segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Parte III. Kant, o Tempo Fora dos Eixos, o "Eu é um Outro"

Pensar Kant como um intercessor de Deleuze suscitou-me incompreensões mil, de início. Como o cara que é considerado o estandarte da filosofia representativa pode ter influenciado diretamente um pensador da diferença? Enfim...
Deleuze não escreveu, diretamente, um livro sobre o tempo em Kant, mas Vasconcellos esmiuça tal problemática no Diferença e repetição, A imagem-movimento, A imagem-tempo e no artigo Sur quatre formules poétique qui pourraient résumer la philosophie kantienne. Este último resume poeticamente o kantismo em quatro sentenças da literatura, das quais trabalharemos com as duas primeiras. Uma fala do Hamlet: "The time is out of joint", e um trecho duma carta de Rimbaud: "Je est un autre".
A primeira delas revela a primeira grande reversão kantiana, nos ditos do Deleuze. É o movimento que se subordina ao tempo e não o contrário como o afirmava o estagirita; nem é, o tempo, uma imagem móvel do Eterno. Nem Aristóteles nem Platão! O tempo sai de seus eixos e rompe com a medida, o intervalo e o número. Troca a cardinalidade pela ordem! O tempo não é mais definido por sucessões, simultaneidades ou permanências. Nãos são tais coisas que definem o tempo, mas é o tempo que define como sucessivas, simultâneas ou permanentes as partes do movimento como nele estão situadas. Tudo o que se move está no tempo, mas o tempo mesmo é imutável, embora não eterno. É, isso sim, a forma de tudo aquilo que não é eterno, é a forma do movimento e da mudança!
A segunda fórmula poética também vincula Kant ao pensamento deleuziano em relação ao tempo, complementando as questões impostas pela fórmula anterior. A articulação de Deleuze - fundamental à sua filosofia diferencial - entre tempo, subjetividade e pensamento coloca em jogo a interiorização do tempo, pondo em questão a ruptura duma unidade do eu. O eu é um outro! É aqui que se insere a crítica deleuziana às filosofias da consciência, como - exemplifica Vasconcellos e Deleuze - o cartesianismo e a fenomenologia [nota: a fenomenologia husserliana é, sim, pautanda numa consciência pura e transcendental, mas a hermenêutica heideggeriana não é uma psicologia. O próprio Heidegger afirma isto, numa de suas preleções sobre introdução à filosofia...].
O movimento - nesta perspectiva - deixa de ser espacializado e muda sua natureza, visto que agora se subordina ao tempo. Um tempo que não é circular ou numérico, mas um tempo que se interioriza no sujeito do conhecimento. Kant introduz o tempo no pensamento! Pensar tornar-se um movimento da alma que se desdobra num duplo eu, num eu que é, também, outro. Essa interioridade do tempo não nos diz, tão somente, que o tempo nos é interior. Nós, melhor dizendo, é que somos interiores a ele! Tal formalização do tempo reivindica uma subjetividade para além de Descartes e Hume, vinculada à temporalidade entre a imanência de um e a transcendência do outro: uma subjetividade transcendental [nota 2: dêem uma relida num post anterior sobre o Kant, principalmente na parte sobre a Crítica da Razão Pura. Pode esclarecer algumas coisas e suscitar questões noutras...]!
Pensar Kant a partir de Nietzsche e Bergson é a proposta de Vasconcelos nas páginas porvindouras. Nietzsche e seus componentes genéticos e Bergson com a superação do possível/real pelo virtual/atual lançam luz ao kantismo. Mas isto fica para os próximos capítulos. Fim de transmissão...

Dos Intercessores Filosóficos: Bergson, Peirce, Kant; In: VASCONCELLOS, Jorge; Deleuze e o Cinema; Rio de Janeiro; Editora Ciência Moderna Ltda.; 2006; pp.15-46.

domingo, 30 de agosto de 2009

Parte II. Do Signo em Peirce

Diz Vasconcellos de Deleuze (e como é engraçado comprar produtos de terceira mão...): a semiótica peirciana, em sua classificação dos signos propõe, em verdade, uma classificação geral das imagens. Há, em Peirce, uma relação direta entre signo e imagem. Um signo seria alguma coisa que admita, ao menos, um "interpretante". Nesta brincadeira, Peirce cataloga 76 grupos de signos, distribui-os em três grandes categorias (ícones, índices e símbolos), divide-os numa tricotomia signalética (qualisigno, synsigno e legisigno), organiza-os numa nova tripartição (rema, dicissigno, argumento)... Logorréias, verborragias, et ceteras e blá-blá-blás pouco necessários ao ponto que o próprio Vasconcellos quereria chegar em sua tese. Deleuze-leitor-de-Peirce vê tal teoria dos signos muito mais como uma intercessão ao pensamento bergsoniano do que pelas observações peirceanas mesmas. O ponto final: Deleuze quer propor - Vasconcellos o diz! - uma articulação entre Peirce e Bergson, signo e imagem.
Este, no entanto, é o primeiro movimento feito por Deleuze. Esta relação signo-imagem é metade do trajeto deleuziano no livro do Vasconcellos. Tão relevante quanto esta articulação é uma segunda conexão importantíssima ao devir-cinema da filosofia deleuziana, da qual a primeira é apenas ponte: a junção signo-tempo, que coloca o signo como força a pôr o pensamento em mobilidade, signo como imagem-tempo e imagem-movimento.
Do cinema nascem signos, signos próprios ao cinema, mas que não se restringem a este domínio. Irrompem! O mundo faz cinema e o cinema se faz no mundo. Ao contrário da semiótica tradicional, que reduz a imagem a um simples enunciado, há, em Peirce, uma reflexão sobre imagem e signos para além de sintagmas, paradigmas e significantes. O cinema, enquanto obra de pensamento, é uma resposta lançada pelo diretor quando este se depara com certo problema. O diretor é um pensador, criador de signos e imagens, sendo estes não o próprio pensamento, mas o que possibilita o mesmo de sair da sua habitual paralisia.
O signo, em Peirce - ou o modo como Deleuze dele se apropria, ou o modo como Vasconcellos lê a leitura de Deleuze, ou qualquer outra coisa que o valha -, desta maneira, não se restringiria à linguagem, assim como o cinema não se resume à linguagem, como na psicanálise ou na semiologia. A filosofia deleuziana é pensamento-tempo. Não o tempo subordinado ao movimento, mas o tempo mesmo, o tempo puro, que não muda nunca mas que não se identifica à imutabilidade dum Eterno. É forma vazia, como aponta o transcendentalismo da filosofia kantiana...

Parte I. Da Imagem em Bergson

Fundamental para entendermos o pensamento deleuziano é a filosofia do menino Bergson: cérebro/consciência, matéria/memória, corpo/espírito. Dualismos que não são idealismos. A metafísica da duração bergsoniana é fonte de inspiração - de intercessão, melhor dizendo - à ontologia do virtual de Deleuze. A filosofia da diferença deleuziana é descendente direta da distinção grau/natureza feita por Bergon. No plano da matéria, temos as diferenças de grau; no plano do espírito, as diferenças de natureza.
A diferença, então, relaciona-se a um e a outro destes planos. Na matéria, como metodológica, diferença entre coisas; e no espírito, como ontológica, a diferença mesma, "em si". O que Bergson critica na filosofia que o antecede é o fato da mesma ter visto simples diferenças de grau onde se davam diferenças de natureza: as diferenças entre a faculdade perceptiva cerebral e as funções reflexas medulares, em exemplo. Como corolário, interroga-se o próprio papel da filosofia em sua relação com as coisas, filosofia como acesso direto às coisas, buscando nas mesmas um conceito apropriado ao problema colocado. Conceito, este, que não existe por si, mas apenas enquanto subserviente ao problema. É pelo pensamento - o espírito, em Bergson - que reconhece-se as diferenças de natureza da realidade, recortando - como o bom cozinheiro - o que é da matéria e o que é do espírito.
O rigor metodológico da filosofia bergsoniana identifica-se não a caminhos e técnicas, mas à distinção precisa operada entre grau e natureza pelo bergsonismo. Sua ontologia, igualmente, não se dá por platonismos, mas pela compreensão da diferença nela mesma, cuja trilha de acesso chamamos de intuição. Vasconcellos desdobra a intuição em três movimentos, seguindo as indicações de Deleuze no Bergsonismo: a distinção entre verdadeiros e falsos problemas, colocando, ao nível dos problemas, a verdade no mesmo plano da criação; a articulação das diferenças de natureza com o real; e a colocação de problemas em termos temporais, não espaciais. Uma filosofia problematizante, diferenciante e temporalizante!
Em seguida, é apresentada uma dupla tipologia das multiplicidades, o que - embora possa facilitar o saborear da cozinha bergsoniana - soa-me como retórica desnecessária. Cozinha à base de linguiça! Enfim! Uma é espacial, exterior, simultânea, justaposta, quantitativa, numérica: diferença de grau. A outra é duração pura, interna, sucessiva, fusionada, virtual, contínua: diferença de natureza. Aqui, multiplicidade não se opõe à unidade. Não há o Uno! Distingue-se, ao contrário, duas multiplicidades: uma discreta e uma virtual. E aqui o Vasconcellos faz bonito quando, ao sair da já maçante distinção entre objetividade-atual e subjetividade-virtual, fala sobre o processo de diferenciação. Diz ele que, em Bergson, não deve se opor possibilidade à atualidade. O possível, visto que externo e espacial, é do plano da matéria e do real. É o virtual - e sua atualização - que são do plano do espírito e da memória.
Esta memória - duração! - não equivale a uma sucessão de instantes idênticos a se repetirem. O tempo não é uma sucessão de presentes! O momento seguinte ao presente momento prolonga-se a este, atualizado como memória-lembrança, ao mesmo tempo em que ambos se condensam um sobre o outro, enquanto memória-contração. Não duas memórias, é bom frisar, mas dois aspectos duma única e mesma memória.
Deleuze-leitor-de-Bergson, ao colocar a questão da conservação das lembranças, afirma que esta é um falso problema. O bergsonismo trabalha com um registro do inconsciente diferente do freudiano, visto que a lembrança pura, virtual, não "habita" - ótimo termo - um inconsciente. O inconsciente, em Bergson, é virtual. É o virtual! Logo, não psicológico! O psicológico só se constitui no presente, enquanto o passado-memória-duração é lembrança. Não a imagem-lembrança, mas a lembrança pura, imemorial, ontológica. Destarte, não há diferença de grau entre percepção e lembrança, mas diferença de natureza. Ao vermos diferença de grau entre ambos, instalamos um misto mal-analisado e caimos na "imagem" como uma realidade psicológica!
Chegamos, aqui, no "paradoxo mais profundo da memória". Palavras do Vasconcellos. O passado é contemporâneo do presente que ele, um dia, já foi. Passado e presente não como dois movimentos a se sucederem, mas como elementos coexistentes: o presente, que não para de passar, e o passado, que não para de ser. O tempo-linha cede passagem ao tempo-fluxo. Fluxo do passado, da memória, com sua virtualidade a atualizar em imagens; imagens, estas, que não se reduzem a meros dados psicológicos, adquirindo estatuto de Ser. A consciência, assim, deixa de ser uma fonte produtora de imagens para se tornar um ecrã de projeção das mesmas. Diz o livro que seu papel não é gerar imagens, mas fazer aparecê-las. Prefiro pensar a consciência - e agora dou uma de ousado - não como ecrã-condição-de-possibilidade (o papel de ecrã, deixo ao corpo), mas sim como o aparecimento mesmo da imagem na tela. Consciência-filme! Imagem e lembrança! Somos o fluxo do devir! A consciência é muito bem representada pelo cinematógrafo no tocante aos mecanismos de funcionamento do nosso conhecimento vulgar. Em vez de nos lançarmos ao fluxo das e nas coisas, pomo-nos de fora das coisas mesmas e recompomos o seu devir em termos de inteligência e linguagem. Tempo em termos de Espaço!
[Confesso aos senhores que, agora, dei um salto considerável no texto - quatro ou cinco páginas - pois, embora contribuam para uma compreensão intelectiva da imagem em Bergson, constituem onanismo filosófico, a meu ver. David Hume, sínteses temporais e visões caleidoscópicas serão deixados de lado desta vez...]
Sabemos nós que um filme é uma série de fotografias em sequência, embora enxerguemos tais imagens em movimento, visto que não conseguimos apreender as "imobilidades". Esta impressão de movimento é uma impressão de realidade. O cinema é arte ancorada em imagens, uma imagem que - lembremos - não é psicológica, visto que desligada da percepção voltada à sobrevivência. A imagem em Bergson habita o percepto, percepção "inumana", possuindo caráter ontológico, não psicológico. Imagem virtual, temporal, pura...

Dos Intercessores Filosóficos: Bergson, Peirce, Kant

É esse aí o nome do capítulo, grande e imponente como o próprio. Li, reli, grifei, escrevi e - confesso - já começo a sentir certo desgosto pelo Vasconcellos. Prolixo e repetitivo em algumas partes, pouco claro e explicativo em outras. Seu texto-escultura não mais me causa o espanto grego frente ao belo. Pode ser - e até suspeito disto - pelo meu constante contato frente ao mesmo, tal qual o crítico de estatuarias a procurar chifres na cabeça de Moisés. Analogias à parte, pretendo dividir o texto em três posts: um sobre o Bergson, outro sobre o Peirce e um terceiro sobre o Kant para, além de melhor estruturar nossa discussão, evitar a construção dum texto por demais extenso e cansativo...

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

uma feira em laranjeiras

Este breve relato tende a contar de uma experiência em outra feira. A cidade de Laranjeiras fica a alguns poucos quilômetros de Aracaju, uma cidade histórica, como dizem. Fui à feira livre de lá, pois fiquei sabendo que com a chegada do campus da UFS, a feira centenária seria transferida das ruas para um pátio. Fui tentado a acompanhar os caminhos que estão se construindo. Mas antes de chegar à feira é importante dizer que os cursos de graduação ministrados no campus Laranjeiras já a três anos e meio, foram neste semestre transferidos para os trapiches – complexo arquitetônico do tempo áureo da cana de açúcar no século XIX, quando a cidade era referência regional, a “Atenas sergipana”. Os prédios passaram por uma ação de restauro para abrigar o campus, porém o centro histórico da cidade foi tombado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) já em 1996. Estas medidas fazem parte do projeto Monumenta que visa resgatar a paisagem urbana através do restauro de seus monumentos. O curioso é que estas medidas de promoção identitária, de resgate da história e da cultura e da musealização de certas práticas enquanto patrimônio imaterial participam de um mesmo pacote de ações e discursos do Estado que transforma as cidades em cidades-imagem, cartões-postais sem vida, cultura enquanto produto de venda nas prateleiras para consumo turístico.

Assim vamos à feira. Ela ocupa a avenida da cidade, artéria principal do centro histórico e ao chegar pela entrada possível aos que vêm de fora da cidade – há outras tantas possibilidades de entrar na feira, mas esta é a primeira quando vindo da rodovia – depara-se com alguns caminhões estacionados cheios de negócios para a venda: alguns com bananas, outros vão de laranja e etc. Não são muitos, mas já são alguns, os homens ficam de cima do caminhão negociando; por entre os caminhões alguns caixotes de madeira ou mesmo plástico servem de sustentação para que outras pessoas também tenham espaço de venda na feira. Ainda aqui, somente dado alguns passos, aparece a estranha percepção de que a feira de lá é aquilo, sem bancas, com as pessoas improvisando para vender coisas espaçadamente na via pública. Mas então um choque, melhor... um soco no estômago, de repente um mergulho num espaço denso, uma quebra no espaço: do rarefeito não há um contínuo ou uma transição tranqüila para o espaço denso onde as bancas estão alojadas. É quase um afogamento em estímulos e sentidos, qualquer tentativa de descrição das sensações seria infeliz.

No dia chovia, tínhamos que desviar bastante das grandes poças d’água formadas em diversos pontos de depressão do solo de pedras calcárias do tempo colonial. Eram realmente grandes, muitas impediam o transito de gente que se apinhava mais ainda entre os contornos dos micro-lagos da via e as bancas. Como dito, a feira toma o espaço da principal via de ligação da cidade, avenida larga que comporta, penso, duas ou talvez três feiras do castelo branco. Talvez seja esta somente uma impressão equivocada, mas foi a que ficou; só conseguia pensar algo como “essa feira é um mundo”. Ela nasceu em torno do mercado da cidade, que fica visinho à universidade, e inchou... tomou, primeiramente, as ruas laterais, depois pulou para a avenida na qual se encontra atualmente – na frente do mercado – e daí começou a crescer e espalhar-se por sua extensão. Em seu início o mercado era ponto intercambaial de entrada e escoamento de produtos chegados pelas águas do Cotinguiba que margeia a cidade, estes eram vendidos em seu interior e posteriormente na feira em seu redor. Hoje não tem mais essa função e em seu interior é vendido, em sua maioria, carnes, farinha e grãos, bem como nas suas partes laterais exteriores. A feira e o mercado funcionam em ritmos acoplados, ou seja, quando funcionando juntos produzem uma batida singular na rua. Comunicam-se através das gentes que circulam em seus espaços. Bastante gente.

Por dentro da feira é difícil estabelecer uma ordenação lógica para as bancas e sua separação por produtos. Em algumas partes mais estreitas formam-se corredores, mas grande parte dela é feita de um imbricamento de bancas que possibilita vários caminhos pelo espaço; não há um traçado determinado como corredores ou circuitos, mas uma confusa virtualidade de passos. Em termos de produtos, vende-se aquilo que é usual em uma feira livre e mais: é muito grande a quantidade de bancas com artigos de vestuário, cd’s e dvd’s, e inesperadamente até de acessórios para bicicletas – com pneu e tudo – e mini mercadinhos itinerantes vindos de outras cidades. Curiosas também são algumas práticas visíveis que destoam bastante das normas higiênicas: a rua fica bastante suja, bastante lixo abrigado entre as pedras calcárias, lixo que incomoda os defensores da mudança de local; cães circulam pela feira e alimenta-se de pelancas e restos fornecidos pelos próprios feirantes por ali, um banquete para estes animais; uma cena-ruído apareceu quando vi a murada que separa o fundo do mercado do rio Cotinguiba, rio visivelmente poluído, sendo utilizada como tábua de cortar carne no cru; a lama que misturada com os dejetos da feria, não parecia ser um incômodo; coisas que agridem as sensibilidades higienizadas e incrementam a imagem medieval do espaço

A feira que acontece no sábado de manhã mobiliza toda a cidade. As ruas em volta do centro ficam cheias; é gente que caminha, que compra, que conversa, que paquera... Ela institui um ponto comum de encontro para as pessoas da cidade, diferentemente das feiras de Aracaju que se concentram nos bairros, lá, andando para longe da feira, percebe-se as ruas esvaziadas, ao passo que com a proximidade os sons das vozes aumentam e as gentes aparecem. Comumente durante a semana não é assim que o centro se movimenta. Fiquei com a impressão que nem todo mundo faz a feira, ou no mínimo gastam mais tempo andando, conversando e mesmo paquerando antes de encherem-se de pacotes e ir para outros cantos. Estes fazeres das pessoas no além feira na feira forjam o espaço publico, um momento de trocas possíveis onde a política pode aparecer.

Coisa certa é a mudança da feira de lugar. Ela agride a rua higienicamente e torna-se um empecilho a transformação do centro histórico em lugar turístico. Haverá um investimento grande na cidade neste viés, um incentivo à ocupação de pousadas e restauro do patrimônio para atrair capital dos compradores de cultura e história como souvenir. A feira irá para a praça de eventos da cidade que fica do outro lado do rio, lugar mais organizado e de fácil limpeza, como afirmam os discursos modernos que atravessam e dizem da feira; há ainda a promessa de construção de uma ponte que liga diretamente o mercado ao novo espaço da feira. Essa mudança ocorrerá em Setembro, se não me engano. Aqui abro espaço para conversa, já me demorei de mais...

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Algumas referências: Conversas com estudandes de arquitetura do campus Laranjeiras; conversa com Ariosvaldo, jornalista de Laranjeiras; Video da fala de uma arquiteta do IPHAN e da prefeita de laranjeira sobre a feira; Wenders, Wim. A paisagem urbana. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nascional, No. 23 (Cidade), Rio de Janeiro, 1994; Jacques, Paola Berenstein. Notas sobre o espaço público e Imagens da cidade. disponível em www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq110/arq110_02.asp.

domingo, 16 de agosto de 2009

Charles Sanders Peirce (1839 – 1914)

Peirce nasceu em Cambrigde, Massachusetts. Seus pensamentos tiveram influência na lingüística, na semântica, na teoria da comunicação, na lógica formal e na análise dos fundamentos lógicos da matemática. O tema básico de suas obras é a idéia de que a filosofia deve abandonar todas as formas de misticismo e unir-se à ciência. Para solucionar os problemas filosóficos, Peirce se dedicava a métodos apropriados que conferissem significado às idéias filosóficas em termos experimentais e organizassem essas idéias para que pudessem ser estendidas a novos fatos.

Em sua obra “Como tornar clara as nossas idéias”, publicada em 1878, ele formula a corrente filosófica do pragmatismo. O Pragmatismo pode ser considerado uma técnica auxiliar capaz de encaminhar a compreensão de problemas científicos e filosóficos. Serve também para reconstruir ou explicar o significado de conceitos pouco claros, como os de “realidade”, “peso” e “força”. Segundo Peirce, para determinar o que um conceito significa é necessário examinar suas possíveis conseqüências futuras. Conceber o que seja uma coisa equivaleria a conceber como ela funciona ou o que pode realizar. As coisas são aquilo que elas podem fazer!

Peirce também elaborou a teoria dos signos. O centro de sua teoria reside na definição do que seja signo e na distinção que se estabeleceu entre os diversos tipos de signos. Nenhum signo pode ser literalmente aquilo que significa, da mesma forma, pensamento algum pode ser aquilo que significa. As idéias ou pensamentos implicam um objeto para a interpretação, um intérprete do objeto e a interpretação propriamente dita. Os signos podem ser divididos em três espécies principais: ícones, índices e símbolos. O ícone é um tipo de signo em que o significado e o significante apresentam uma semelhança. A exemplo do desenho de uma casa, que se parece com a casa, mas não é a casa. Índice é um signo que indica o objeto significado casualmente, é um sintoma por haver contigüidade entre eles. Como uma nuvem carregada serve de índice para a chuva que vem com ela. No símbolo não há qualquer relação casual necessária, mas há uma contigüidade instituída pela convenção. Por exemplo, as bandeiras que são símbolos das nações que representam.

Outra contribuição de Peirce para a filosofia foi a sua concepção evolucionista da realidade e a fenomenologia a ela atrelada. Para ele, existem três diferentes espécies de coisas ou fenômenos, constituindo três categorias, a “primeiridade”, a “segundidade” e a “terceiridade”. A primeira trata de fenômenos singulares, independentes dos demais, completos em si mesmos e constituindo livres possibilidades de existência, sentimentos ou qualidades puros, tais como prazeres, cores, sons odores. A segunda se refere a ocorrências reais que são relações de duplo termo, nas quais uma coisa acontece a outra, por exemplo, choque elétrico, resistência de uma parede, etc. Na terceira estão os fenômenos de termo triplo, que implicam conexão entre outros dois. O signo é um exemplo de “terceiridade”, pois, é algo que equivale a alguma coisa para alguém.
In: Coleção os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980, 2ª ed.

sábado, 15 de agosto de 2009

Kant!

Quando, dentre as opções que me foram ofertadas, escolhi pesquisar e discorrer sobre Kant, não imaginava a seara na qual eu estava me metendo. Ao ler os títulos de suas obras, sessões e capítulos, espantei-me: doutrina transcendental dos elementos, arquitetônica da razão pura, analítica dos princípios, dialética da razão prática, juizo teleológico! Resolvi encarar a fera, mesmo temendo suas garras e presas, achando que tudo não passava duma finta para espantar aventureiros incautos. O bicho, no entanto, era poderoso, contrariando as minhas suspeitas! Golpes e mais golpes foram desferidos, mas o tarrasque continuava inabalável! Resolvi abandonar a arena e ir buscar ajuda naqueles que já o enfrentaram e sairam vivos da batalha. Depois de alguma instrução, voltei à caverna e - após algumas horas de mais sanguinolência - demos por empatado o combate. Revelo agora, aos amigos de campanha, minhas cicatrizes, queimaduras e demais marcas que o monstro imprimiu em mim.
Kant é figurado, pelos grandes corifeus da história da filosofia, como idealista crítico ou idealista transcendental, sendo sua filosofia considerada um ponto de ruptura com o saber ocidental, tal qual uma "revolução copernicana" na história do pensamento. Vários pontos da trajetória pessoal de Immanuel mereceriam ser comentados aqui, a título de colocar seu sistema como fruto da história. E - claro! - fofoquinhas acadêmicas nunca são demais! Mas evito tal empreitada, visto que a mesma não é essencial a uma exposição do corpo teórico kantiano (embora dê uma matizada no mesmo...).
O pensamento do filósofo era centrado no racionalismo de Leibniz e na física newtoniana, fato evidente em seus escritos iniciais, nos quais concebia o universo como um sistema harmônico regido pela matemática. Pouco a pouco, seu contato com os empiristas ingleses - David Hume, principalmente - levou-o a adotar uma posição crítica diante da relação conhecimento-realidade, típica do racionalismo.
Como dizia Hume, o conhecimento tem origem na experiência. Kant concorda. Foi até desperto de seu "sono dogmático" por Hume, chegou a afirmar. Mas, para Kant, isto não significa que o saber dependa unicamente da experiência sensível. Segundo ele, a realidade física é a posteriori - a partir da experiência, por indução - sendo um erro atribuir a este mundo de diversidades sensíveis algum princípio universal. Toda ciência racional, dizia, deve ser fundamentada em princípios a priori, dedutivos e independentes da experiência.
Os historiadores descrevem três Kants: o primeiro é dedicado às matemáticas e às ciências naturais; o segundo começa a se interessar pela filosofia e pelo conhecimento, confluindo nas temáticas que resultarão no criticismo do terceiro Kant. É este último, e seus três principais trabalhos, que nos interessam: A Crítica da Razão Pura (1781), a Crítica da Razão Prática (1788) e a Crítica do Juízo (1790), visto que neste período de sua obra, Kant sintetiza - e supera! - as duas grandes correntes de pensamento da sua época, a saber o racionalismo e o empirismo, além de pretender tornar a filosofia compatível com os saberes físico-matemáticos de então.
A Crítica da Razão Pura é a teoria do conhecimento de Kant, na qual formula uma filosofia com aspirações à validade universal, mas distante da metafísica racionalista. Kant nos diz que todo conhecimento sobre a realidade sensível vem, originalmente, da experiência, cujos dados se estruturam graças às intuições da sensibilidade - o tempo e o espaço - que não são propriedades das coisas mesmas mas formas segundo as quais o intelecto representa a realidade. Num segundo momento, tais representações se ordenam segundo as categorias do entendimento - formas a priori da razão - espécie de moldura das experiências singulares. Destarte, não há a coisa-em-si, a coisa tal como ela é, mas fenômenos, as coisas tais como são percebidas e elaboradas por nossa faculdade do entendimento. O conhecimento, aqui, torna-se síntese entre as formas do intelecto e os conteúdos da experiência. A ponte entre ambos - diria Kant - é a imaginação, entendida como faculdade criadora. No entanto, quando a razão se aplica a conceitos que não podem ser apreendidos pela sensibilidade ("Deus" ou "alma", em exemplo) são produzidas as "ilusões da razão" ou, mais diretamente, simples especulações metafísicas que devem ser distintas do conhecimento objetivo.
Na Crítica da Razão Prática está exposta a doutrina ética kantiana, base para a demonstração duma ordem transcendente sem que fosse necessário recorrer às especulações metafísicas. A ética, em Kant, não precisa dos dados da sensibilidade; logo, não pode cair em "ilusões". Para Kant, a consciência moral é um dado tão evidente quanto os corpos da física de Newton. Ela seria a razão aplicada à ação, uma ação que seria moral - razão pura prática! - quando regida por imperativos categóricos, e não por imperativos hipotéticos, tais quais as punições da lei. Deixemos que o próprio Kant enuncie o seu imperativo categórico: "Age de tal modo que o motivo que te levou a agir possa tornar-se lei universal". A aceitação pelos homens da lei moral é - diz Kant - prova de que existe uma ordem que transcende o sensível, cujo fundamento único é a existência de Deus. Deduz, assim, a metafísica; não da ciência e dos sentidos, mas da ética.
E, por fim, falemos da Crítica do Juízo. Sendo suscinto, aqui Kant analisa a "beleza" e a "finalidade" enquanto inerentes ao homem, mas também como não explicáveis pela experiência mesma. A intuição estética, enquanto faculdade, sintetiza a imaginação sensível e o entendimento da razão, possibilitando que a razão se torne sensível e a sensibilidade prove da razão.
O kantismo é etapa decisiva e fecunda na história do pensamento ocidental. Que nenhum profano o negue! Kant foi ponto de partida para a moderna filosofia alemã (Fichte, Schelling, Hegel, Schopenhauer...) e provoca ressonâncias em diversas correntes no hoje: os idealistas realçam o caráter criativo dado por Kant à razão humana, os positivistas assimilaram sua crítica à metafísica e os fenomenólogos beberam da problemática sujeito-objeto levantada pelo filósofo. Pena que seu pensamento, na busca por rigor e fundamento, seja extremamente absolutista e pretensamente universal. Coisa de filósofo, mesmo! Sua própria vida era caracterizada por uma rotina notável. Nunca viajou a mais de 100 Km da pequenina Königsberg, sua cidade natal; nunca se atrasou a um compromisso - salvo duas vezes, sendo uma delas durante acontecimentos revoltosos da Revolução Francesa; e, segundo dizem, sempre que aparecia à porta de casa para o seu passeio vespertino, os vizinhos podiam acertar os relógios: eram - exatamente! - três e meia da tarde...

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs29089903.htm

A filosofia seminal de Bergson
BENTO PRADO JR.

Quando resolvi finalmente publicar, há dez anos, meu livro sobre Bergson (escrito em 1964), ouvi de Gérard Lebrun o seguinte comentário: "Pena! Você o deveria ter publicado de imediato". O que estava implícito na observação era o quanto o livro era "datado", impregnado pela atmosfera dos anos 60, como estava distante do debate filosófico dominante no fim dos anos 80: no fundo, um tiro na água. Essa circunstância não me escapava, como se pode ver nas duas frases que encerram a nota preliminar que abre meu texto: "Se me abalanço, no entanto, a publicá-lo hoje, a despeito de tudo, é porque me parece justificado convidar à leitura dos grandes filósofos. Se meu livro levasse o leitor a reler Bergson particularmente nestes tempos de carência eu me consideraria absolvido de meu pecado de juventude".Não se tratava para mim, na ocasião, de um simples gesto retórico: com a última frase queria exprimir um mal-estar efetivamente vivido, a sensação fortemente desagradável de uma banalização crescente da filosofia, de uma escolarização ou tecnificação asfixiantes do pensamento, de que o desinteresse por Bergson seria um dos sintomas.Um exemplo dessa atmosfera que se dissipara: em 1959, Merleau-Ponty apontava, num discurso de homenagem ao filósofo (em "Éloge de la Philosophie et Autres Essais"), no Congresso Bergson, a fortuna paradoxal da obra no século, bem como o esquecimento progressivo da sua importância e de sua virulência. Distinguia na verdade três etapas: o bergsonismo "en se faisant", militante, que inquietava católicos e radicais, provocando resistência universal, o momento da glória e do reconhecimento e, finalmente, a reconciliação, pela via dos herdeiros espiritualistas, com o establishment.Merleau-Ponty mostra como foi possível, ao pensador que revolucionou a filosofia e as letras, tornar-se canônico, perdendo o olor de enxofre que emanava de seus livros. Nas entrelinhas, Merleau-Ponty apresentava a filosofia da existência como a verdadeira herdeira do espírito vivo do bergsonismo. Leiamos apenas a última frase do discurso de Merleau-Ponty: "Seu esforço e sua obra, que recolocaram a filosofia no presente e mostraram o que pode ser, hoje, uma aproximação ao ser, ensinam também como um homem de outrora permanecia irredutível, que não se deve dizer nada que não se possa "mostrar"..."De lá para cá, dos anos 70 até muito recentemente, um eclipse recobriu a obra de Bergson, assim como a filosofia viva do pós-guerra francês. No entanto, uma mudança radical de perspectiva parece estar ocorrendo neste fim de século, que traz novamente as figuras de Bergson e de Merleau-Ponty para o proscênio, satisfazendo minha esperança na revitalização da filosofia. Na França, é claro, onde se multiplicam trabalhos acadêmicos e publicações sobre Bergson (deixemos para o "Jornal de Resenhas" desta Folha a consideração do seminal "Le Bergsonisme", de Deleuze, que aqui não poderia caber), mas um pouco por toda parte, mesmo nos países de língua inglesa, que nem sempre lhe reservaram a melhor acolhida.Para dar apenas um exemplo, F.C.T. Moore, discípulo de Gilbert Ryle e de Michael Dummett, empenhou-se em livro recente por mostrar, como veremos, a importância e a atualidade de Bergson para leitores da "tradição analítica", demonstrando a incompreensão e os mal-entendidos que impregnavam o duro ataque de Bertrand Russell.Numa palavra, parece que o pensamento contemporâneo, percorrendo linhas diferentes (fenomenologia, análise lógica, teoria das estruturas cognitivas), veio encontrar em seu limite último, lá onde cada uma delas se confronta consigo mesma e com seu "outro", algumas das idéias fundamentais de Bergson. Arriscando uma fórmula: é a efígie de Bergson que aparece nos horizontes emergentes da filosofia da mente "pós-computacional", da "pós-fenomenologia" e da "filosofia pós-analítica".É o que se pode ver, começando pelas "ciências cognitivas". Em "Bergson, Thinking Backwards", F.C.T. Moore, que se empenha a justo título em "déniaiser" (digamos, "desasnar") os leitores de formação estritamente "analítica", não explora suficientemente as pistas que dá sobre a atualidade de Bergson nesse campo. É o que me sugeriu meu colega João Teixeira, da pós-graduação de filosofia da Universidade Federal de São Carlos, em comunicação pessoal que me servirá de guia neste item.Com efeito, se Moore mostra bem como Bergson, pensando em outros problemas, antecipou literalmente as razões reutilizadas, no final da década de 80, em combate à concepção computacional da mente (na qual a cognição é visada como manipulação simbólica desvinculada da ação), não chega a levar sua observação às suas consequências mais sugestivas.Mais positivamente poderia, por exemplo, mostrar o paralelismo evidente entre a teoria bergsoniana da inteligência e as teorias cognitivas mais recentes, que reconstituem sua gênese a partir da ação e da percepção (como é o caso da "Nova Robótica", de R. Brooks, e da "Escola Chilena", de Maturana e Varella -cf., de João Teixeira, "Mentes e Máquinas"). O mesmo poderia ser dito a respeito da idéia da estrutura do organismo e da natureza seletiva dos dispositivos sensoriais, valorizada por cientistas cognitivos bem atuais (como Andy Clark, "Being There",1996), que criticam a idéia de representação; Clark reporta-se explicitamente a Merleau-Ponty, mas poderia ou deveria reportar-se a Bergson, como recomendaria o próprio autor da "Fenomenologia da Percepção".Ou ainda, a respeito da idéia bergsoniana da consciência como "campo estruturado em termos de ações potenciais", pois é exatamente essa idéia que é retomada e desenvolvida por neurocientistas contemporâneos importantes como William Calvin ("The Cerebral Symphony", 1990, e "How the Brain Thinks", 1996). Finalmente, o mesmo João Teixeira, que trabalhou nos EUA com Daniel Dennett, aponta, na crítica que este endereça à sociobiologia de Wilson como reducionismo que deforma os princípios da psicologia evolucionária e da gênese do juízo moral, a retomada inconsciente das análises da "Evolução Criadora" e das "Duas Fontes da Moral e da Religião". Em "Darwin's Dangerous Idea", Dennett reencontraria, de algum modo, o espírito crítico do bergsonismo.No campo da fenomenologia a relação com Bergson é mais complexa, já que alguma cumplicidade estava dada desde início. Husserl, ao ler "Os Dados Imediatos da Consciência", teria aí reconhecido sua própria filosofia (segundo o testemunho, se não me engano, de Roman Ingarden). Mas é sobretudo com Heidegger (para quem, todavia, em "Ser e Tempo", Bergson emparelha com Aristóteles e Kant, nas etapas da desconstrução da significação vulgar e metafísica do tempo) que se esboça desde cedo uma distância polêmica, mais que crítica. No caso de Heidegger é o "biologismo" de Bergson que se constitui como a "bête noire" a ser abatida, como pude verificar detalhadamente em 1963, lendo uma tese alemã sobre (ou contra?) Bergson por ele orientada.Algum eco desse antibergsonismo se encontra, sem a mesma hostilidade, até mesmo na obra de existencialistas franceses (Sartre, por exemplo, que todavia confessa ter descoberto a filosofia lendo os "Dados Imediatos"). Sublinha-se o hiato que separa o "vital" do "existencial". Já o texto do discurso de Merleau-Ponty em homenagem a Bergson, acima referido, é justamente significativo de algo como uma tentativa de resgate e reaproximação, de indicação de correntes profundas de cumplicidade, sob a aparência superficial de oposição radical entre o "naturalismo" de Bergson e o estilo transcendental da fenomenologia. "Matéria e Memória" não era justamente uma análise "transcendental" que tentava evitar os escolhos da filosofia da representação, abrindo caminho para o pensamento, além ou aquém da alternativa idealismo/realismo?Era bem o que reconhecia o último Merleau-Ponty, com o lugar reservado a Bergson em "O Visível e o Invisível" e com sua idéia de uma nova filosofia da Natureza, que implica repensar a clara distinção anterior entre as três ordens: a física, a vital e a humana (na qual é visível também a marca daquele outro bergsoniano que era Whitehead).É bem seguindo a trilha de Merleau-Ponty, na direção de uma versão não "idealista" da fenomenologia husserliana (isto é, que evita o, digamos, "objetivismo de segundo grau" implícito no privilégio não refletido dos atos objetivantes da vida da consciência, no privilégio do "Cosmothéoros"), que caminham alguns filósofos contemporâneos, reencontrando e reativando a empresa bergsoniana. Penso aqui, em particular, na obra de Renaud Barbaras, especialmente em seu último livro, "Le Désir et la Distance - Introduction à une Phénoménologie de la Perception" (Ed. Vrin).Para refazer, assim, a fenomenologia da percepção, recuando mais que a fenomenologia clássica para aquém da partilha entre a coisa e seu "aparecer" (que reitera a oposição objetivo/subjetivo), reencontramos a iniciativa bergsoniana ou a sua versão da Redução Transcendental: a crítica da idéia de Nada. Redução que é a abertura de um campo a um só tempo pré-subjetivo e pré-objetivo, operação que consiste em "buscar a experiência em sua fonte ou, antes, abaixo dessa "viragem" ("tournant') decisiva, onde, infletindo no sentido de nossa utilidade, ela se torna propriamente a experiência humana" ("Matiére et Mémoire", Ed. du Centenaire, pág. 321). Frase de Bergson que seria, talvez, a melhor expressão do projeto de uma fenomenologia da percepção de Renaud Barbaras.Não faltam, tampouco, os herdeiros de Wittgenstein que, reivindicando o retorno à esquecida dimensão moral ou terapêutica do novo método, reencontram, talvez sem o saber, um dos vetores essenciais do bergsonismo. É o caso de Gordon Baker, um dos maiores conhecedores de Wittgenstein, para quem essa dimensão essencial (bem exposta, segundo ele, por Waisman em "How I See Philosophy") "não tem lugar na sofisticada tecnologia da moderna filosofia analítica". Essa convergência na definição do "télos" e do estilo da filosofia transparece de modo luminoso na maneira como ambos enfrentam a "questão fundamental da filosofia", ou seja, a pergunta: por que há o Ser e não o Nada?Os textos cruciais são a "Conferência sobre a Ética" (1929) de Wittgenstein e "Le Possible et le Réel" (1930) de Bergson (atenção às datas!). Para Bergson essa pergunta "fundamental" remete a um falso problema, que deriva de uma confusão entre os domínios da teoria e da prática. A suposição da problematicidade do Ser pressupõe a possibilidade de se representar o Nada absoluto, isto é, uma impossibilidade lógico-psicológica, que nada mais exprime do que um déficit ao mesmo tempo teórico e vital. A busca do fundamento ou da certeza absolutos não é índice de rigor teórico, mas cegueira diante da impossibilidade da dúvida absoluta, doença da vontade. Wittgenstein, na sua conferência, desqualifica do mesmo modo a questão do fundamento do Ser: "Mas é um não-sentido dizer que me espanta a existência do mundo, pois não posso imaginar que ele não existe".Em todo caso, para ambos os filósofos, a filosofia é uma atividade que consiste essencialmente em análise conceitual; melhor, uma análise que visa ao descarrilhamento dos conceitos por um mau uso do entendimento ou da linguagem ou, ainda, por uma espécie de paralisia da imaginação teórica, que nos torna prisioneiros de imagens hipnóticas e enganadoras. Análise que, dissolvendo os falsos problemas da metafísica (da filosofia entendida como posse teórica do mundo), restitui-nos uma visão mais clara das coisas (visão sinóptica ou intuição) e uma vida mais saudável e limpa.Tudo se passa como se os dois filósofos, talvez os maiores do século 20, nos lembrassem da vocação essencialmente ética da filosofia. De que, implicando necessariamente a tecnicidade da análise, não pode se converter em mera atividade técnico-profissional sem perder a sua essência. Podemos encerrar nosso comentário endossando, assim, o desejo expresso por Gordon Baker na última frase de seu ensaio: "A renovação da visão da filosofia de Waisman transformaria seguramente a totalidade da cena intelectual pós-wittgensteiniana tanto as auto-imagens dos "soi-disants" filósofos analíticos quanto seu "être pour autrui'!".

sábado, 8 de agosto de 2009

Da Imagem do Pensamento e dos Intercessores

A obra de Deleuze constitui-se como uma "filosofia da diferença", visto que faz movimentos críticos frente a todo pensamento "representativo". E por movimento crítico não devemos assumir um esculhambar sem sentido, desprovido de rigor e estudo - puro oba-oba! - mas a distinção mesma entre dois "pensamentos": um pensamento moral/representativo/dogmático e um pensamento sem imagem (ou, até melhor, uma nova imagem do pensamento)! Destaquemos, destarte, três obras deleuzianas em que tal problemática é bem colocada: Nietzsche e a filosofia; Proust e os signos; e Diferença e Repetição.
Vemos, em Nietzsche e a filosofia, três caracteres que constituem o pensamento dogmático. Primeiro: o pensador, enquanto pensador, quer e deseja a verdade; e o pensamento, enquanto faculdade, é naturalmente e universalmente reto. Segundo: o nosso pensamento é desviado do verdadeiro devido às forças estranhas ao mesmo - malditas sejam as paixões da carne e os erros dos sentidos! - que nos fazem cair no erro, tomando uma coisa falsa por verdadeira. E terceiro: Para pensar retamente, precisamos apenas dum método que nos coloque no caminho do bom, do belo, do justo e do verdadeiro. Vasconcellos diz de Deleuze que diz de Nietzsche: a tarefa da filosofia é, justamente - termo infeliz! - reverter esta imagem dogmática do pensamento, que não pensa sozinho e por si mesmo, assim como também não é turbado e perturbado por forças exteriores. O pensamento depende, necessariamente - outra palavrinha infeliz! - dessas forças mesmas que o arrebatam e o possuem.
Em Proust e os signos, Deleuze faz dessa imagem dogmática do pensamento uma imagem racionalista da filosofia - moral e representativa - visto que constituída de pressupostos, analisando a temática do tempo em Recherche du temps perdu. Prost, pela leitura de Deleuze, contrapõe este pensamento dogmático a uma nova imagem do pensamento, que enfatiza a relação entre as chamadas "forças externas", fazendo o pensamento sair de sua imobilidade e lhe provocando encontros. Intercessões!
Já em Diferença e Repetição, Deleuze apresenta quatro postulados sobre a imagem dogmática do pensamento. Vamos lá! O primeiro postulado é o Cogitatio natura universalis; o pensamento possui formalmente o verdadeiro e o busca materialmente. O segundo diz que tal pensamento é potencialmente compartilhado por todos os homens. Terceiro: o modelo da recognição, exercício concordante das faculdades sobre um objeto suposto como sendo o mesmo. E, por fim, o quarto postulado, que garante a unidade de todas as faculdades no príncipio geral do "Eu penso"! Deleuze nos fala de possibilidades para o exercício do pensar. A filosofia, para ele, é aquele movimento mesmo que se dá no pensamento, um rompimento das amarras da representação. Pensar é radicalizar. Pensar é criar conceitos!
Além da imagem do pensamento, Vasconcelos nos propõe, como eixo outro para interpretarmos Deleuze, a idéia de intercessor, encontro que faz o pensamento sair de sua inércia habitual e o mobiliza à criação. O intercessor é a condição mesma para que o pensamento se dê. Não se trata, no entanto, de lidar com os intercessores como simples alianças, apesar de se nos apresentarem como tal. Os intercessores atuam, na filosofia deleuziana, como um conceito, como o que propicia a resolução dum novo problema colocado. E o conceito, em Deleuze, pode ser definido nas seguintes cinco características. Tomemos fôlego e mergulhemos!
Primeiro! Não há conceito simples! Todo conceito possui componentes, visto que formado por uma multiplicidade complexa de elementos. Segundo! No plano de imanência - o habitat conceitual - o conceito desenvolve uma vizinhança necessária com conceitos outros, numa composição em rede! Terceiro! Cada conceito é um ponto de coincidência/condensação/acumulação de seus componentes! Uma organização espacial e visível dum fluxo temporal e incorpóreo. Quarto! O conceito opera sobre o plano de imanência a partir do problema que lhe propiciou a gênese! Finalmente, o último! O conceito, mesmo utilizando do linguajar cotidiano, mesmo cavalgando em sujeitos e predicados, mesmo preso numa gaiola de palavras, não é discursivo, visto que não encadeia proposições!
O conceito, em síntese, é a ferramenta mesma do filosofar. O seu instrumento! Quando Deleuze se propõe a discutir com saberes não-filosóficos (como a literatura, o teatro, a pintura e - vejam só - o cinema), ele coloca em jogo questões e problemas da ordem da filosofia. Seus livros sobre cinema, em exemplo, fazem pulular conceitos para se pensar o cinema. O que importa nessas intercessões não são as análises empreendidas sobre tal e qual obra, mas os conceitos que estas liberam à filosofia. Galileu, Descartes, Newton, Leibniz, Einstein, Gödel. Estes matemáticos não recorreram à filosofia para problematizar questões que são próprias da matemática. Eles pensam os problemas colocados por seus próprios domínios.
O papel do filósofo, entretanto, é de outra natureza. Neste perspecto, filosofar não é contemplação do mundo ou das idéias, nem dialéticas intersubjetivas ou mesmo reflexões metódicas sobre istos e aquilos. Filosofar é criar conceitos. É produzir idéias! Não a idéia do platônico, do pensamento representativo e da verdade dada, mas a diferença mesma produzida pelas intercessões. O cinema, como um "de-fora", força Deleuze a pensar contra a imagem moral e dogmática do pensamento. Sirvamo-nos, também, desse intercessor para construírmos nossa própria filosofia...

Da Imagem do Pensamento e dos Intercessores; In: VASCONCELLOS, Jorge; Deleuze e o Cinema; Rio de Janeiro; Editora Ciência Moderna Ltda.; 2006; pp.1-11.