segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Parte III. Kant, o Tempo Fora dos Eixos, o "Eu é um Outro"

Pensar Kant como um intercessor de Deleuze suscitou-me incompreensões mil, de início. Como o cara que é considerado o estandarte da filosofia representativa pode ter influenciado diretamente um pensador da diferença? Enfim...
Deleuze não escreveu, diretamente, um livro sobre o tempo em Kant, mas Vasconcellos esmiuça tal problemática no Diferença e repetição, A imagem-movimento, A imagem-tempo e no artigo Sur quatre formules poétique qui pourraient résumer la philosophie kantienne. Este último resume poeticamente o kantismo em quatro sentenças da literatura, das quais trabalharemos com as duas primeiras. Uma fala do Hamlet: "The time is out of joint", e um trecho duma carta de Rimbaud: "Je est un autre".
A primeira delas revela a primeira grande reversão kantiana, nos ditos do Deleuze. É o movimento que se subordina ao tempo e não o contrário como o afirmava o estagirita; nem é, o tempo, uma imagem móvel do Eterno. Nem Aristóteles nem Platão! O tempo sai de seus eixos e rompe com a medida, o intervalo e o número. Troca a cardinalidade pela ordem! O tempo não é mais definido por sucessões, simultaneidades ou permanências. Nãos são tais coisas que definem o tempo, mas é o tempo que define como sucessivas, simultâneas ou permanentes as partes do movimento como nele estão situadas. Tudo o que se move está no tempo, mas o tempo mesmo é imutável, embora não eterno. É, isso sim, a forma de tudo aquilo que não é eterno, é a forma do movimento e da mudança!
A segunda fórmula poética também vincula Kant ao pensamento deleuziano em relação ao tempo, complementando as questões impostas pela fórmula anterior. A articulação de Deleuze - fundamental à sua filosofia diferencial - entre tempo, subjetividade e pensamento coloca em jogo a interiorização do tempo, pondo em questão a ruptura duma unidade do eu. O eu é um outro! É aqui que se insere a crítica deleuziana às filosofias da consciência, como - exemplifica Vasconcellos e Deleuze - o cartesianismo e a fenomenologia [nota: a fenomenologia husserliana é, sim, pautanda numa consciência pura e transcendental, mas a hermenêutica heideggeriana não é uma psicologia. O próprio Heidegger afirma isto, numa de suas preleções sobre introdução à filosofia...].
O movimento - nesta perspectiva - deixa de ser espacializado e muda sua natureza, visto que agora se subordina ao tempo. Um tempo que não é circular ou numérico, mas um tempo que se interioriza no sujeito do conhecimento. Kant introduz o tempo no pensamento! Pensar tornar-se um movimento da alma que se desdobra num duplo eu, num eu que é, também, outro. Essa interioridade do tempo não nos diz, tão somente, que o tempo nos é interior. Nós, melhor dizendo, é que somos interiores a ele! Tal formalização do tempo reivindica uma subjetividade para além de Descartes e Hume, vinculada à temporalidade entre a imanência de um e a transcendência do outro: uma subjetividade transcendental [nota 2: dêem uma relida num post anterior sobre o Kant, principalmente na parte sobre a Crítica da Razão Pura. Pode esclarecer algumas coisas e suscitar questões noutras...]!
Pensar Kant a partir de Nietzsche e Bergson é a proposta de Vasconcelos nas páginas porvindouras. Nietzsche e seus componentes genéticos e Bergson com a superação do possível/real pelo virtual/atual lançam luz ao kantismo. Mas isto fica para os próximos capítulos. Fim de transmissão...

Dos Intercessores Filosóficos: Bergson, Peirce, Kant; In: VASCONCELLOS, Jorge; Deleuze e o Cinema; Rio de Janeiro; Editora Ciência Moderna Ltda.; 2006; pp.15-46.

Um comentário:

Kleber disse...

nos ecos da sua transmissão, queria saber mais sobre a troca da "cardinalidade pela ordem", quando fala do tempo. Não ficou tranquilo também essa idéia de imutável não eterno. Por fim, diz vc que o Kant introduz o tempo no pensamento. Li, mas queria saber de novo, melhor, com outras palavras, COMO?
ABRAÇO!