segunda-feira, 31 de agosto de 2009
Parte III. Kant, o Tempo Fora dos Eixos, o "Eu é um Outro"
domingo, 30 de agosto de 2009
Parte II. Do Signo em Peirce
Parte I. Da Imagem em Bergson
Dos Intercessores Filosóficos: Bergson, Peirce, Kant
segunda-feira, 24 de agosto de 2009
uma feira em laranjeiras
Este breve relato tende a contar de uma experiência em outra feira. A cidade de Laranjeiras fica a alguns poucos quilômetros de Aracaju, uma cidade histórica, como dizem. Fui à feira livre de lá, pois fiquei sabendo que com a chegada do campus da UFS, a feira centenária seria transferida das ruas para um pátio. Fui tentado a acompanhar os caminhos que estão se construindo. Mas antes de chegar à feira é importante dizer que os cursos de graduação ministrados no campus Laranjeiras já a três anos e meio, foram neste semestre transferidos para os trapiches – complexo arquitetônico do tempo áureo da cana de açúcar no século XIX, quando a cidade era referência regional, a “Atenas sergipana”. Os prédios passaram por uma ação de restauro para abrigar o campus, porém o centro histórico da cidade foi tombado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) já em 1996. Estas medidas fazem parte do projeto Monumenta que visa resgatar a paisagem urbana através do restauro de seus monumentos. O curioso é que estas medidas de promoção identitária, de resgate da história e da cultura e da musealização de certas práticas enquanto patrimônio imaterial participam de um mesmo pacote de ações e discursos do Estado que transforma as cidades em cidades-imagem, cartões-postais sem vida, cultura enquanto produto de venda nas prateleiras para consumo turístico.
Assim vamos à feira. Ela ocupa a avenida da cidade, artéria principal do centro histórico e ao chegar pela entrada possível aos que vêm de fora da cidade – há outras tantas possibilidades de entrar na feira, mas esta é a primeira quando vindo da rodovia – depara-se com alguns caminhões estacionados cheios de negócios para a venda: alguns com bananas, outros vão de laranja e etc. Não são muitos, mas já são alguns, os homens ficam de cima do caminhão negociando; por entre os caminhões alguns caixotes de madeira ou mesmo plástico servem de sustentação para que outras pessoas também tenham espaço de venda na feira. Ainda aqui, somente dado alguns passos, aparece a estranha percepção de que a feira de lá é aquilo, sem bancas, com as pessoas improvisando para vender coisas espaçadamente na via pública. Mas então um choque, melhor... um soco no estômago, de repente um mergulho num espaço denso, uma quebra no espaço: do rarefeito não há um contínuo ou uma transição tranqüila para o espaço denso onde as bancas estão alojadas. É quase um afogamento em estímulos e sentidos, qualquer tentativa de descrição das sensações seria infeliz.
No dia chovia, tínhamos que desviar bastante das grandes poças d’água formadas em diversos pontos de depressão do solo de pedras calcárias do tempo colonial. Eram realmente grandes, muitas impediam o transito de gente que se apinhava mais ainda entre os contornos dos micro-lagos da via e as bancas. Como dito, a feira toma o espaço da principal via de ligação da cidade, avenida larga que comporta, penso, duas ou talvez três feiras do castelo branco. Talvez seja esta somente uma impressão equivocada, mas foi a que ficou; só conseguia pensar algo como “essa feira é um mundo”. Ela nasceu em torno do mercado da cidade, que fica visinho à universidade, e inchou... tomou, primeiramente, as ruas laterais, depois pulou para a avenida na qual se encontra atualmente – na frente do mercado – e daí começou a crescer e espalhar-se por sua extensão. Em seu início o mercado era ponto intercambaial de entrada e escoamento de produtos chegados pelas águas do Cotinguiba que margeia a cidade, estes eram vendidos em seu interior e posteriormente na feira em seu redor. Hoje não tem mais essa função e em seu interior é vendido, em sua maioria, carnes, farinha e grãos, bem como nas suas partes laterais exteriores. A feira e o mercado funcionam em ritmos acoplados, ou seja, quando funcionando juntos produzem uma batida singular na rua. Comunicam-se através das gentes que circulam em seus espaços. Bastante gente.
Por dentro da feira é difícil estabelecer uma ordenação lógica para as bancas e sua separação por produtos. Em algumas partes mais estreitas formam-se corredores, mas grande parte dela é feita de um imbricamento de bancas que possibilita vários caminhos pelo espaço; não há um traçado determinado como corredores ou circuitos, mas uma confusa virtualidade de passos. Em termos de produtos, vende-se aquilo que é usual em uma feira livre e mais: é muito grande a quantidade de bancas com artigos de vestuário, cd’s e dvd’s, e inesperadamente até de acessórios para bicicletas – com pneu e tudo – e mini mercadinhos itinerantes vindos de outras cidades. Curiosas também são algumas práticas visíveis que destoam bastante das normas higiênicas: a rua fica bastante suja, bastante lixo abrigado entre as pedras calcárias, lixo que incomoda os defensores da mudança de local; cães circulam pela feira e alimenta-se de pelancas e restos fornecidos pelos próprios feirantes por ali, um banquete para estes animais; uma cena-ruído apareceu quando vi a murada que separa o fundo do mercado do rio Cotinguiba, rio visivelmente poluído, sendo utilizada como tábua de cortar carne no cru; a lama que misturada com os dejetos da feria, não parecia ser um incômodo; coisas que agridem as sensibilidades higienizadas e incrementam a imagem medieval do espaço
A feira que acontece no sábado de manhã mobiliza toda a cidade. As ruas em volta do centro ficam cheias; é gente que caminha, que compra, que conversa, que paquera... Ela institui um ponto comum de encontro para as pessoas da cidade, diferentemente das feiras de Aracaju que se concentram nos bairros, lá, andando para longe da feira, percebe-se as ruas esvaziadas, ao passo que com a proximidade os sons das vozes aumentam e as gentes aparecem. Comumente durante a semana não é assim que o centro se movimenta. Fiquei com a impressão que nem todo mundo faz a feira, ou no mínimo gastam mais tempo andando, conversando e mesmo paquerando antes de encherem-se de pacotes e ir para outros cantos. Estes fazeres das pessoas no além feira na feira forjam o espaço publico, um momento de trocas possíveis onde a política pode aparecer.
Coisa certa é a mudança da feira de lugar. Ela agride a rua higienicamente e torna-se um empecilho a transformação do centro histórico em lugar turístico. Haverá um investimento grande na cidade neste viés, um incentivo à ocupação de pousadas e restauro do patrimônio para atrair capital dos compradores de cultura e história como souvenir. A feira irá para a praça de eventos da cidade que fica do outro lado do rio, lugar mais organizado e de fácil limpeza, como afirmam os discursos modernos que atravessam e dizem da feira; há ainda a promessa de construção de uma ponte que liga diretamente o mercado ao novo espaço da feira. Essa mudança ocorrerá em Setembro, se não me engano. Aqui abro espaço para conversa, já me demorei de mais...
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Algumas referências: Conversas com estudandes de arquitetura do campus Laranjeiras; conversa com Ariosvaldo, jornalista de Laranjeiras; Video da fala de uma arquiteta do IPHAN e da prefeita de laranjeira sobre a feira; Wenders, Wim. A paisagem urbana. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nascional, No. 23 (Cidade), Rio de Janeiro, 1994; Jacques, Paola Berenstein. Notas sobre o espaço público e Imagens da cidade. disponível em www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq110/arq110_02.asp.
domingo, 16 de agosto de 2009
Charles Sanders Peirce (1839 – 1914)
Em sua obra “Como tornar clara as nossas idéias”, publicada em 1878, ele formula a corrente filosófica do pragmatismo. O Pragmatismo pode ser considerado uma técnica auxiliar capaz de encaminhar a compreensão de problemas científicos e filosóficos. Serve também para reconstruir ou explicar o significado de conceitos pouco claros, como os de “realidade”, “peso” e “força”. Segundo Peirce, para determinar o que um conceito significa é necessário examinar suas possíveis conseqüências futuras. Conceber o que seja uma coisa equivaleria a conceber como ela funciona ou o que pode realizar. As coisas são aquilo que elas podem fazer!
Peirce também elaborou a teoria dos signos. O centro de sua teoria reside na definição do que seja signo e na distinção que se estabeleceu entre os diversos tipos de signos. Nenhum signo pode ser literalmente aquilo que significa, da mesma forma, pensamento algum pode ser aquilo que significa. As idéias ou pensamentos implicam um objeto para a interpretação, um intérprete do objeto e a interpretação propriamente dita. Os signos podem ser divididos em três espécies principais: ícones, índices e símbolos. O ícone é um tipo de signo em que o significado e o significante apresentam uma semelhança. A exemplo do desenho de uma casa, que se parece com a casa, mas não é a casa. Índice é um signo que indica o objeto significado casualmente, é um sintoma por haver contigüidade entre eles. Como uma nuvem carregada serve de índice para a chuva que vem com ela. No símbolo não há qualquer relação casual necessária, mas há uma contigüidade instituída pela convenção. Por exemplo, as bandeiras que são símbolos das nações que representam.
Outra contribuição de Peirce para a filosofia foi a sua concepção evolucionista da realidade e a fenomenologia a ela atrelada. Para ele, existem três diferentes espécies de coisas ou fenômenos, constituindo três categorias, a “primeiridade”, a “segundidade” e a “terceiridade”. A primeira trata de fenômenos singulares, independentes dos demais, completos em si mesmos e constituindo livres possibilidades de existência, sentimentos ou qualidades puros, tais como prazeres, cores, sons odores. A segunda se refere a ocorrências reais que são relações de duplo termo, nas quais uma coisa acontece a outra, por exemplo, choque elétrico, resistência de uma parede, etc. Na terceira estão os fenômenos de termo triplo, que implicam conexão entre outros dois. O signo é um exemplo de “terceiridade”, pois, é algo que equivale a alguma coisa para alguém.
sábado, 15 de agosto de 2009
Kant!
quarta-feira, 12 de agosto de 2009
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs29089903.htm
BENTO PRADO JR.
Quando resolvi finalmente publicar, há dez anos, meu livro sobre Bergson (escrito em 1964), ouvi de Gérard Lebrun o seguinte comentário: "Pena! Você o deveria ter publicado de imediato". O que estava implícito na observação era o quanto o livro era "datado", impregnado pela atmosfera dos anos 60, como estava distante do debate filosófico dominante no fim dos anos 80: no fundo, um tiro na água. Essa circunstância não me escapava, como se pode ver nas duas frases que encerram a nota preliminar que abre meu texto: "Se me abalanço, no entanto, a publicá-lo hoje, a despeito de tudo, é porque me parece justificado convidar à leitura dos grandes filósofos. Se meu livro levasse o leitor a reler Bergson particularmente nestes tempos de carência eu me consideraria absolvido de meu pecado de juventude".Não se tratava para mim, na ocasião, de um simples gesto retórico: com a última frase queria exprimir um mal-estar efetivamente vivido, a sensação fortemente desagradável de uma banalização crescente da filosofia, de uma escolarização ou tecnificação asfixiantes do pensamento, de que o desinteresse por Bergson seria um dos sintomas.Um exemplo dessa atmosfera que se dissipara: em 1959, Merleau-Ponty apontava, num discurso de homenagem ao filósofo (em "Éloge de la Philosophie et Autres Essais"), no Congresso Bergson, a fortuna paradoxal da obra no século, bem como o esquecimento progressivo da sua importância e de sua virulência. Distinguia na verdade três etapas: o bergsonismo "en se faisant", militante, que inquietava católicos e radicais, provocando resistência universal, o momento da glória e do reconhecimento e, finalmente, a reconciliação, pela via dos herdeiros espiritualistas, com o establishment.Merleau-Ponty mostra como foi possível, ao pensador que revolucionou a filosofia e as letras, tornar-se canônico, perdendo o olor de enxofre que emanava de seus livros. Nas entrelinhas, Merleau-Ponty apresentava a filosofia da existência como a verdadeira herdeira do espírito vivo do bergsonismo. Leiamos apenas a última frase do discurso de Merleau-Ponty: "Seu esforço e sua obra, que recolocaram a filosofia no presente e mostraram o que pode ser, hoje, uma aproximação ao ser, ensinam também como um homem de outrora permanecia irredutível, que não se deve dizer nada que não se possa "mostrar"..."De lá para cá, dos anos 70 até muito recentemente, um eclipse recobriu a obra de Bergson, assim como a filosofia viva do pós-guerra francês. No entanto, uma mudança radical de perspectiva parece estar ocorrendo neste fim de século, que traz novamente as figuras de Bergson e de Merleau-Ponty para o proscênio, satisfazendo minha esperança na revitalização da filosofia. Na França, é claro, onde se multiplicam trabalhos acadêmicos e publicações sobre Bergson (deixemos para o "Jornal de Resenhas" desta Folha a consideração do seminal "Le Bergsonisme", de Deleuze, que aqui não poderia caber), mas um pouco por toda parte, mesmo nos países de língua inglesa, que nem sempre lhe reservaram a melhor acolhida.Para dar apenas um exemplo, F.C.T. Moore, discípulo de Gilbert Ryle e de Michael Dummett, empenhou-se em livro recente por mostrar, como veremos, a importância e a atualidade de Bergson para leitores da "tradição analítica", demonstrando a incompreensão e os mal-entendidos que impregnavam o duro ataque de Bertrand Russell.Numa palavra, parece que o pensamento contemporâneo, percorrendo linhas diferentes (fenomenologia, análise lógica, teoria das estruturas cognitivas), veio encontrar em seu limite último, lá onde cada uma delas se confronta consigo mesma e com seu "outro", algumas das idéias fundamentais de Bergson. Arriscando uma fórmula: é a efígie de Bergson que aparece nos horizontes emergentes da filosofia da mente "pós-computacional", da "pós-fenomenologia" e da "filosofia pós-analítica".É o que se pode ver, começando pelas "ciências cognitivas". Em "Bergson, Thinking Backwards", F.C.T. Moore, que se empenha a justo título em "déniaiser" (digamos, "desasnar") os leitores de formação estritamente "analítica", não explora suficientemente as pistas que dá sobre a atualidade de Bergson nesse campo. É o que me sugeriu meu colega João Teixeira, da pós-graduação de filosofia da Universidade Federal de São Carlos, em comunicação pessoal que me servirá de guia neste item.Com efeito, se Moore mostra bem como Bergson, pensando em outros problemas, antecipou literalmente as razões reutilizadas, no final da década de 80, em combate à concepção computacional da mente (na qual a cognição é visada como manipulação simbólica desvinculada da ação), não chega a levar sua observação às suas consequências mais sugestivas.Mais positivamente poderia, por exemplo, mostrar o paralelismo evidente entre a teoria bergsoniana da inteligência e as teorias cognitivas mais recentes, que reconstituem sua gênese a partir da ação e da percepção (como é o caso da "Nova Robótica", de R. Brooks, e da "Escola Chilena", de Maturana e Varella -cf., de João Teixeira, "Mentes e Máquinas"). O mesmo poderia ser dito a respeito da idéia da estrutura do organismo e da natureza seletiva dos dispositivos sensoriais, valorizada por cientistas cognitivos bem atuais (como Andy Clark, "Being There",1996), que criticam a idéia de representação; Clark reporta-se explicitamente a Merleau-Ponty, mas poderia ou deveria reportar-se a Bergson, como recomendaria o próprio autor da "Fenomenologia da Percepção".Ou ainda, a respeito da idéia bergsoniana da consciência como "campo estruturado em termos de ações potenciais", pois é exatamente essa idéia que é retomada e desenvolvida por neurocientistas contemporâneos importantes como William Calvin ("The Cerebral Symphony", 1990, e "How the Brain Thinks", 1996). Finalmente, o mesmo João Teixeira, que trabalhou nos EUA com Daniel Dennett, aponta, na crítica que este endereça à sociobiologia de Wilson como reducionismo que deforma os princípios da psicologia evolucionária e da gênese do juízo moral, a retomada inconsciente das análises da "Evolução Criadora" e das "Duas Fontes da Moral e da Religião". Em "Darwin's Dangerous Idea", Dennett reencontraria, de algum modo, o espírito crítico do bergsonismo.No campo da fenomenologia a relação com Bergson é mais complexa, já que alguma cumplicidade estava dada desde início. Husserl, ao ler "Os Dados Imediatos da Consciência", teria aí reconhecido sua própria filosofia (segundo o testemunho, se não me engano, de Roman Ingarden). Mas é sobretudo com Heidegger (para quem, todavia, em "Ser e Tempo", Bergson emparelha com Aristóteles e Kant, nas etapas da desconstrução da significação vulgar e metafísica do tempo) que se esboça desde cedo uma distância polêmica, mais que crítica. No caso de Heidegger é o "biologismo" de Bergson que se constitui como a "bête noire" a ser abatida, como pude verificar detalhadamente em 1963, lendo uma tese alemã sobre (ou contra?) Bergson por ele orientada.Algum eco desse antibergsonismo se encontra, sem a mesma hostilidade, até mesmo na obra de existencialistas franceses (Sartre, por exemplo, que todavia confessa ter descoberto a filosofia lendo os "Dados Imediatos"). Sublinha-se o hiato que separa o "vital" do "existencial". Já o texto do discurso de Merleau-Ponty em homenagem a Bergson, acima referido, é justamente significativo de algo como uma tentativa de resgate e reaproximação, de indicação de correntes profundas de cumplicidade, sob a aparência superficial de oposição radical entre o "naturalismo" de Bergson e o estilo transcendental da fenomenologia. "Matéria e Memória" não era justamente uma análise "transcendental" que tentava evitar os escolhos da filosofia da representação, abrindo caminho para o pensamento, além ou aquém da alternativa idealismo/realismo?Era bem o que reconhecia o último Merleau-Ponty, com o lugar reservado a Bergson em "O Visível e o Invisível" e com sua idéia de uma nova filosofia da Natureza, que implica repensar a clara distinção anterior entre as três ordens: a física, a vital e a humana (na qual é visível também a marca daquele outro bergsoniano que era Whitehead).É bem seguindo a trilha de Merleau-Ponty, na direção de uma versão não "idealista" da fenomenologia husserliana (isto é, que evita o, digamos, "objetivismo de segundo grau" implícito no privilégio não refletido dos atos objetivantes da vida da consciência, no privilégio do "Cosmothéoros"), que caminham alguns filósofos contemporâneos, reencontrando e reativando a empresa bergsoniana. Penso aqui, em particular, na obra de Renaud Barbaras, especialmente em seu último livro, "Le Désir et la Distance - Introduction à une Phénoménologie de la Perception" (Ed. Vrin).Para refazer, assim, a fenomenologia da percepção, recuando mais que a fenomenologia clássica para aquém da partilha entre a coisa e seu "aparecer" (que reitera a oposição objetivo/subjetivo), reencontramos a iniciativa bergsoniana ou a sua versão da Redução Transcendental: a crítica da idéia de Nada. Redução que é a abertura de um campo a um só tempo pré-subjetivo e pré-objetivo, operação que consiste em "buscar a experiência em sua fonte ou, antes, abaixo dessa "viragem" ("tournant') decisiva, onde, infletindo no sentido de nossa utilidade, ela se torna propriamente a experiência humana" ("Matiére et Mémoire", Ed. du Centenaire, pág. 321). Frase de Bergson que seria, talvez, a melhor expressão do projeto de uma fenomenologia da percepção de Renaud Barbaras.Não faltam, tampouco, os herdeiros de Wittgenstein que, reivindicando o retorno à esquecida dimensão moral ou terapêutica do novo método, reencontram, talvez sem o saber, um dos vetores essenciais do bergsonismo. É o caso de Gordon Baker, um dos maiores conhecedores de Wittgenstein, para quem essa dimensão essencial (bem exposta, segundo ele, por Waisman em "How I See Philosophy") "não tem lugar na sofisticada tecnologia da moderna filosofia analítica". Essa convergência na definição do "télos" e do estilo da filosofia transparece de modo luminoso na maneira como ambos enfrentam a "questão fundamental da filosofia", ou seja, a pergunta: por que há o Ser e não o Nada?Os textos cruciais são a "Conferência sobre a Ética" (1929) de Wittgenstein e "Le Possible et le Réel" (1930) de Bergson (atenção às datas!). Para Bergson essa pergunta "fundamental" remete a um falso problema, que deriva de uma confusão entre os domínios da teoria e da prática. A suposição da problematicidade do Ser pressupõe a possibilidade de se representar o Nada absoluto, isto é, uma impossibilidade lógico-psicológica, que nada mais exprime do que um déficit ao mesmo tempo teórico e vital. A busca do fundamento ou da certeza absolutos não é índice de rigor teórico, mas cegueira diante da impossibilidade da dúvida absoluta, doença da vontade. Wittgenstein, na sua conferência, desqualifica do mesmo modo a questão do fundamento do Ser: "Mas é um não-sentido dizer que me espanta a existência do mundo, pois não posso imaginar que ele não existe".Em todo caso, para ambos os filósofos, a filosofia é uma atividade que consiste essencialmente em análise conceitual; melhor, uma análise que visa ao descarrilhamento dos conceitos por um mau uso do entendimento ou da linguagem ou, ainda, por uma espécie de paralisia da imaginação teórica, que nos torna prisioneiros de imagens hipnóticas e enganadoras. Análise que, dissolvendo os falsos problemas da metafísica (da filosofia entendida como posse teórica do mundo), restitui-nos uma visão mais clara das coisas (visão sinóptica ou intuição) e uma vida mais saudável e limpa.Tudo se passa como se os dois filósofos, talvez os maiores do século 20, nos lembrassem da vocação essencialmente ética da filosofia. De que, implicando necessariamente a tecnicidade da análise, não pode se converter em mera atividade técnico-profissional sem perder a sua essência. Podemos encerrar nosso comentário endossando, assim, o desejo expresso por Gordon Baker na última frase de seu ensaio: "A renovação da visão da filosofia de Waisman transformaria seguramente a totalidade da cena intelectual pós-wittgensteiniana tanto as auto-imagens dos "soi-disants" filósofos analíticos quanto seu "être pour autrui'!".