoranda cujo trabalho não está indo a lugar nenhum, e é também a namorada a quem Bannaker não anda prestando a devida atenção. Goodman cria uma obra-prima de ambiguidade, mas o que apresenta muito bem é o fato nu e cru acerca da ciência que muitos de nós preferimos esquecer: que cada "prova" e cada "verdade" nos são trazidas por humanos, que estão muito longe de serem infalíveis.

Fraudadores amigáveis
As motivações variam, mas uma característica de muitos fraudadores científicos é sua certeza de que estão com a razão. Mas o caso de Schön parece ter sido diferente. Não era um grande pensador independente, motivado por sua crença em suas próprias ideias brilhantes.
Como Reich demonstra, ele pegou as melhores ideias aventadas por outros pesquisadores em seu campo e, então, aparentemente, as colocou em prática. Se alguém tecia especulações sobre como criar um supercondutor orgânico ou um laser de plástico, Schön colocava a ideia em prática.
"Assim, não surpreende que os cientistas tenham ficado tão maravilhados com os artigos dele", escreve a jornalista. "Schön convertera as melhores ideias deles em dados falsificados que não podiam deixar de ser atraentes. Isso ajuda a explicar a razão pela qual as afirmações dele foram tão bem recebidas e também por que elas tiveram algo em comum com resultados posteriormente obtidos de fato por outros cientistas."
Os três livros sugerem que os fraudadores científicos bem-sucedidos tendem a ser pessoas simpáticas e amigáveis, como os fraudadores financeiros que procuram arrancar dinheiro de suas vítimas. Evitam fazer inimigos que possam procurar evidências de erros de conduta e então os expor.
Schön continuou por tanto tempo por ser alguém que se mostrava ansioso por agradar as pessoas; Bannaker teria podido evitar o sofrimento a que foi exposto se tivesse tratado melhor sua namorada. Os cientistas gostam de falar da natureza "autocorretora" das pesquisas científicas -o fato de que experimentos falhos serão corrigidos por trabalhos futuros. Mas Reich argumenta que a autocorreção quase falhou no caso de Schön.
Ele acabou sendo exposto não pelas dezenas de pessoas que tentaram reproduzir seu trabalho e levá-lo adiante, mas por dois físicos que observaram que Schön usara dados idênticos em artigos sobre dois experimentos diferentes, publicados respectivamente pela "Nature" e pela "Science".
Para Farthing, mais preocupante ainda que os casos sérios de fraude é "a corrente subjacente de modificações ligeiras de resultados, algo que ocorre com muito mais frequência e que vem perturbando a literatura científica". As novas tecnologias ampliam as possibilidades de modificações, por exemplo com a manipulação digital sutil de imagens.
Universidades e instituições de pesquisa vêm há 20 anos intensificando a contragosto seus esforços para fazer frente ao problema. Mas os mecanismos para detectar, relatar, investigar e resolver erros de conduta em pesquisas científicas ainda são insuficientes.
Deveria ser possível para cientistas procurar mais ativamente por sinais de desonestidade entre seus colegas -por exemplo, quando examinam artigos no processo de revisão por pares, que antecede a publicação-, mas sem destruir a confiança entre pesquisadores, da qual depende a condução eficiente da ciência.



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A íntegra deste texto saiu no "Financial Times". Tradução de Clara Allain .

fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1810200916.htm

domingo, 11 de outubro de 2009

O Pensamento e o Movente - Primeira Parte

Diz-nos Zenão de Eléia. Caso um corpo queira se deslocar de A até B deve, antes disso, chegar até metade deste mesmo trajeto. Mas, para chegar até esta metade, deve - igualmente - percorrer metade desta metade. E, antes de se deslocar este quarto da reta original, tem de andar metade-da-metade-da-metade. E assim até o infinito! Chegar ao final de uma reta, então, é percorrer uma sequência infinita de pontos. Logo, a mudança mostra-se contraditória e impossível, visto que - logicamente - não se pode chegar ao fim do infinito. Numa corrida entre o célere Aquiles e uma tartaruga, exemplificando, na qual Aquiles dá alguns passos de vantagem ao quelônio, o animal sempre venceria pois, para alcançar o ponto no qual se encontra o cascudo réptil, o herói deveria atingir um ponto anterior ao desejado e, antes deste ponto, um outro ponto e assim em diante.
Os sistemas filosóficos, para Bergson, de tão abstratos e imprecisos que são, não se ajustam à nossa realidade. Pensemos, novamente, no móvel que quer sair de A e chegar em B. Lembrem-se da física colegial. A duração do deslocamento se mede pela trajetória do movente, num tempo dado e linear. Este tempo, entretanto, não se relaciona à duração mesma, mas a momentos, a paradas virtuais do tempo. Quando construímos matemáticas e dizemos que um evento X se dará ao final dum tempo t, dizemos - com isto - que teremos contado até o evento um número t de simultaneidades duma mesma categoria.
A consciência, neste esquema, não passa pela "fadiga da espera". Um caso simples: antes que esta quinta-feira última chegasse ao fim, eu comecei a planejar o dia de sexta: iria à universidade, pela manhã, participar dum coletivo de estudos ao qual faço parte; logo após, iria almoçar num restaurante nas proximidades do local; ao término da refeição, eu iria ao mercado municipal produzir dados para uma pesquisa etnográfica; e, depois de uma ou duas horas no mercado, eu voltaria à universidade para assistir um debate entre dois professores. Meu dia estava totalmente delineado e, de fato, aconteceram todas estas coisas que pré-vi e na mesmíssima ordem que as desenhei. No entanto, eu tratei o tempo como se ele já tivesse passado. Defini seus contornos exteriores, mas não posso definir suas matizes interiores. Extrai do mundo o suscetível de repetição e cálculo, ou seja, aquilo que não dura. Essa duração, escamoteada pela ciência, difícil de ser colocada em linguagem, é a nossa vida mesma!
Zenão, a metafísica, a filosofia, a ciência, a linguagem. Todos estudam o tempo e o espaço como coisas de mesma natureza. Troca-se "justaposição" por "sucessão" e está tudo resolvido. Chamamos o tempo, mas é o espaço que sempre responde. Somos tentados a perguntar, então. Se a inteligência descarta a temporalidade real não é porque o nosso entendimento sobre as coisas assim o exige? A inteligência retém posições. Um ponto. Outro ponto. Um terceiro ponto. O que se passa no "entre", no interstício, é ignorado.
A inteligência não liga muito para a mudança. E, caso reclamemos da falta de mobilidade da linguagem espacial da inteligência, esta começa a figurar outros pontos, estrangulando-os em intervalos cada vez menores rumo ao infinitesimal. Coisa natural, visto que nossa ação intelectiva só se dá sobre estes pontos. O que a inteligência tem por movimento é a simples sucessão simultânea de duas paradas virtuais no tempo, vendo o movimento como uma sucessão de posições e o tempo como uma sucessão de instantes. Tal qual um cinematógrafo é o nosso entendimento, um sucedâneo que recompõe artificialmente a duração e a mudança. Mas a duração e a mudança mesmas são uma outra coisa. Não o suceder, mas o fluir. O real não são os estados ao longo da mudança, mas a continuidade da transição. O real é a mudança, progressiva, ininterrupta, indivisível, substancial, que adere em si mesma numa duração que se alonga sem fim.
Quando Zenão assinala as "contradições do movimento e da mudança" ele fala dum movimento e duma mudança como nossa inteligência os representam. Está inaugurada, aí, a metafísica, mas uma metafísica que é simples encadeamento artificial de proposições, um construto hipotético que ultrapassa a experiência móvel e plena. Os "grandes problemas" que a metafísica colocou, para Bergson, não passam de "problemas mal colocados", pois não correspondem ao movimento, à mudança ou ao tempo, mas a pacotes linguístico-conceituais que tomamos por realidade. Torna-se necessária, aqui, uma metafísica que respeite a experiência, a duração. A metafísica de Zenão (e de todos os filósofos e cientistas após ele) nega a coisa mesma que define o tempo: o fluxo da duração. Criação contínua, novidade, imprevisibilidade.
Bergson coloca num mesmo plano tanto o determinista quanto o crente no livre-arbítrio. Este, para Bergson, reduz a sua liberdade à simples escolha de duas os mais opções que se lhe afiguram, como "possibilidades" ansiosas para se "realizar". Admitem, assim, que a estrada está igualmente dada. Não fazem idéia de que a ação nova, inteiramente não pré-existente a si, nem mesmo como possibilidade pura, é que é o ato livre.
A vida interior é como um copo de água açucarada, que faz necessária a espera da dissolução do açúcar na água. Ou como uma melodia, que não pode ter sua duração diminuída sem ser alterada. Na evolução da natureza, da vida, da consciência há constante criatividade. Criação perpétua não de realidades, mas de possibilidades. Quando o músico compõe a sua canção, podemos dizer que a sua obra era possível antes de ser real, se com isto entendemos que não existiam obstáculos a uma tal realização. Mas Bergson cavouca um pouco mais e afirma: no momento em que o músico possui uma idéia da canção que fará, a canção já está pronta!
Nossa lógica de pensamento é retrospectiva. Tende sempre a lançar para o passado, como possibilidade, as realidades atuais. Será por um feliz acaso dizermos, justamente, o que interessará ao historiador do futuro sobre o presente de outrora (seu passado, nosso hoje). Quando o historiador do futuro considerar o nosso presente - e quando nós consideramos nosso passado - procuramos, aí, a explicação de nossos presentes, daquilo que o presente contém de novidade e de diferença em relação a este passado. Desta novidade futura, visto que é criação, não podemos ter idéia alguma. As possibilidades passadas que enxergamos de uma coisa qualquer são miragens da nossa realidade.
Ao encerrar esta primeira parte, Bergson deixa claro que não se trata de renunciar à lógica representativa da inteligência - de natureza espacial e de utilidade social - mas fala da necessidade em torná-la flexível e adaptável à duração, a uma evolução que não é desenvolvimento, mas criação. Kant coloca a "coisa em si" como aquilo que escapa à consciência, visto que, para atingi-la, necessitaríamos duma capacidade intuitiva que, segundo o mesmo, não possuímos. Bergson refuta, dizendo que a inteligência adquiriu hábitos da prática que formam, reformam, deformam a realidade. Organizam-na em arranjos que vêm de nós. Se nós os construímos, podemos deles nos livrar. E, assim, entramos em contato direto com o real. O mal da filosofia, como foi colocado inicialmente, é a sua imprecisão. É a sua lida com objetos de pensamento que não são talhados de acordo com as coisas mesmas. A proposta: afastar os conceitos já prontos, nos proporcionando uma visão direta do real e a construir conceitos novos, levando em consideração as articulações do real e forjados na exata medida de nosso objeto, estudando-os neles mesmos e não na abstração generalizada do espaço...
BERGSON, Henri; O pensamento e o movente - primeira parte; In Bergson: Coleção os Pensadores; Trad. Franklin Leopoldo e Silva; pp.147-166.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Diário de Campo - 04.09.09

Após um ano morando à cerca de 500 metros da feira do Castelo Branco, fui a ela pela segunda vez. Engraçado como passei tantas vezes ao lado de, mas não por ela, e a sensação que esta diferente experiência causa. A rua pela qual costumo cortar caminho quando volto para casa de alguns lugares, não parece a mesma, some em meio a tantas imagens e sons.
Não que eu fosse totalmente “virgem” desse espaço repleto, ou melhor, atropelado, de gente, frutas, verduras, carnes, sensações. Costumava ir a feira com minha mãe há alguns anos quando morava em outro bairro, e embora não gostasse de acordar cedo aos sábados ia contente carregar as sacolas (aquele mingau que fazia de meu café da manhã, o iogurte de ameixa que levava para casa e o modo como os feirantes atendiam seus clientes sempre me chamavam atenção).
Bom, nesta minha segunda experiência ainda me sinto meio deslocado, não sei, tenho a impressão de que sou notado pelos olhares como um estranho... talvez seja só uma impressão.
Logo que chego, enquanto espero João - andar com ele parece me dá mais conforto, já que ele já não é um “estranho no ninho” – dou de cara com o carro da Emsurb no inicio da feira. Em seguida vejo um fiscal discutindo com um feirante enquanto outro “confisca” sua cesta de abacaxis. Como já fiquei sabendo não é permitido colocar produtos naquele local – no chão do início da feira.
Observo a cena: o mesmo feirante que teve seus abacaxis “confiscados” retira suas outras mercadorias para não perdê-las também, um vendedor de morangos diz que se eles vierem tomar a sua, ele joga no chão e pisa, mas não deixa eles levarem, o rapaz que vende Cd e Dvd aguarda os fiscais irem embora para abrir o porta malas e expor sua mercadoria enquanto seu som toca.
Enfim, observo tudo – que parece já pertencer ao cotidiano da feira – mas ainda meio distanciado. Ensaio ir conversar com o feirante do abacaxi mas acabo não indo, fico esperando João chegar.
João chega e vamos caminhar pela feira, alguns olhares de reconhecimento e acenos parecem dirigir-se para nós. Seu Ulisses, que eu já tinha conhecido em outra oportunidade, diz que as coisas “vão indo”. Fala da impossibilidade de atender algumas recomendações do Estado, pois o mesmo não dá condições para isso. "Como colocar freezer aqui, se não tem energia? Olha os “gatos” E estes banheiros? Ficam longe, sujos, são usados para o consumo de drogas."
Passamos pela banca do presidente da Associação dos Feirantes, mas o mesmo não se encontrava lá. João, então, resolve perguntar por Seu Antônio. Segundo sua irmã, Eleonora, ele estava em uma reunião e ela, que trabalha na Associação visitando as feiras e cadastrando o pessoal, estava substituindo-o nesse dia.
Ao falarmos da nossa pesquisa ela se mostrou interessada, a fim de conversar. Enquanto conversávamos algo interessante aconteceu: a pessoa que recebe o pagamento do aluguel das bancas de metal (os feirantes até então pagavam seis reais pelo dia) passa e para surpresa de Dona Eleonora a taxa tinha aumentado para sete reais, sem ninguém ter sido avisado. Ela diz que não irá pagar e liga para seu Antônio para saber se ele havia sido informado do aumento. Ele também não sabia e reafirma que não é para ninguém pagar.
Alguns feirantes que estavam próximos, depois de ela ter dito para eles não pagarem, falaram, preocupados, da possibilidade de serem deixados sem banca na outra semana. Ela continuou afirmando para não pagarem, que deixassem sem banca.
Por fim, depois de algumas manifestações de preocupação de serem deixados sem banca, ela concluiu: “Quem é associado não vai pagar, quem não for que pague!”.
Após esse ocorrido, nos despedimos dela e voltamos a caminhar pela feira em direção a saída. Olhei para João mas não disse nada, e ele com um balançar de cabeça e um sorriso confirmou que algo interessante perpassava aquela fala.
Fomos embora então, mas com a impressão de que, como disse João, a associação é dos associados.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Foucault revoluciona a História (Paul Veyne) parte I

Antes de começar digo que este texto do Paul Veyne é um achado. Não no sentido em que foi perdido e, devido ao acaso ou mediante busca árdua, aparece novamente, visto que é então um texto considerado célebre quando se fala em comentário sobre Michel Foucault. No entanto, é justamente aí que se inscreve como um achado, uma raridade: em meio à insegurança que circula pela leitura de comentadores, estas linhas trazem novo ar à leitura dos textos foucaultianos. Explico, como disse o próprio Veyne, o texto tenciona apresentar a utilidade prática do método de Foucault e o faz belamente através de mostras de seu funcionamento, ou seja, para além das linhas carrancudas - redundantes nos ditos sobre a obra do filósofo-historiador -, Paul Veyne trata sim do método, mas o faz passar antes pela experiência. Ele diz então que são dois os seus deveres (p. 151): 1. falar antes como historiador que como filósofo; 2. falar mediante exemplos.

O exemplo do qual extrai raciocínios, nem ao menos é seu. Trata-se da explicação da suspensão dos combates de gladiadores trabalhada por Georges Ville em livro póstumo sobre a gladiatura romana. Para iniciar, uma intuição: “os fatos humanos são raros, não estão instalados na plenitude da razão, há um vazio em torno deles para outros fatos que nosso saber nem imagina” (p.151). Esta é a “intuição inicial de Foucault”, “não é a estrutura, nem o corte, nem o discurso”, é a raridade. Esta indicação possibilita uma leitura diferenciada dos acontecimentos como veremos seguindo a lógica do fim da gladiatura.

Uma resposta fácil se coloca frente à pergunta sobre o porquê da suspensão pouco a pouco dos combates durante o século IV de nossa era, quando imperavam reis cristãos: “essas atrocidades cessaram devido ao cristianismo” (p.152). Pois bem, Paul Veyne diz que os cristãos só reprovavam a gladiatura dentro dum quadro geral de condenação a todos os espetáculos. Dentre estes, pior era o teatro! Suas indecências e prazeres levavam o público a cometer pecados da carne, enquanto que o sangue que corria dos gladiadores conhecia um fim em si mesmo. Morre aqui esta resposta. Então será a resposta encontrada no humanitarismo, condição amplamente humana? “Também não é isso; o humanitarismo só existe em uma pequena minoria de pessoas com nervos fracos” (p.152); este é facilmente confundido com o sentimento de prudência onde se teme principalmente o risco da crueldade habitar as populações e levá-las a violência. Não é exatamente o mesmo que lamentar a vida humana dos gladiadores.

Na grande maioria da população, os gladiadores provocavam sentimentos ambivalentes de atração e repulsa, pois por um lado exercia o fascínio da morte, o gosto em ver sofrer, por outro havia a angustia de ver a paz pública agredida em seu seio por assassínios legais de não inimigos nem criminosos. Em Roma, ao contrário de muitas civilizações onde o medo político prevaleceu, a atração que as vedetes de arena exercia se sobrepôs e então instituiu-se a gladiatura. “A mistura de horror e de atração acabou por levar à solução de injuriar esses mesmos gladiadores que eram acamados como vedetes e de considerá-los impuros como o sangue, o esperma e os cadáveres” (p.153). Esta solução permitia que os combates fossem assistidos na mais completa paz de consciência. Porém o que espanta é que “essa inocência na atrocidade era legítima, e até legal, e até mesmo organizada pelos poderes públicos (...) o horror está em que esse horror público não é encoberto por nenhum pretexto” (p.153).

Se não foi causado pelo cristianismo, nem pelo humanitarismo, nem pela sabedoria pagã, o que então causou esta mudança de sensibilidade e mentalidade, onde o horror passa a dominar a situação frente à atração provocando, assim, a suspensão definitiva das gladiaturas? Solução provisória: “é no poder político que se oculta a explicação para a gladiatura e para sua supressão, e não no humanitarismo ou na religião. Entretanto, é preciso buscá-la na parte imersa do iceberg ‘político’, pois foi lá que algo mudou, que tornou inimaginável a gladiatura em Bizâncio ou na Idade Média. É preciso desviar-se de ‘a’ política, para distinguir uma forma rara, um bibelô político de época cujos arabescos inesperados constituem a chave do enigma. Dito de outra maneira, é preciso desviar os olhos dos objetos naturais para perceber uma certa prática, muito bem datada, que os objetivou sob um aspecto datado como ela; pois é por isso que existe o que chamei acima, usando uma expressão popular, de ‘parte oculta do iceberg’: porque esquecemos a prática para não mais ver senão os objetos que a reificam aos nossos olhos” (p.154).

Seguindo esta proposta inversiva, somos tentados a pensar na relação travada entre dois grandes objetos naturais a-históricos: os governantes e os governados. “Em vez de acreditar que existe uma coisa chamada ‘os governantes’ relativamente à qual os governados se comportam, consideremos que os ‘governados’ podem ser tratados seguindo práticas tão diferentes, de acordo com as épocas, que os ditos governados não têm senão o nome em comum” (p.154). É este o exercício de funcionamento do método foucaultiano o qual Paul Veyne propõe ao tratar seus exemplos. Neste caso os nomes governantes e governados são antes abstrações que em nada expressam as práticas singulares de época. Em um momento estes nomes podem estar relacionados tanto a práticas disciplinares que despolitizam os corpos e prescreve-lhes o que fazer; em outro pode representar a relação onde certas coisas são proibidas, mas sem seus limites interiores podem movimentar se livremente; em mais outro pode expressar o poder do soberano de explorar a fauna humana habitante de seu principado. Deste modo percebe-se que os nomes são insuficientes, ou melhor, aparam as arestas das práticas singulares para que estas caibam dentro de seus padrões de suficiência.

Outras tantas práticas são possíveis quando deixados de lado os nomes-suficientes e observamos o que as pessoas realmente fazem. Este exercício coloca em termos de descontinuidades os acontecimentos humanos, situa-os no vazio, limitando-os. Os objetos naturais “governados” e “governantes” não resistem a tal análise, pois pretendem colocar-se fora da história, quando tudo se relaciona com tudo e tudo é histórico. As diferentes práticas objetivam, ou seja, produzem “objetos naturais” que em uma dada época é população, em outra uma fauna e em outra uma horda; aqui os objetos naturais através da história perdem totalmente o sentido prático e torna-se uma operação racional teórica. Então uma revolução científica se efetiva onde as aparências são invertidas para que apareçam claramente as prática raras, os bibelôs de época, tal qual uma roupa que do lado avesso mostra suas costuras.

Então, novamente desloca-se a questão. A pergunta feita inscreve-se em um como isto aconteceu? Quais práticas produziram objetos históricos que antes ansiavam pelo sangue das vedetes de arena e quais outras práticas tão divergentes o repudiava com veemência? Imagina que em uma dada situação, as pessoas fossem realmente como animais, como um rebanho a ser guiado em sua marcha histórica, o pastor não é o seu dono, porém tem o direito de tosquiá-las para seu proveito; cabe a ele garantir a sobrevivência enquanto rebanho frente aos perigos, fraquezas e covardias dos maus instintos animais, à pauladas se necessário. A política do pastor “limita-se a conservar o rebanho em sua marcha histórica; quanto ao resto, sabemos muito bem que os animais são animais. Tentamos não abandonar pelo caminho muitos animais famintos, pois isso desfalcaria o rebanho: se preciso, lhes damos de comer. Damo-lhes, também, o Circo e os gladiadores, de que tanto gostam, pois os animais não são nem morais, nem imorais (...) Num único ponto, que não é a moralidade dos animais, somos impiedosos: em sua energia. Não queremos que o rebanho enfraqueça, pois seria a sua perda e a nossa” (p.156). Este povo-rebanho são os romanos e os pastores são os senadores, assim, a gladiatura funciona como uma “escola para enrijecer os telespectadores”; alguns não a suportam, fraquejam, mas instintivamente os pastores simpatizam com os animais brutos, duros e insensíveis, pois é através deles que o rebanho sobrevive.

Mas “se em vez de carneiros, nos tivessem confiado crianças, se nossa prática tivesse objetivado um povo-criança e nos tivesse objetivado, nós próprios, como reis paternais, nosso comportamento teria sido inteiramente outro: teríamos levado em consideração esse pobre povo e dado razão à medrosa recusa à gladiatura” (p.156). Aqui, os fracos e frágeis ganham a simpatia do rei-pai, afinal as crianças precisam de cuidados e a gladiatura, visto então como assassinato gratuito, foi suspendida, pois é o que de mais grave existia. Mas então por que a prática “guia de rebanho” foi substituída pela prática “mimar crianças”? “Uma dessas razões, no caso, foi que no século IV, em que se tornaram cristãos, os imperadores deixaram, também, de governar por meio da classe senatorial (...) Livre do Senado, administrando por meio dum corpo de simples funcionários, o imperador deixa de exercer o papel de chefe dos guias do rebanho: assume um dos papéis que se oferecem aos verdadeiros monarcas, pais, sacerdotes, etc. E é também por isso que se faz cristão” (p.157).

Foi então o conjunto da história que levou a uma mudança na prática política, nada aqui de racionalizações, muito mais de acasos e contingências. O método então funciona na descrição positiva do que um imperador paternal faz e o que faz um guia de rebanho; então as práticas aparecem não como obscuro subsolo da história, porém muito simplesmente o que fazem as pessoas. “Que derrocada da filosofia política racionalizadora! Quanto vazio ao redor desses bibelôs raros e de época, quanto espaço entre eles para outras objetivações ainda não imaginadas! Pois a lista de objetivações permanece aberta, diferentemente dos objetos naturais” (p.157).

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Carta a uma amiga que inventa

Crônicas de um trabalho docente: A invenção como imanente a vida (Título da tese de Ana Paula)

A escrita da Paula me coloca uma questão, antes mesmo que ela comece a colocar as questões que envolvem a sua discussão, naquilo que é formal na organização de uma tese. Paula se nega a fazer uma introdução do seu trabalho. Traz para si uma vontade de autonomia para quem escreve e para quem vai ler. Daí, rapidamente, diz de uma política de estabelecer protocolos para produção de textos acadêmicos, a qual ela não quer se inserir. Diz que sua tese é uma quebra de protocolo e que seu texto fora escrito com uma vontade de ser útil, de modo não protocolar.
É daí que estabeleço uma questão desde já. Melhor, estabeleço uma problematização que vai nortear a minha fala aqui; hoje. Como ler algo que se quer útil e não diz de um modo de otimizar essa utilidade? Parece algo muito estranho, se constratado como os modos de escrever no contemporâneo.
É raro, hoje em dia, se deparar com uma escrita, seja ela acadêmica, literária ou técnica, onde não exista um modo de decodificação posto aos olhos dispostos à leitura. Aprendemos isso na escola, em casa e na rua. Aprendemos isso com a supervalorização que a imagem possui na atualidade. Paul Virilio denuncia essa situação onde um modo de viver acelerado induz um consumo instantâneo das imagens. Consumo instantâneo das coisas, só é possível quando pre-existe uma codificação que relaciona um ponto ao outro, que serializa cadeias de relação entre as coisas, antes mesmo que essas coisas se façam, aconteçam.
Paula, na política de escrita que utiliza para falar do trabalho docente, encontra um modo de resistir a esses modos seriais de dizer e de viver. Faz uma aposta no jogo jogado e denuncia o jogo arrumado.
Daí, Paula diz que seu trabalho de produção de tese se faz como uma cartografia, e de como essa experiência se dava e que ganhava linhas. São variadas as experiências que confirmam essa decisão metodológica no seu texto, no desenho que foi ela procedendo, sem que houvesse antes uma imagem que pudesse refletir ou ter por referência.
Paula assim, nas suas crônicas, perforre movimentos, percepções, sensibilidades, relacionamentos que se fazem palavras na produção de sua carta; de seu texto. Dispõe uma heterogenese em folhas a serem impressas em papel A4, e agora, ali sentada, aguarda a leitura institucional daquilo que fez. É impotante lembrar que ela, ainda no texto, diz também que não o fez sozinha. Muitos, uma multidão lhe acompanhava na produção das páginas.
Mas isso que foi cartografia para a Paula-hifem-multidão (explicar se for o caso), merece ser lido, pensado e vivido agora apenas como um mapa, que é a coisa mais objetiva que se pode falar de uma tese? Ou é possível um outro modo de leitura para essa escrita?
Bom, minha experiência é pouca no ramo de falar de teses. Assim, como um noviço nesse tipo de demanda, posso confessar aqui, que ainda não aprendi a ler teses como teses. Por isso, peço licença aos companheiros de banca, para não ler a tese da Paula, como uma tese, no sentido mais estrito que essa palavra possa ter. Digo que esse pedido não trata de um desejo do meu eu. Trata-se antes de uma impossibilidade minha, que diante desse texto não ver como ser um EU que sabe ler teses. Principalmente quando a tese, já desde a sua não-introdução, sugere ser outra coisa além de tese.
Assim sendo, vou buscar a melhor coisa que creio ser possível, para percorrer esse texto e depois falar dele. Vou buscar uma intangível alteridade de ser Multidão-hifem-Paula-Simone, Nice, Virginia, Adriano-Teresa-Lia-Rosana-Roberta-Lidia-João-Beth-Povo-da-Beth-Instituições de ensino privadas e públicas, bergon, foucault, deleuze, pássaro azul e mais um bocado de outras possibilidades não nomeadas. Assim quem sabe, possa encontrar a cadência de escrita para dizer dessa leitura. Assim quem sabe, possa fazer parte dessa diferença, que grita ao ouvir a ordem de silêncio. Assim, quem sabe, possa utilizar a precariedade do ser professor, não apenas como um estado de falta, mas como uma condição de insuficiência. Retirei essas duas possibilidades de leitura do dicionário do Houaiss.
Olhando lá o termo e fazendo dele uma leitura um tanto quanto intuitiva, pensei que a condição de precariedade só é falta, quando o sujeito se quer absoluto, melhor resoluto em seus propósitos. Se o sujeito se diz insuficiente, ele não se torna refém daquilo que se mostra precário, pois ele já assumiu essa condição para si. Condição de passagem. Condição de não se querer perpétuo. Uma política de estar na multidão. Uma ética de ser apenas depois da experiência. Uma estética de não instrumentalizar as cores que usa para pintar. Eis em mim, a condição de insuficiência. Uma insuficiência que não se representa. Que não se quer entre o mais e o menos. Uma insuficiência sem relógio de pulso. Uma insuficiência da utilidade no mundo do descartável.
Assim, aqui vou por atalhos. Passo pela página, melhor pela latitude 141 de sua carta, quando ao entrar para dar uma aula numa instituição privada de ensino, um professor ao fechar a porta, imaginava a sala num outro espaço institucional em busca de fazer o insuficiente num espaço que se queria suficiente. Lembro que vivi e sobrevivi por quase seis anos trabalhando no ensino privado, utilizando dessa tática. Quase sempre. Muitas vezes a utilizava de modo solitário para fazer passar o tempo da obrigação do fazer, noutras de modo compartilhado, pois pesava também para os alunos a condição de suficiência, de vigilância da manutenção dos níveis de comportamento previamente estabelecidos. Acontecimentos alegres e tristes, como os que você relata em suas crônicas.
Bom, agora estou há três anos no ensino superior público e semana passada, quase entrei em pânico, quando por pouco não reviveu em mim a tática disposta na latitude 141, já experimentada por mim em outros territórios.
Em alguma outra latitude de sua carta, você diz que é frágil a fronteira entre as instituições de ensino público e privado. Relia sua carta, quando passei por essa experiência que vou dizer aqui de modo breve. Experiência que articula as cidades de aracaju e vitória, que relaciona a possibilidade de ser um eu com a possibilidade de estar na multidão.
A universidade federal de sergipe, onde trabalho, vive um violento processo de expansão. Nesse tempo que estou lá, dobraram número de alunos, de cursos de graduação, de professores. Triplicaram os cursos de pós-graduação, de alunos vinculados ao pibic e por aí vai. Uma revolução se fez na cultura do Campus. Prédios se edificam a todo momento e os espaços para estacionamento de carros estão esgotados. Entretanto, as marcas desse processo se estabelecem essencialmente na política do mais e do menos. Na contabilidade gerencial que busca anular a paixão, a autonomia e a singularidade que emergem nos movimentos da multidão.
Veja só, semana passada, eu fui ao encontro de uma turma de Psicologia Geral, com 55 alunos, de pelo menos oito cursos diferentes. Íamos lá falar de William Wundt e a experiência imediata. Cumprimento os alunos, faço a verificação de frequência e pergunto quem leu o texto. Cinco levantam a mão. Após essa resposta, algo passa a se movimentar em mim. Eu não sei o que é, mas sei do que se trata.
Percorre-me uma força estranha. Algo que naquele momento não me fazia bem e punha em questão o sentido do trabalho que deveria ser feito. Silenciei, mas via um transtorno se encaminhar em meu corpo. Bom, mas se uma força estranha leva Caetano Veloso, Roberto Carlos e uma multidão a cantar a plenos pulmões, desde o começo dos anos oitenta do século passado,não poderia essa força estranha me fazer calar naquele momento. Entre nós, aqui, eu já não sou muito de calar.
Voltando. Não poderia deixar retornar a condição de um silêncio que adoece, mas que me permitia fazer do sulficiente, insuficiente na UVV. Era uma tática de sobrevida e também de vida importante, mas lá havia um patrão e um salário que ele pagava. Nas instiuições públicas de ensino superior, o patrão não fala, não manda calar, não manda trabalhar. Enfim o patrão não manda.
Nessa turma, quantitativamente falando, frequentam as aulas, 44 alunos. Uma entrou há poucos dias em licença maternidade. Inventou um filho para deixar de assistir as aulas. Eis uma latitude interessante. Eis um atalho. Pensei com meus botões; esse povo precisa engravidar.
Perguntei quem estava com o texto. Quase todos.
Então pedi que o lessem por meia hora. Após esse tempo pedi que produzissem uma pergunta sobre o que leram, que necessariamente começasse por O QUE, ou QUEM, ou POR QUE, ou COMO. Cinco minutos para realizar a tarefa. Devo dizer que pedi também que colocassem o nome abaixo da questão produzida, dando assim um tom de avaliação ao procedimento.
Passados os cinco minutos, fui ter com eles. Todos haviam feito a tal questão. Disse eu então: Quem fez a questão começando com O QUE? Resposta: tantos de braços levantados. Quem fez a questão começando com Por que? Outros tantos. Quem fez a questão começado com a palavra quem? Menos, mas ainda alguns tantos.
Daí perguntei. Quem fez a questão começado com a palavra COMO? Um braço se levanta no meio da sala. Um braço, apenas um braço.
Daí fui conversar com eles sobre o que querem essas palavras quando perguntam. Para onde elas apontam. Que tipo de saber elas edificam e sustentam. Engraçado que o texto de trabalho anterior havia sido um que organiza a história da psicologia como campo de práticas e saberes, dispondo tanto lógicas e procedimentos hermenêuticas como também daquilo que Foucault, ao olhar pros inventos vivos dos gregos, deu o nome de estética da existência.
O texto não havia ainda reverberado nos estudantes e eu ali, buscando lidar com a tal força estranha. Buscado percorrê-la, antes que ela me percorresse.
Propus então a condição de gravidez aos alunos. Quem quizesse poderia ir embora e ficar em casa até o momento da avaliação. O tal do REUNI já fez isso antes de mim. Reprovado por falta e com média, toca adiante a vida na grade curricular.
Quem não quizesse engravidar, ficaria ali comigo. Por vontade, lendo os textos e participando das aulas. Dei 48 horas para decidirem, afinal engravidar não é coisa sem consequência. Na quinta-feira, voltaram todos. Perguntei quem estava preparado para engravidar. Ninguém levanta o braço e eu ainda estava a percorre a força. Não havia ainda a insuficiência necessária para a vocalização de um canto.
Insuflei a moçada. Aliviei os riscos. Disse que seria feito o mesmo trabalho da aluna gestante e que ela ainda não sabia que trabalho seria esse. Um aluno quis que adiantasse o ter do tal trabalho. Disse que não poderia fazer isso. Uma gravidez leva tempo e o trabalho seria o momento do parto. Não poderia ali me fazer parteiro ou anestesista. Também não era possível admitir que dava para ficar grávido e ter o filho no mesmo dia. Então ele desistiu. Continuamos a nossa negociação e encontramos um bom termo para os nossos encontros.
Não vou continuar nessa história, pois preciso voltar para esta, que fala mais alto em nosso presente. Voltar para esse momento em que escrevo para a Paula.
Paula, minha amiga. Creio que esses alunos que encontramos em qualquer lugar, denunciam tão bem como você, essa condição de precisar ser suficiente, quando o viver, o brincar de viver, demanda insuficiência.
Não vejo então outra possibilidade, que não levar a cadência que você traz para as nossas aulas. Para mim com eles. Quando você decide por um texto não providencial, de um modo muito aberto você me diz como não deixar que os alunos engravidem antes do tempo, antes que uma vontade potende articule tal decisão.
Fosse apostar, diria que esse alunos, que são pra mim, a melhor expressão dessa fronteira que instala indiferença na vida, quando muito, passaram seu tempo lendo textos da suficiência. Textos da sufuciência que os percorriam no ensino fudamental e médio. Aprendendo durante esse tempo a transformar a insuficiência que bem traziam em suficiência. Isso em qualquer disciplina. História, geografia, matemática, ciências, língua portuiguesa e literatura. Algo tipo assim. Aulas de literatura e interpretação do texto. Quem é o protagonista? Quem é o antagonista? Do que trata o texto? Não se pergunta que atalhos o texto produz em seus leitores.
A única aluna que fez uma questão com a palavra COMO, foi sem saber um atalho para que eu invertesse em mim, a relação com a tal força estranha. Entretanto, ela não sabia dizer bem o que lhe levou a fazer tal formulação. Disse que queria saber do processo. Só isso. Pode parecer muito. Pode parecer pouco. Mas pode também não se tratar disso. Melhor, assim como o seu texto, a questão dela, em mim, precisa não se tratar disso.
Desse modo a questão dela se fez rara, assim como é rara a sua tese. Sua carta-tese é rara em muitos sentidos. É rara em sua singularidade que expressa paixão, cuidado e compromisso. Isso é bom. Muito bom e bonito. Mas ela é rara também em frequência. Quando estava em formação acadêmica, não me foram disponibilizados textos como o seu. Textos-atalhos. Minto. As vezes apareciam, mas eram raros, escassos e distantes enquanto possibilidade de existência e utilidade. A arte lá, a gente cá.
Seu texto me trouxe aqui. Me trouxe até a UFES. A UFES onde cursamos psicologia.
Seu texto agora, carrego para a minha UFS, para que meus alunos, amigos e outros, possam saber da sua força e da sua escrita-multidão. Para que possam também saber que não é preciso saber tanto quanto diz uma condição de suficiência e que os protocolos podem existir. Devem existir. Mas eles não são condição para o belo, para o diferente, para a invenção. Eles são condição para a repetição. São condição para a necessidade. Para uma ordenação de crises que a própria ideologia da ordem ajudou a forjar.
Sua carta é outra coisa. Ele é o texto que precisa estar presente em todo dia. Precisamos perserverar no trabalho pela condição de insuficiência. Sabemos bem disso. Não sabemos bem como fazer isso, pois isso só se faz em ato.
Mas preciso dizer que sua carta me foi útil e que acredito que ela vai continuar sendo, pois é um belo invento e como bem diz você, a invenção é imanente a vida!
Agradeço a você e a Beth Barros pela leitura do texto e por estar aqui com vocês, tecendo esse acontecimento. É isso. Tenha meu abraço!

PS: Essa foi a minha fala ao participar da banca de doutoramento de Ana Paula Figueredo Louzada, junto ao PPGE/UFES

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Parte III. Kant, o Tempo Fora dos Eixos, o "Eu é um Outro"

Pensar Kant como um intercessor de Deleuze suscitou-me incompreensões mil, de início. Como o cara que é considerado o estandarte da filosofia representativa pode ter influenciado diretamente um pensador da diferença? Enfim...
Deleuze não escreveu, diretamente, um livro sobre o tempo em Kant, mas Vasconcellos esmiuça tal problemática no Diferença e repetição, A imagem-movimento, A imagem-tempo e no artigo Sur quatre formules poétique qui pourraient résumer la philosophie kantienne. Este último resume poeticamente o kantismo em quatro sentenças da literatura, das quais trabalharemos com as duas primeiras. Uma fala do Hamlet: "The time is out of joint", e um trecho duma carta de Rimbaud: "Je est un autre".
A primeira delas revela a primeira grande reversão kantiana, nos ditos do Deleuze. É o movimento que se subordina ao tempo e não o contrário como o afirmava o estagirita; nem é, o tempo, uma imagem móvel do Eterno. Nem Aristóteles nem Platão! O tempo sai de seus eixos e rompe com a medida, o intervalo e o número. Troca a cardinalidade pela ordem! O tempo não é mais definido por sucessões, simultaneidades ou permanências. Nãos são tais coisas que definem o tempo, mas é o tempo que define como sucessivas, simultâneas ou permanentes as partes do movimento como nele estão situadas. Tudo o que se move está no tempo, mas o tempo mesmo é imutável, embora não eterno. É, isso sim, a forma de tudo aquilo que não é eterno, é a forma do movimento e da mudança!
A segunda fórmula poética também vincula Kant ao pensamento deleuziano em relação ao tempo, complementando as questões impostas pela fórmula anterior. A articulação de Deleuze - fundamental à sua filosofia diferencial - entre tempo, subjetividade e pensamento coloca em jogo a interiorização do tempo, pondo em questão a ruptura duma unidade do eu. O eu é um outro! É aqui que se insere a crítica deleuziana às filosofias da consciência, como - exemplifica Vasconcellos e Deleuze - o cartesianismo e a fenomenologia [nota: a fenomenologia husserliana é, sim, pautanda numa consciência pura e transcendental, mas a hermenêutica heideggeriana não é uma psicologia. O próprio Heidegger afirma isto, numa de suas preleções sobre introdução à filosofia...].
O movimento - nesta perspectiva - deixa de ser espacializado e muda sua natureza, visto que agora se subordina ao tempo. Um tempo que não é circular ou numérico, mas um tempo que se interioriza no sujeito do conhecimento. Kant introduz o tempo no pensamento! Pensar tornar-se um movimento da alma que se desdobra num duplo eu, num eu que é, também, outro. Essa interioridade do tempo não nos diz, tão somente, que o tempo nos é interior. Nós, melhor dizendo, é que somos interiores a ele! Tal formalização do tempo reivindica uma subjetividade para além de Descartes e Hume, vinculada à temporalidade entre a imanência de um e a transcendência do outro: uma subjetividade transcendental [nota 2: dêem uma relida num post anterior sobre o Kant, principalmente na parte sobre a Crítica da Razão Pura. Pode esclarecer algumas coisas e suscitar questões noutras...]!
Pensar Kant a partir de Nietzsche e Bergson é a proposta de Vasconcelos nas páginas porvindouras. Nietzsche e seus componentes genéticos e Bergson com a superação do possível/real pelo virtual/atual lançam luz ao kantismo. Mas isto fica para os próximos capítulos. Fim de transmissão...

Dos Intercessores Filosóficos: Bergson, Peirce, Kant; In: VASCONCELLOS, Jorge; Deleuze e o Cinema; Rio de Janeiro; Editora Ciência Moderna Ltda.; 2006; pp.15-46.

domingo, 30 de agosto de 2009

Parte II. Do Signo em Peirce

Diz Vasconcellos de Deleuze (e como é engraçado comprar produtos de terceira mão...): a semiótica peirciana, em sua classificação dos signos propõe, em verdade, uma classificação geral das imagens. Há, em Peirce, uma relação direta entre signo e imagem. Um signo seria alguma coisa que admita, ao menos, um "interpretante". Nesta brincadeira, Peirce cataloga 76 grupos de signos, distribui-os em três grandes categorias (ícones, índices e símbolos), divide-os numa tricotomia signalética (qualisigno, synsigno e legisigno), organiza-os numa nova tripartição (rema, dicissigno, argumento)... Logorréias, verborragias, et ceteras e blá-blá-blás pouco necessários ao ponto que o próprio Vasconcellos quereria chegar em sua tese. Deleuze-leitor-de-Peirce vê tal teoria dos signos muito mais como uma intercessão ao pensamento bergsoniano do que pelas observações peirceanas mesmas. O ponto final: Deleuze quer propor - Vasconcellos o diz! - uma articulação entre Peirce e Bergson, signo e imagem.
Este, no entanto, é o primeiro movimento feito por Deleuze. Esta relação signo-imagem é metade do trajeto deleuziano no livro do Vasconcellos. Tão relevante quanto esta articulação é uma segunda conexão importantíssima ao devir-cinema da filosofia deleuziana, da qual a primeira é apenas ponte: a junção signo-tempo, que coloca o signo como força a pôr o pensamento em mobilidade, signo como imagem-tempo e imagem-movimento.
Do cinema nascem signos, signos próprios ao cinema, mas que não se restringem a este domínio. Irrompem! O mundo faz cinema e o cinema se faz no mundo. Ao contrário da semiótica tradicional, que reduz a imagem a um simples enunciado, há, em Peirce, uma reflexão sobre imagem e signos para além de sintagmas, paradigmas e significantes. O cinema, enquanto obra de pensamento, é uma resposta lançada pelo diretor quando este se depara com certo problema. O diretor é um pensador, criador de signos e imagens, sendo estes não o próprio pensamento, mas o que possibilita o mesmo de sair da sua habitual paralisia.
O signo, em Peirce - ou o modo como Deleuze dele se apropria, ou o modo como Vasconcellos lê a leitura de Deleuze, ou qualquer outra coisa que o valha -, desta maneira, não se restringiria à linguagem, assim como o cinema não se resume à linguagem, como na psicanálise ou na semiologia. A filosofia deleuziana é pensamento-tempo. Não o tempo subordinado ao movimento, mas o tempo mesmo, o tempo puro, que não muda nunca mas que não se identifica à imutabilidade dum Eterno. É forma vazia, como aponta o transcendentalismo da filosofia kantiana...

Parte I. Da Imagem em Bergson

Fundamental para entendermos o pensamento deleuziano é a filosofia do menino Bergson: cérebro/consciência, matéria/memória, corpo/espírito. Dualismos que não são idealismos. A metafísica da duração bergsoniana é fonte de inspiração - de intercessão, melhor dizendo - à ontologia do virtual de Deleuze. A filosofia da diferença deleuziana é descendente direta da distinção grau/natureza feita por Bergon. No plano da matéria, temos as diferenças de grau; no plano do espírito, as diferenças de natureza.
A diferença, então, relaciona-se a um e a outro destes planos. Na matéria, como metodológica, diferença entre coisas; e no espírito, como ontológica, a diferença mesma, "em si". O que Bergson critica na filosofia que o antecede é o fato da mesma ter visto simples diferenças de grau onde se davam diferenças de natureza: as diferenças entre a faculdade perceptiva cerebral e as funções reflexas medulares, em exemplo. Como corolário, interroga-se o próprio papel da filosofia em sua relação com as coisas, filosofia como acesso direto às coisas, buscando nas mesmas um conceito apropriado ao problema colocado. Conceito, este, que não existe por si, mas apenas enquanto subserviente ao problema. É pelo pensamento - o espírito, em Bergson - que reconhece-se as diferenças de natureza da realidade, recortando - como o bom cozinheiro - o que é da matéria e o que é do espírito.
O rigor metodológico da filosofia bergsoniana identifica-se não a caminhos e técnicas, mas à distinção precisa operada entre grau e natureza pelo bergsonismo. Sua ontologia, igualmente, não se dá por platonismos, mas pela compreensão da diferença nela mesma, cuja trilha de acesso chamamos de intuição. Vasconcellos desdobra a intuição em três movimentos, seguindo as indicações de Deleuze no Bergsonismo: a distinção entre verdadeiros e falsos problemas, colocando, ao nível dos problemas, a verdade no mesmo plano da criação; a articulação das diferenças de natureza com o real; e a colocação de problemas em termos temporais, não espaciais. Uma filosofia problematizante, diferenciante e temporalizante!
Em seguida, é apresentada uma dupla tipologia das multiplicidades, o que - embora possa facilitar o saborear da cozinha bergsoniana - soa-me como retórica desnecessária. Cozinha à base de linguiça! Enfim! Uma é espacial, exterior, simultânea, justaposta, quantitativa, numérica: diferença de grau. A outra é duração pura, interna, sucessiva, fusionada, virtual, contínua: diferença de natureza. Aqui, multiplicidade não se opõe à unidade. Não há o Uno! Distingue-se, ao contrário, duas multiplicidades: uma discreta e uma virtual. E aqui o Vasconcellos faz bonito quando, ao sair da já maçante distinção entre objetividade-atual e subjetividade-virtual, fala sobre o processo de diferenciação. Diz ele que, em Bergson, não deve se opor possibilidade à atualidade. O possível, visto que externo e espacial, é do plano da matéria e do real. É o virtual - e sua atualização - que são do plano do espírito e da memória.
Esta memória - duração! - não equivale a uma sucessão de instantes idênticos a se repetirem. O tempo não é uma sucessão de presentes! O momento seguinte ao presente momento prolonga-se a este, atualizado como memória-lembrança, ao mesmo tempo em que ambos se condensam um sobre o outro, enquanto memória-contração. Não duas memórias, é bom frisar, mas dois aspectos duma única e mesma memória.
Deleuze-leitor-de-Bergson, ao colocar a questão da conservação das lembranças, afirma que esta é um falso problema. O bergsonismo trabalha com um registro do inconsciente diferente do freudiano, visto que a lembrança pura, virtual, não "habita" - ótimo termo - um inconsciente. O inconsciente, em Bergson, é virtual. É o virtual! Logo, não psicológico! O psicológico só se constitui no presente, enquanto o passado-memória-duração é lembrança. Não a imagem-lembrança, mas a lembrança pura, imemorial, ontológica. Destarte, não há diferença de grau entre percepção e lembrança, mas diferença de natureza. Ao vermos diferença de grau entre ambos, instalamos um misto mal-analisado e caimos na "imagem" como uma realidade psicológica!
Chegamos, aqui, no "paradoxo mais profundo da memória". Palavras do Vasconcellos. O passado é contemporâneo do presente que ele, um dia, já foi. Passado e presente não como dois movimentos a se sucederem, mas como elementos coexistentes: o presente, que não para de passar, e o passado, que não para de ser. O tempo-linha cede passagem ao tempo-fluxo. Fluxo do passado, da memória, com sua virtualidade a atualizar em imagens; imagens, estas, que não se reduzem a meros dados psicológicos, adquirindo estatuto de Ser. A consciência, assim, deixa de ser uma fonte produtora de imagens para se tornar um ecrã de projeção das mesmas. Diz o livro que seu papel não é gerar imagens, mas fazer aparecê-las. Prefiro pensar a consciência - e agora dou uma de ousado - não como ecrã-condição-de-possibilidade (o papel de ecrã, deixo ao corpo), mas sim como o aparecimento mesmo da imagem na tela. Consciência-filme! Imagem e lembrança! Somos o fluxo do devir! A consciência é muito bem representada pelo cinematógrafo no tocante aos mecanismos de funcionamento do nosso conhecimento vulgar. Em vez de nos lançarmos ao fluxo das e nas coisas, pomo-nos de fora das coisas mesmas e recompomos o seu devir em termos de inteligência e linguagem. Tempo em termos de Espaço!
[Confesso aos senhores que, agora, dei um salto considerável no texto - quatro ou cinco páginas - pois, embora contribuam para uma compreensão intelectiva da imagem em Bergson, constituem onanismo filosófico, a meu ver. David Hume, sínteses temporais e visões caleidoscópicas serão deixados de lado desta vez...]
Sabemos nós que um filme é uma série de fotografias em sequência, embora enxerguemos tais imagens em movimento, visto que não conseguimos apreender as "imobilidades". Esta impressão de movimento é uma impressão de realidade. O cinema é arte ancorada em imagens, uma imagem que - lembremos - não é psicológica, visto que desligada da percepção voltada à sobrevivência. A imagem em Bergson habita o percepto, percepção "inumana", possuindo caráter ontológico, não psicológico. Imagem virtual, temporal, pura...

Dos Intercessores Filosóficos: Bergson, Peirce, Kant

É esse aí o nome do capítulo, grande e imponente como o próprio. Li, reli, grifei, escrevi e - confesso - já começo a sentir certo desgosto pelo Vasconcellos. Prolixo e repetitivo em algumas partes, pouco claro e explicativo em outras. Seu texto-escultura não mais me causa o espanto grego frente ao belo. Pode ser - e até suspeito disto - pelo meu constante contato frente ao mesmo, tal qual o crítico de estatuarias a procurar chifres na cabeça de Moisés. Analogias à parte, pretendo dividir o texto em três posts: um sobre o Bergson, outro sobre o Peirce e um terceiro sobre o Kant para, além de melhor estruturar nossa discussão, evitar a construção dum texto por demais extenso e cansativo...

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

uma feira em laranjeiras

Este breve relato tende a contar de uma experiência em outra feira. A cidade de Laranjeiras fica a alguns poucos quilômetros de Aracaju, uma cidade histórica, como dizem. Fui à feira livre de lá, pois fiquei sabendo que com a chegada do campus da UFS, a feira centenária seria transferida das ruas para um pátio. Fui tentado a acompanhar os caminhos que estão se construindo. Mas antes de chegar à feira é importante dizer que os cursos de graduação ministrados no campus Laranjeiras já a três anos e meio, foram neste semestre transferidos para os trapiches – complexo arquitetônico do tempo áureo da cana de açúcar no século XIX, quando a cidade era referência regional, a “Atenas sergipana”. Os prédios passaram por uma ação de restauro para abrigar o campus, porém o centro histórico da cidade foi tombado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) já em 1996. Estas medidas fazem parte do projeto Monumenta que visa resgatar a paisagem urbana através do restauro de seus monumentos. O curioso é que estas medidas de promoção identitária, de resgate da história e da cultura e da musealização de certas práticas enquanto patrimônio imaterial participam de um mesmo pacote de ações e discursos do Estado que transforma as cidades em cidades-imagem, cartões-postais sem vida, cultura enquanto produto de venda nas prateleiras para consumo turístico.

Assim vamos à feira. Ela ocupa a avenida da cidade, artéria principal do centro histórico e ao chegar pela entrada possível aos que vêm de fora da cidade – há outras tantas possibilidades de entrar na feira, mas esta é a primeira quando vindo da rodovia – depara-se com alguns caminhões estacionados cheios de negócios para a venda: alguns com bananas, outros vão de laranja e etc. Não são muitos, mas já são alguns, os homens ficam de cima do caminhão negociando; por entre os caminhões alguns caixotes de madeira ou mesmo plástico servem de sustentação para que outras pessoas também tenham espaço de venda na feira. Ainda aqui, somente dado alguns passos, aparece a estranha percepção de que a feira de lá é aquilo, sem bancas, com as pessoas improvisando para vender coisas espaçadamente na via pública. Mas então um choque, melhor... um soco no estômago, de repente um mergulho num espaço denso, uma quebra no espaço: do rarefeito não há um contínuo ou uma transição tranqüila para o espaço denso onde as bancas estão alojadas. É quase um afogamento em estímulos e sentidos, qualquer tentativa de descrição das sensações seria infeliz.

No dia chovia, tínhamos que desviar bastante das grandes poças d’água formadas em diversos pontos de depressão do solo de pedras calcárias do tempo colonial. Eram realmente grandes, muitas impediam o transito de gente que se apinhava mais ainda entre os contornos dos micro-lagos da via e as bancas. Como dito, a feira toma o espaço da principal via de ligação da cidade, avenida larga que comporta, penso, duas ou talvez três feiras do castelo branco. Talvez seja esta somente uma impressão equivocada, mas foi a que ficou; só conseguia pensar algo como “essa feira é um mundo”. Ela nasceu em torno do mercado da cidade, que fica visinho à universidade, e inchou... tomou, primeiramente, as ruas laterais, depois pulou para a avenida na qual se encontra atualmente – na frente do mercado – e daí começou a crescer e espalhar-se por sua extensão. Em seu início o mercado era ponto intercambaial de entrada e escoamento de produtos chegados pelas águas do Cotinguiba que margeia a cidade, estes eram vendidos em seu interior e posteriormente na feira em seu redor. Hoje não tem mais essa função e em seu interior é vendido, em sua maioria, carnes, farinha e grãos, bem como nas suas partes laterais exteriores. A feira e o mercado funcionam em ritmos acoplados, ou seja, quando funcionando juntos produzem uma batida singular na rua. Comunicam-se através das gentes que circulam em seus espaços. Bastante gente.

Por dentro da feira é difícil estabelecer uma ordenação lógica para as bancas e sua separação por produtos. Em algumas partes mais estreitas formam-se corredores, mas grande parte dela é feita de um imbricamento de bancas que possibilita vários caminhos pelo espaço; não há um traçado determinado como corredores ou circuitos, mas uma confusa virtualidade de passos. Em termos de produtos, vende-se aquilo que é usual em uma feira livre e mais: é muito grande a quantidade de bancas com artigos de vestuário, cd’s e dvd’s, e inesperadamente até de acessórios para bicicletas – com pneu e tudo – e mini mercadinhos itinerantes vindos de outras cidades. Curiosas também são algumas práticas visíveis que destoam bastante das normas higiênicas: a rua fica bastante suja, bastante lixo abrigado entre as pedras calcárias, lixo que incomoda os defensores da mudança de local; cães circulam pela feira e alimenta-se de pelancas e restos fornecidos pelos próprios feirantes por ali, um banquete para estes animais; uma cena-ruído apareceu quando vi a murada que separa o fundo do mercado do rio Cotinguiba, rio visivelmente poluído, sendo utilizada como tábua de cortar carne no cru; a lama que misturada com os dejetos da feria, não parecia ser um incômodo; coisas que agridem as sensibilidades higienizadas e incrementam a imagem medieval do espaço

A feira que acontece no sábado de manhã mobiliza toda a cidade. As ruas em volta do centro ficam cheias; é gente que caminha, que compra, que conversa, que paquera... Ela institui um ponto comum de encontro para as pessoas da cidade, diferentemente das feiras de Aracaju que se concentram nos bairros, lá, andando para longe da feira, percebe-se as ruas esvaziadas, ao passo que com a proximidade os sons das vozes aumentam e as gentes aparecem. Comumente durante a semana não é assim que o centro se movimenta. Fiquei com a impressão que nem todo mundo faz a feira, ou no mínimo gastam mais tempo andando, conversando e mesmo paquerando antes de encherem-se de pacotes e ir para outros cantos. Estes fazeres das pessoas no além feira na feira forjam o espaço publico, um momento de trocas possíveis onde a política pode aparecer.

Coisa certa é a mudança da feira de lugar. Ela agride a rua higienicamente e torna-se um empecilho a transformação do centro histórico em lugar turístico. Haverá um investimento grande na cidade neste viés, um incentivo à ocupação de pousadas e restauro do patrimônio para atrair capital dos compradores de cultura e história como souvenir. A feira irá para a praça de eventos da cidade que fica do outro lado do rio, lugar mais organizado e de fácil limpeza, como afirmam os discursos modernos que atravessam e dizem da feira; há ainda a promessa de construção de uma ponte que liga diretamente o mercado ao novo espaço da feira. Essa mudança ocorrerá em Setembro, se não me engano. Aqui abro espaço para conversa, já me demorei de mais...

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Algumas referências: Conversas com estudandes de arquitetura do campus Laranjeiras; conversa com Ariosvaldo, jornalista de Laranjeiras; Video da fala de uma arquiteta do IPHAN e da prefeita de laranjeira sobre a feira; Wenders, Wim. A paisagem urbana. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nascional, No. 23 (Cidade), Rio de Janeiro, 1994; Jacques, Paola Berenstein. Notas sobre o espaço público e Imagens da cidade. disponível em www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq110/arq110_02.asp.