sábado, 29 de maio de 2010

Metodologia Temporal

Já no escritório, após sair da Rodoviária com João e Maicon, conversa vai, conversa vem, e João (creio) insinua uma possibilidade de método para o nosso fazer. É mais uma expressão em busca de sentidos possíveis. Metodologia Temporal (MT).
Quem está na chuva é para se molhar. Molham-se os que correm da chuva e os que ficam na chuva. A MT volta-se para os dois casos, creio.
Os que correm da chuva, melhor do temporal, levam seus suspiros e correntes de água, mesmo sem querer; pelo corpo, nos calçados e bainha das calças, por exemplo. Mas tendem a se sentir secos quando protegidos. O que sabem da experiência?
Os que mergulham no temporal e embriagam-se com o vento e a precipitação da água, são conexões com o fenômeno, e sem poder ser nele ou mesmo ele, com ele se encontram, como um par.
Depois disso, podem dizer da experiência numa outra articulação.
Será que faz sentido? "Será que vai chover?".
Convenço-me que estou latoutando. E aí?

Histórias de um homem que viu Deus

Depois de uma semana, retorno ao banco disposto em frente a parada do ônibus que faz o trajeto para São Cristovão. Os ônibus carregam seu motor na parte da frente e esses em funcionamento, tremem a três passos dos bancos de espera, que são, já, o limite da passagem entre o terminal e os coletivos. Daí, quando nas paradas encontram-se todos os ônibus alinhados, forma-se um corredor ensurdecedor e de ar bastante carregado pela queima do diesel.
Acostumar-se a essa condição, para quem passa o dia ali, deve trazer em algum tempo, comprometimentos auditivos e respiratórios. Entretanto não se percebe com facilidade reclamações nesse sentido. Nem entre os ambulantes, os fiscais, os motoristas, os de passagem e outros. Pareço ser eu, o mais incomodado com essa situação. O barulhos dos infernos e o vapor das descargas dos ônibus, em uma tarde quente, provocam um certo mal estar. A pequena rodoviária, cravada no coração do centro da cidade, se incomoda pouco com isso.
Encontro um lugar no banco e sento. Preparo os ouvidos para o exercício que chamamos de “Forrest Gump as avessas”. Escutar. Sento entre duas mulheres que conversam com outras pessoas. Para a esquerda a mulher conversa com sua família e de lá escuto alguém sugerir a possibilidade de voltar para casa de Topic. Alternativas à rodoviária se fazem na sua adjacência. A senhora, com ares de cansaço e que é o centro das preocupações da família acena com uma recusa. A minha direito a outra mulher conversa com um homem, que adiante, buscará conversa comigo. Trata-se do homem que já viu Deus. Talvez essa peculiaridade tenha afastado rapidamente a mulher do banco.
Passados alguns instantes, Zé, o homem que viu Deus, já está ao meu lado e diz em voz baixa e grave dos risco de falar coisas ruins: “falar coisa ruim é ruim, falar coisa ruim é ruim...”. Não escuto bem e peço que repita e ele o faz, já trazendo a história. Disse que um homem, seu amigo, estava em coma no hospital. Levara 200 pontos na barriga, cem internos e 100 externos e que ele falava e fazia muitas coisas ruins. Que seria um matador e que encontrara sua sina; a vingança que um dia chega. Conta um pouco mais da história do matador e logo pula para a sua conversão. É disso que ele quer tratar.
Zé aparenta 40 anos. Não cheira a bebida. Camisa e bermuda bem surrada e nos pés um par de chinelos bem gastos. Moreno e na boca lhe faltam alguns dentes. Tem um fino bigode e cabelo curto e penteado. Esse homem diz que um dia fora ruim também. Que dizia e fazia coisas ruins, até que resolveu pedir a Deus uma transformação na vida. Sem apontar para ressentimentos, acerta com Deus que vai fazer e pensar coisas boas, somente. E Deus, ao seus olhos e ouvidos, parece ter aceitar o trato. Diz que morava numa casinha no pé da serra no município de Simão Dias, quando seu deu a aparição. Um homem alto, vestido de amarelo, que ficou de pé por cima de uma árvore, talvez, para Zé, como a dizer que dali em diante sua vida deviria seguir o caminho do bem.
Zé contou ainda algumas histórias com a presença de Deus em sua vida, até que um senhor, vestido a sertaneja e de chapéu senta ao lado de Zé em toma a palavra para contar de suas participações em guerras, de como sobreviveu a um acidente aéreo e das suas táticas para ganhar em jogos de azar. Apesar de ter nascido em 1935, conta das guerras de 1915 a 1945, insinuando ter combatido por ali. Zé não tem vez de voz diante de senhor de chapéu. “Olha ganhei na milhar 3447 com o acidente do avião da França. O avião era da Tam 447. Tam tem três letras. Aí botei 3, 447, trinta e quatro, quarenta e sete. Acertei a milhar. Ganhei 3 mil reais”.
Logo encosta o ônibus para São Cristovão. O velho levante e se despede e Zé me olha e diz como pode um senhor inventar tanta história. É nesse momento em que aparecem João e Maicon, e ao apresentar Zé a eles, incentivo-o a falar de sua vida espiritual para eles.
Nessa tarde ainda conversei com uma senhora que tinha três problemas graves na coluna, redução, bico de papagaio e outro, que não lembro ou ela não disse. Registro também o vendedor de bonecos do Pica-pau e a minha condição de aprendiz daquele universo de passagem. Sentar no banco e esperar as histórias pegarem outros caminhos.
PS: Zé me contou outras façanhas suas como o dia em que deus lhe deu um porco e da sua viagem a São Paulo, a pé, que durou três meses. Noutra postagem retorno com elas.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Uma tarde desfaz a idéia de que já é tarde

Estive quinta-feira passada na rodoviária do centro de Aracaju. O ônibus* começa a passar por ali, com vontade de saber daquele lugar. Há muitas possibilidades de estudos urbanos nessa relação entre o centro e a rodoviária velha. Em conversa na UfS, já havíamos apontado para algumas, entretanto, nessa quinta, sentado num banco, aguardando os companheiros de estudos, dei-me com a prosa de João, vendedor de dvd's e cd's, que ao meu lado, após tomar um banho de desodorante, quis me dizer de um tanto de sua vida.
“Faz uns seis anos que não vou a Riachuelo”. Repetiu essa frase umas três vezes, até que eu, ainda em busca de alguma audição daquele lugar, lhe compreendesse. Daí, veio a conversa e ele contou de outros tempos em Riachuelo e de outros trabalhos que lhe deram sustento e de outras cidades-lugares que lhe eram importantes.
Não era necessário levantar a bola para que João, que naquela tarde estava ali por nada, tocasse seu discurso. Imaginei que esperava uma mulher. O amor pulsando na rodoviária era denunciado no cheiro e na voz deambulante de João, mas isso é suposição minha.
João não falou de intimidade. Narrou coisas da sua experiência. Coisas que sua história conta com vontade de se repartir. Penso que assim, como em João, aqueles bancos de madeira da rodoviária velha escutem infinitas histórias que os ônibus interrompem e carregam para outros lugares de Sergipe.
Minha vontade é de sentar ali, toda semana, em busca de contadores de histórias. Coisas que acontecem sem estímulo ou reforço. Talvez quase sem psicologia.
É bom saber que há gente querendo falar da sua vida pra mim, pra qualquer um. Gente desinteressada. Gente que gosta de cuspir conversa. Eis uma boa política. Estou apostando!

* Coletivo de estudos da subjetividade e políticas para a vida

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Da Fabricação à Realidade (II)

Um livro em meu colo; um computador pessoal em minha frente; uma cadeira a me sustentar; uma mesa, ao longe, sob uma pilha de textos que - preguiça dantesca! - tenho de ler ainda hoje. Todos estes objetos que me cercam são, ao mesmo tempo, "fabricados" e "reais". Fácil entender isso. Mas o problema que o Latour nos apresenta, no tocante aos objetos científicos, não se nos afigura tão simples assim. Sua tese paradoxal: é, justamente, por serem artificiais e fabricados que tais objetos científicos adiquirem uma existência autônoma independente desta mesma artificialidade e fabricação!
A aparente viagem na maionese empreendida por Latour torna-se ainda mais paradoxa quando percebemos duas epistemologias contraditórias se justapondo no enunciado acima; a saber, um Construtivismo e um Realismo. Pra melhor preparar nossa salada, uma pitadinha a mais de Pasteur e de seu ácido lático não nos fará mal. Um experimento, como já coloquei em postagem anterior, é um ato - metáforas teatrais e musicais são válidas, aqui - montado pelo cientista/diretor/humano/Pasteur para fazer o objeto/atuante/não-humano/fermento aparecer por si mesmo. O labor e a oração do cientista fazem com que um outro plano de referência - uma transcendência absoluta, derivada dessa imanência relacional - se desenvolva. A referência do cientista-diretor delega, através de sua atividade, existência à referência do objeto-ator.
Esse é o momento em que invocamos nossos palavrões mais escabrosos diante de tão confusa explicação! É aqui que nos perguntamos: qual o problema da distinção sociedade-natureza, epistemologia-ontologia, palavras-coisas? Pra que precisamos dispender tanta energia intelectual nessa colcha de retalhos filosófica que o Latour nos traz se, ao que parece, o acordo moderno que distingue história de realidade é bem sucedido em trazer felicidade a todos nós? Por que não nos damos por satisfeitos com a clássica solução do paralelogramo, que considera o experimento científico como a resultante de dois eixos, o dos estados de coisas e o das tendências e teorias?
Segundo esse modelo, se nenhuma força for exercida pelo eixo das humanidades, teremos acesso ao estado primeiro das coisas. Se os cientistas acreditam nisso não sei, mas o seu Luís - afirma Latour - certamente não cairia nessa, pois sabe a trabalheira que deu tornar visível seu fermento e fazê-lo circular entre seus colegas da Academia. O contrário, caso a força exercida pelo eixo das coisicidades fosse nula, resultaria em que nossas sentenças sobre o mundo seriam configuradas unicamente por nossas teorias e paradigmas legadas pelo social. Pasteur, mais uma vez, não daria muita bola para essa assertiva. Como tão lindamente formulou o Latour, Pasteur autoriza o fermento a autorizá-lo a falar em nome dele. Nossa dificuldade em entender o encaminhamento de Pasteur está na relação de identidade que o próprio estabelece entre duas sentenças que consideramos contraditórias: "o fermento foi fabricado em meu laboratório" e "o fermento independe de minha fabricação" são sinônimas para o nosso amigo Luís! Um realismo construtivista nasce aqui!
Deixamos escapulir, uma vez mais, aquele palavrão inicial. Confusão dos diabos esse Latour causa com seus jogos de linguagem! Uma confusão esclarecedora, no entanto, assim como aqueles aforismos incompreensíveis que um sensei lança ao seu neófito gafanhoto, na esperança de que a flecha atinja seu espírito. Para melhor se fazer entender, Latour utiliza de metáforas outras, para além do paralelogramo. Fala do teatro, para mostrar os dois eixos operando ao mesmo tempo; mostra a metáfora do fetiche, que explica o porquê de esquecermos o trabalho que realizamos para completar a obra e de cedermos à sua autonomia; constrói um modelo ótico, visto fixarmos o olhar em coisas independentes; discorre sobre indústria, para falar da realidade como transformação; apresenta o modelo da trilha, colocando toda mediação em termos daquilo que torna possível o acesso às coisas; e, finalmente, apresenta a articulação - sua melhor metáfora - que enfatiza a independência da coisa, revela os dois eixos ao mesmo tempo, toca no experimento como acontecimento histórico e liga a realidade à quantidade de trabalho!
Não obstante, todas estas analogias bonitas estão erigidas no modelo linguístico das assertivas, no qual há o mundo mudo dum lado e o humano falador doutro. O que o Latour propõe não é mais uma engenharia ou metáfora para suprir o vazio existente entre estes dois mundos, mas um chamado "modelo de proposições", proposições estas que não são nem palavras nem coisas, nem um intermediário das duas. Proposições são atuantes (em exemplo, Pasteur ou seu fermento ou seu laboratório ou a Academia...)! Não são substâncias mudas com uma natureza, mas "ocasiões" de contato entre diferentes entidades, que permitem às mesmas modificar suas definições no curso dum evento (em exemplo, um experimento).
No modelo canônico das assertivas, referenciar é fazer a assertiva corresponder a um estado de coisas, embora criar uma tal semelhança seja impossível. A palavra "fermento" não fermenta! Já no modelo de proposições, não se trata de criar uma ponte por sobre o abismo sujeito-objeto, mas de articular (e aqui nos reapropriamos da metáfora da articulação, mas posta sobre um novo terreno). Aqui - espero que já tenham percebido - o Latour apresenta uma lida totalmente diferente para com a linguagem. Se nos aparatos linguísticos tradicionais a mente humana está cercada de coisas mudas, no novo modelo a articulação se torna não uma função humana, mas uma propriedade das entidades e coisas mesmas, ou melhor, das proposições! Quando Pasteur fala, ele não enuncia em palavras a natureza ontológica do fermento, mas "propõe" que consideremos aquele subproduto duma reação puramente química uma entidade viva e autônoma.
Os termos que o Latour utiliza - ação, testes, evento, articulação - ganham nova significância com o modelo das proposições. É graças à artificialidade do laboratório que o fermento de ácido lático se torna articulado, ganhando estatuto próprio devido à Pasteur, seus experimentos, alguns artigos seus, artigos de outros acadêmicos, ações e reações mil. Articular proposições, aqui, não é simplesmente falar. Nós falamos justamente porque as proposições do mundo são, em si mesmas, articuladas! Confuso? Não mais! Complexo? Talvez! Tal modelo coloca uma relação inteiramente diferente da visão tradicional do homem com o mundo; modelo este que, embora de difícil digestão, é muito mais exato no tocante a capturar a atividade científica que a simples correspondência estéril entre um discurso e um estado de coisas de um mundo "lá fora"...
LATOUR, Bruno; “Da Fabricação à Realidade";
In: A Esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos; trad. Gilson C. C. de Souza; Bauru, SP: EDUSC, 2001; pp. 148-167.