domingo, 25 de março de 2012

Aula de 06 de janeiro de 1982, 2ª hora

Podemos chamar de filosofia uma forma de pensar que busca, sobretudo, determinar as condições, possibilidades e limites do sujeito em seu acesso ao que é verdadeiro. Podemos, também, nomear como espiritualidade todo um conjunto de exercícios e de práticas que transfiguram o sujeito, fazendo-o "pagar um preço" para ter acesso a esta verdade. Por toda a Antiguidade, o tema da filosofia ("como ter acesso à verdade?") e as questões espirituais ("quais são as transformações no ser mesmo do sujeito necessárias para ter acesso à verdade?") são duas problemáticas que nunca foram abordadas em separado (Aristóteles de Estagira é exceção). Houve um momento, no entanto, em que o "acesso à verdade", tornado desenvolvimento autônomo do conhecimento, desvinculou-se dessa exigência de transformação do sujeito. O rompimento entre os dois elementos, constantemente examinado pelo lado da ciência, examinado como um movimento de cientifização do saber, tem sua história investigada por M. Foucault pelo lado da teologia.

Ao adotar a fé como vocação universal do sujeito - isto, a partir do século V - o cristianismo funda um sujeito do conhecimento que tem em Deus seu ponto de saber e realização absolutos, seu modelo e seu criador; a correspondência Deus-Sujeito, aí gerada, desprende o pensamento das condições de espiritualidade que o acompanhavam, visto que ao cristão basta crer, e não mais transfigurar-se asceticamente para ser arrebatado pela verdade. O tal desprendimento não se deu, em abrupto, com o aparecimento da ciência moderna. Aqui, nota-se, não havia oposição entre ciência e espiritualidade (vide as práticas de conhecimento espiritual, os saberes esotéricos, a alquimia), mas entre pensamento teológico e exigência de espiritualidade, a grande tormenta pela qual o cristianismo teve de atravessar, tormenta que teve o seu ponto alto em Descartes. Muito da filosofia do século XIX  (Foucault cita Hegel, Schelling, Schopenhauer, Nietzsche, o Husserl da Krisis der europäischen Wissenschaften e Heidegger), inclusive, pode ser considerado como tentativas de se repensar a espiritualidade (no sentido exposto, de transformação do ser do sujeito em sua relação com a verdade) no interior da investigação filosófica que, desde Descartes, procurava expurgar essas mesmas estruturas do pensamento [aqui, eu coloco uma questão pra gente: não seria a dúvida metódica cartesiana, à sua maneira, uma ascese, já que o sujeito "entra de um jeito" (o René concreto, de robe de seda, com a pena nas mãos, sentado à beira do fogo...) e "sai doutro" (um sujeito do conhecimento impessoal, que é uma pura razão bem aplicada à realidade, ela mesma clara e distinta)?...].

O curioso é que essa estrutura de espiritualidade é usada pelo cientista para reconhecer as "falsas ciências" - que, para serem acessíveis, demandam uma "conversão" do sujeito, e prometem, ao cabo desta conversão, uma iluminação do mesmo - e, de imediato, nela Foucault reconhece formas de saber como a psicanálise e o marxismo, já que tanto o neurótico recalcado quanto o alienado em seu modo de produção precisam duma alteração no ser-mesmo para atingir o verdadeiro, o retorno do recalcado à consciência, a consciência de classe que levará à revolução, mas de maneira nenhuma as considera como práticas espirituais neste mesmo sentido especificado, já que fazem equivaler esse acesso à verdade a formas de organização social (a formação do analista, o pertencimento a um partido, um grupo sindical, uma escola teórica). Foucault diz de Lacan como o único psicanalista, pós-Freud, a querer recentralizar a questão da psicanálise nas relações entre sujeito e verdade, e pergunta, então:
"é possível, nos próprios termos da psicanálise, isto é, dos efeitos de conhecimento portanto, colocar a questão das relações do sujeito com a verdade, que - do ponto de vista, pelo menos, da espiritualidade e da epiméleia heautoû - não pode, por definição, ser recolocada nos próprios termos do conhecimento? (grifo meu)"

Não ousando responder a questão, Foucault dá continuidade à aula e traz, para análise, um  texto filosófico que constitui, a seu ver, a própria teoria do cuidado de si, do princípio "ocupar-se consigo", que não foi - faz notar - em sua origem uma recomendação para filósofos, mas um princípio corriqueiro da cultura grega antiga ligado a um privilégio político, econômico e social; esse tal texto é o Alcibíades, de Platão.

No início do diálogo, o jovem Alcibíades - reavivando a "antiga questão homérica", a questão de morrer hoje ou levar uma vida que não nos legue nada mais além do que já se tem - é abordado por Sócrates, que o faz reparar que, diferente dos seus outros enamorados, jamais o tinha abordado, e só hoje, com o moço envelhecendo e perdendo beleza, disto se decidiu. Além disto, ardia no espírito de Alcibíades a vontade de tirar algum tipo de proveito do seu status na cidade. Que queria Sócrates? Transformar os privilégios estatutários de Alcibíades (relações e contatos, família nobre, posses) em ação política, em governo de si  próprio que descamba em governo dos outros; o fato de Sócrates só agora ter decidido achegar-se a Alcíbiades, só agora que o jovem começava a perder sua beleza, diz de um amor e um cuidado pelo mancebo que não é o amor e o cuidado pelo corpo, mas pelo próprio Alcibíades, pelo próprio ser de Alcibíades. Foucault coloca como situação semelhante (mas ao contrário...) o que ocorre no relato de Xenofonte dum encontro entre Sócrates e um outro jovem, chamado Cármides: é preciso encorajar Cármides que, tímido, não ousa aplicar sua sabedoria na ação pública (é preciso noûn prósekhe); já no "Caso Alcibíades", trata-se de um jovem que planeja transformar suas vantagens na cidade em ação pública efetiva (é preciso epimélesthai heautoû).

Caso Alcibíades venha a governar (n)a cidade, deverá enfrentar dois tipos de adversários: os rivais internos, provenientes da mesma cidade (afinal, não se é o único a querer governar os outros); e os inimigos da cidade (em especial, os espartanos e os persas). Dadas as condições, Sócrates clama a Alcibíades que se averigue e se compare com tais adversários, a fim de saber se tem a mesma riqueza e educação que os tais (e, de fato, não têm; Alcibíades não pode comparar sua formação e suas posses a de toda a Esparta e de todo o Império Persa). Aparece, neste ponto do texto, uma referência explícita ao gnôthi seautôn, mas apenas como uma indireta, um conselho de prudência, e não uma abordagem do princípio délfico ele mesmo. No entanto, essa referência não consiste apenas em ser menos rico e educado que seus rivais e inimigos, mas em não ser capaz de compensar tais defeitos com um saber, uma tékhne. Sócrates, por meio duma longa sequência de interrogações (o velho, clássico e sufocante procedimento dos diálogos socráticos), demonstra a Alcibíades que lhe falta a tékhne que lhe permitiria bem governar a cidade e competir, de igual para igual, com os rivais (que é bem governar a cidade, que é essa concórdia que reina quando  a cidade é bem governada? Alcibíades não sabe responder...). É aqui que o "ocupar-se consigo" faz sua primeira aparição no discurso filosófico, com o destaque dos seguintes aspectos do diálogo:

  1. A necessidade de cuidar de si está vinculada ao exercício do poder (fórmula espartana de Alexândrides); não se pode bem governar os outros (transformar os próprios privilégios em ação política pública, em ação racional sobre os outros, como queria Alcibíades) se não se está ocupado consigo mesmo; a noção do cuidado de si emerge entre o privilégio e a ação política;
  2. A necessidade de cuidar de si mesmo está vinculada à insuficiência da educação de Alcibíades (melhor, à insuficiência da própria educação ateniense, sob dois aspectos: 2.1) o aspecto propriamente pedagógico, e 2.2) o aspecto erótico, já que o amor dos homens para com Alcibíades não teve a função que deveria ter, a de incitar os enamorados a "ocupar-se" do próprio Alcibíades, e não apenas de seu corpo);
  3. Na Apologia de Sócrates, vemos a epiméleia heautoû como uma função geral de toda a existência; mas no Alcibíades ela aparece como um momento necessário na formação da juventude;
  4. A necessidade de ocupar-se consigo é emergente, é urgente, não no momento em que Alcibíades mostra sua intenção de se projetar na política, mas quando percebe que ignora a natureza do objeto com que tem que ocupar-se (ignorava que ignorava);
 Neste momento, duas questões - vinculadas uma a outra - emergem. Quando se diz que é preciso cuidar de si mesmo, que si mesmo é esse de que é preciso cuidar? E mais, qual o si mesmo, qual o eu de que devemos nos ocupar para poder ocupar-me com os outros, a quem devo governar? É essa, repito com Foucault, a primeira emergência do cuidado de si como questão na filosofia antiga, emergência que será melhor tratada e retratada na aula seguinte...

sábado, 10 de março de 2012

Aula de 06 de janeiro de 1982:


Primeira hora:

Foucault inicia a aula relembrando que no curso anterior, Subjetividade e verdade (1981), destinara muita atenção ao regime dos aphrodísia, o qual se apresenta para este pensador como um “arcabouço fundamental da moral sexual européia moderna”. O curso de 1982 objetiva um desprendimento do exemplo do regime dos aphrodísia, embora destaque uma preocupação discursiva em torno - e nas relações - dos termos “sujeito” e “verdade”: “Em que forma de história foram tramadas no Ocidente, as relações que não estão suscitadas pela prática ou pela análise histórica habitual, entre estes dois elementos, o sujeito e a verdade”.

O ponto de partida dessa discussão é a noção de “cuidado de si mesmo” (epiméleia heautoû): noção grega recheada de denotações complexas e, ao mesmo tempo, ricas que giravam ao redor do fato de ocupar-se consigo, preocupar-se consigo. Foucault ressalta ser ousado (paradoxal e sofisticado) um estudo das relações entre sujeito e verdade que tenha como princípio a noção de epiméleia heautoû, uma vez que a esta noção não foi destinada uma significativa importância por parte da historiografia tradicional do pensamento ocidental. Dito de outra forma, a noção de epiméleia heautoû teria sido sobrepujada pela prescrição délfica do “conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seautón), entendida como fundadora das relações entre sujeito e verdade.

Fazendo jus ao método genealógico utilizado, o autor apresenta algumas interpretações históricas e arqueológicas do sentido atribuído ao “conhece-te a ti mesmo” com o intuito de revelar que o gnôthi seautón não tinha, no momento em que fora inscrito no templo de Apolo, a mesma significação do “conhece-te a ti mesmo” empregado na filosofia tradicional. A primeira interpretação é a de Roscher (1901): três preceitos ao “conhece-te a ti mesmo” a serem memorados no ato da consulta ao Delfos (no templo de Apolo): 1) nada em demasia: tu que vens consultar não coloques questões demais, reduzi ao necessário as questões que queres colocar; 2) as cauções: quando vens consultar os deuses não faças promessas que não poderás honrar; 3) gnôthi seautón: no momento em que vens consultar o oráculo olha bem pra ti mesmo, examina em ti mesmo as questões que queres colocar, reduza ao máximo aquilo que queres saber. A segunda interpretação é de Defradas (1954) em seu livro Os temas da propaganda délfica: também mostra que de modo algum o gnôthi seautón é um princípio de conhecimento de si, mas que os três preceitos délficos nada mais são do que preparativos de prudência. Destarte, o que impera nesse período é a busca de constituição de uma vida calcada no autogoverno e na justa medida. Não há na Antiguidade pagã uma busca de conhecimento de si mesmo, uma hermenêutica de si, mas sim a busca de uma vida tão bela quanto uma obra de arte, uma estética da existência.

É importante ressaltarmos que as interpretações de Roscher e Defradas preenchem e atravessam o texto foucaultiano não simplesmente a título de exemplo, mas para apresentar ao seu leitor (ou ouvinte, em suas aulas) que tais “exemplos” lhes são custosos na medida em que sinalizam o fato de que as coisas, nunca foram necessariamente da mesma forma que nos são apresentadas pela história tradicional do pensamento ocidental; sinalizam o fato de que em um determinado momento histórico, um jogo de forças, um campo de tensões ofereceram-lhe circunstâncias para sua emersão.

Ainda com relação ao gnôthi seautón, Foucault pontua que esta noção aparece na filosofia com o personagem Sócrates, e de forma atrelada (subordinada) ao “cuidado de si mesmo” em três trechos da Apologia de Sócrates (Platão): 1) Momento do julgamento de Sócrates em que este expõe a tarefa que lhe foi imputada pelos deuses: Sócrates deveria interpelar as pessoas, fazer com que elas se ocupassem contigo mesmas; 2) Se Sócrates morresse os atenienses não terão ninguém mais que pudesse incitar a busca de suas virtudes: a menos que os deuses lhe enviassem outro substituto; 3) Sócrates interpela no seu julgamento: que punição devo ter se renunciei a tudo para incitar os outros a ocupar-se consigo? Nenhuma punição, talvez um bom tratamento. Diante dessas passagens, Foucault tece algumas observações: Sócrates como aquele que obedece aos deuses, mas ao mesmo tempo não se ocupa consigo mesmo, renunciando sua própria carreira política para incitar os outros a cuidarem de si mesmos; Sócrates como aquele que desperta: o cuidado de si como um despertar; analogia de Sócrates à figura de um tavão: o cuidado de si como um princípio permanente de inquietude da existência.

Outro ponto concernente a noção de epiméleia heautoû e suas relações com a noção de gnôthi seautón consiste numa aposta foucaultiana de que a noção de epiméleia heautoû acompanhou, enquadrou, fundou a necessidade de conhecer-se a si mesmo não apenas no momento de seu surgimento no pensamento, na existência, no personagem de Sócrates; mas que a epiméleia heautoû não cessou de constituir um princípio fundamental para caracterizar a atitude filosófica ao longo de quase toda a cultura grega, helenística e romana. Nesse sentido, tem-se do séc. V a.C ao séc. IV-V d.C a cultura do “cuidado de si mesmo” como uma atitude (não apenas restrita aos filósofos), como um acontecimento no pensamento – entende-se o termo acontecimento como uma experiência, um algo pelo qual se sai transformado, e não como uma simples demarcação histórico-temporal.

Em meio a esse percurso histórico atravessado pela cultura do “cuidado de si mesmo”, desde o personagem Sócrates interpelando as pessoas para que se ocupem consigo mesmas, percebe-se que esta noção de epiméleia heautoû também foi interpretada, utilizada pelo cristianismo, pelo ascetismo cristão. É nesse momento do texto que Foucault apresenta o entendimento da epiméleia heautoû como certo modo de estar no mundo; uma conversão do olhar do exterior para si mesmo (entende-se que esse si mesmo não denota relações com um eu interior); ações de si para consigo: como nos transformamos, nos modificamos, nos transfiguramos.

Enfim, com a noção de epiméleia heautoû, temos todo um corpus definindo uma maneira de ser, uma atitude, formas de reflexão, práticas que constituem uma espécie de fenômeno extremamente importante, não somente na história das representações, nem somente na história das noções ou das teorias, mas na própria história da subjetividade ou, se quisermos, na história das práticas de subjetividade. (FOUCAULT, 2010, p. 12).



Mas o que ocorreu para que a noção do cuidado de si passasse a ser menos privilegiada em relação à noção do “conhece-te a ti mesmo”? O que o “ti” tem que o “si” não tem? Foucault pontua aquilo que define por paradoxos: Primeiro paradoxo: em meio a um sentido positivo de “sentir prazer em si mesmo”, “permanecer em companhia de si mesmo”, “respeitar-se”, “ter cuidados consigo”, o ocupar-se consigo mesmo foi desenvolvido diante das mais austeras morais (estóica, cínica e epicurista). Temos pois o paradoxo de um preceito do cuidado de si que, para nós, mais significa egoísmo ou volta sobre si e que, durante tantos séculos, foi, ao contrário, um princípio positivo, princípio positivo matricial relativamente a morais extremamente rigorosas. Segundo paradoxo: eram regras austeras foram transpostas para o interior de um contexto que é o de uma ética geral do não egoísmo, seja sob a forma cristã de uma obrigação a renunciar a si mesmo, seja sob a forma “moderna” de uma obrigação para com os outros. No interior daquela paisagem tão fortemente marcada pela obrigação de ocupar-se consigo mesmo, vieram a ser assentados pelo cristianismo e pelo mundo moderno numa moral do não egoísmo.

Além dessas questões há o que Foucault chamou de “momento cartesiano”: tornou o gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo) um acesso fundamental à verdade; este momento cartesiano teria desqualificado a epiméleia heautoû. Foucault apresenta uma formulação de relações entre a filosofia (forma de pensamento que interroga sobre o que permite ao sujeito ter acesso à verdade) e a espiritualidade (conjunto de buscas, experiências que constituem para o sujeito o preço que se paga para se ter acesso à verdade). Para a espiritualidade a verdade jamais é dada de pleno direito ao sujeito, por um simples ato de conhecimento; a espiritualidade postula a necessidade de que o sujeito se transforme, se modifique, torne-se até certo ponto, outro que não ele mesmo, para que tenha acesso à verdade; esta, só é dada ao sujeito por um certo preço que põe em jogo o ser mesmo do sujeito. Consequentemente, se entende que não se pode haver verdade sem uma conversão ou transformação do sujeito. A esse movimento de conversão, Foucault destaca duas direções: a primeira seria um movimento de éros (amor), no qual a verdade viria até o sujeito e o iluminaria; e a segunda estaria pautada num movimento de áskesis, entendido como um labor, um trabalho de si para consigo em que se é o próprio responsável. A verdade é o que ilumina o sujeito, dá-lhe beatitude e tranquiliza a alma (aqui, não se trata da alma de alguém, mas uma alma universal – na Antiguidade clássica não havia uma noção de interioridade individualizada).

Durante a Antiguidade o acesso à verdade e a prática de Espiritualidade (transformação do sujeito para ter acesso à verdade) nunca esteve dissociado. Entramos na Idade Moderna quando que o que dá acesso à verdade no sujeito é o conhecimento. A verdade passa a ser obtida sem a necessidade de uma mudança, sem uma transformação no ser do sujeito. O ser do sujeito deixa de ser posto em questão.

“Se definirmos a espiritualidade como o gênero de práticas que postulam que o sujeito, tal como ele é, não é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, é capaz de transfigurar e salvar o sujeito, diremos então que a idade moderna das relações entre sujeito e verdade começa no dia em que postulamos que o sujeito, tal como ele é, é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, não é capaz de salvar o sujeito.” (FOUCAULT, 2010, p.19).



Marcel Maia

domingo, 11 de dezembro de 2011

Na beleza do trabalho de Eder

Eder, você é um éter.


um modo-risco, que risca as páginas

e na leitura faz passar paisagens //

que trazem e levam espaços e tempos

cotidianamente embriagados.

Bêbadas imagens que teimam

em explicar (des)explicando,

aquilo que prescinde explicação.

Uma experiência não tem explicação quando viva.

Por isso, a cada dia se dê viva a experiência,

viva a fluência obstinada da vontade de alegrar,

sendo alegre, ainda.

E afirmar essa alegria como quem canta,

e mesmo quando gemendo,

o gemido como que assobia,

como pássaro ou como éter,

melhor, como Eder.

Eder passarinho, essa espécie de errante natural

que acerta os lugares

e não sabe o motivo, //

sem bússola viaja o mundo,

sem que da causa advenha comprimidos

receitas, consultas e remédios.

É complexo singelo, o voo pássaro //

como o é também o éter absorvido.

Cada linha-inalação diz em mim

de um poema-dissertação.

Não são linhas, são versos //

versos distraídos

que narram um presente

de uma cidade qualquer,

com habitantes singulares,

habitantes na rua, embebidos de rua //

mesmo aqueles que não a enxergam.

E não enxergar pode ser virtude,

quando o que se mostra é mais do mesmo.

Etereamente vai Eder-éter-passarinho

singrando os ares que a cidade

respira, transpira e conspira //

fazendo falar campos adversários;

acertou Foucault ou ficou com Certou?

Michel, michel, (...) michel, michel.

Inventa conexões, atravessamentos //

faz o trabalho do vento

que mistura os ares

e quase nunca lhes dá forma //

deixa isso para os menos iluminados.

“Vento que balança as palhas do coqueiro”

vento que não descansa,

trabalha de noite e de dia

assim, aquilo que se diz,

era o que se queria:

a disciplina não pode tudo,

pois tudo não existe //

e nas artes do fazer

aquilo que se inventa,

aquilo que se cria,

em nós também é o que resiste.

Éter-eder, eder-éter.

E vai o filme passando

sem deixar o passado ansioso.

Ele flui sem que se perceba

adiante, algum remorso retorno.

Dos males, o melhor!

Errar é compor,

não é destrinchar, recolher e assimilar.

Não se erra deliberadamente, você diz.

Se erra porque se erra,

simplesmente,

como uma criança que diz que sente

e do que sente.

Criança: devir-fingidor em pessoa.

O erro sentimental carrega frescor

quando se dá bem,

quando se dá mal.

O segredo é se dar,

e se dando, se entregando

a errância se confirma,

flutua, vagueia, se espalha.

Errância é pedra na água,

é fogo de palha.

É amor consumido em vida

no fio da navalha.

E na arte de amar,

na melhor astucia do fazer,

não há certo e errado.

Há o dito e o não dito,

o toque das peles,

o frisson nos pelos,

há as calmarias e os destemperos.

Há amizade e a paixão que clama

momentos de café, de feijão e de cama.

O que se faz nesses momentos?

Responda quem ama!

Há muito de muitas coisas no amor.

Há até aquilo que ainda não sendo,

avisa intuindo no outro,

olha, já-já aí estou.

Como algo que se sabe sem saber,

como algo que se pode

sem dizer em si o poder.

Como algo que não se deve por na mesa

e buscar a melhor solução.

Problemas de matemática

com as urbanesas? Não!

Elas são problemas enverbados

por isso restauram o eterno inacabado.

Espalham fragrâncias do erro cometido

onde ainda há vida,

onde “o pulso ainda pulsa”

onde encontrar se faz acontecimento

o descaminho do presente

é o futuro do pretérito no prazer compartilhado,

é falar com você, tendo Heliana, Teresa e Marcelo do lado.

É ver tanta vente bonita

e a todos, especialmente a você,

dizer muito obrigado!







segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Resumo do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol

Deus e o Diabo na Terra do Sol

No primeiro do trecho filme temos o primeiro contato com os personagens que conduzirão todo o enredo do filme: Manoel, Rosa e o sertão. A primeira cena, uma tomada aérea sobre o sertão, conduz o espectador como um visitante, introduzindo ao cenário do semi-árido nordestino. Em meio a este cenário, encontra-se o vaqueiro Manoel a que o cordelista-narrador apresenta, justo no momento do primeiro encontro deste com o Santo Sebastião, um beato a conduzir um pequeno culto messiânico em procissão, em meio a cantorias religiosas. Manoel, montado em sua burra, rodeia o culto e observa admirado o beato, mas não pronuncia uma palavra. Ao chegar em casa, relata o encontro a sua esposa Rosa, ainda admirado, fala que o santo havia prometido um milagre que iria salvar todo mundo. Rosa ouve impassível enquanto continua socndo o pilão. Na cena seguinte, Rosa gira a roda da moenda, enquanto Manoel mói a mandioca, preparando a farinha. Enquanto comem, Manoel conta à esposa seus planos de vender duas vacas e comprar um terreno, fazer uma roça, para que possam ter a própria colheita no ano seguinte. Rosa desacredita, diz que não adianta ao que Manoel responde que apesar do tempo ruim poderia vir um milagre.

No dia seguinte, Manoel vai à feira ao encontro do Coronel Morais, a quem trabalha cuidando de vacas. Manoel diz ao coronel que quatro vacas do rebanho morreram e pergunta-lhe pela partilha das vacas, pelo serviço prestado ao que o Coronel responde que as vacas mortas pertenciam ao vaqueiro. Manoel protesta ao que o coronel responde que a lei está do seu lado. Manoel insiste e após uma discussão o Coronel sentindo-se ofendido chicoteia Manoel que se defende cortando o Coronel com seu facão. Manoel foge e é perseguido por dois jagunços até sua casa; enquanto enfrenta um jagunço, o outro chega até a mãe de Manoel e a mata. Manoel mata os dois jagunços salvando Rosa e depois enterra a mãe.

Após esse episódio, Manoel entende que é seu destino seguir o Santo Sebastião, que já devia ter ido antes da desgraça. Manoel então leva sua esposa a Monte Santo, lugar onde Sebastião e seu culto se encontram. Sebastião prega a seus fiéis, profetiza uma terra do lado de lá do Monte Santo, onde tudo é verde e farto e onde ao nascer do sol aparecem Jesus e Maria, São Jorge e o Santo Sebastião. No caminho de pedras para o Monte Santo, Manoel e Rosa discutem, ao que Manoel reage com um golpe que leva Rosa ao chão. Sebastião prega contra os donos das terras, conclama os fiéis a buscarem as terras do céu e anuncia que o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão. Manoel chegando aos pés de Sebastião entrega-lhe sua força para libertar seu povo. Os fiéis louvam a Jesus. A seguir, Sebastião, Manoel e o culto de fiéis em procissão, saqueiam vendas, aprisionam, e agridem pessoas nos povoados próximos. De volta a Monte Santo, os fiéis rezam ruidosamente, num transe coletivo, enquanto Rosa caminha entre eles, observando. Rosa pergunta a Manoel se esquecera dela diz que desde que chegaram ao Monte Santo Manoel foi a deixando, ao que Manoel responde que para se entregar a Sebastião ele tinha que ficar sozinho, se libertar de mulher e filho. Sebastião declara que Manoel fora mandado para ser a força do Santo e esbofeteia-o. Manoel reproduz as profecias do Santo, fala que vira uma ilha no meio do rio, onde tudo é verde. Rosa adverte-o, pede para irem embora antes que cheguem as tropas do governo e façam igual ao que fizeram em Canudos. Manoel responde que o destino é maior que a morte. Sebastião prega, Manoel reza convulsivamente, Rosa intervém, interrompendo Manoel e desdizendo Sebastião ao que Manoel a impede e prossegue sua oração.

Um coronel e um padre contratam Antônio-das-Mortes para matar Sebastião. Antônio recusa-se dizendo que já ouviu falar de milagres no Monte Santo, que Sebastião tinha parte com Deus. O padre convence-o oferecendo o dobro do pagamento e dizendo que esta é a penitência de Antônio, que só depois de um crime maior é que ele poderá ser perdoado pelos crimes que cometeu. Em sua doutrinação pelo Santo Sebastião, Manoel é levado a carregar uma rocha sobre a cabeça por todo o caminho de pedra que leva ao Monte Santo. O beato Sebastião exige a Manoel que traga sua mulher e uma criança que só depois de lavar a alma de Rosa é que Manoel estará limpo. Acreditando que a mulher está possuída pelo demônio, Manoel cumpre o que o beato lhe pedira e leva a Sebastião um bebê e sua esposa Rosa. É preciso lavar a alma dos pecadores com o sangue dos inocentes. Sebastião sacrifica o bebê perfurando-o com um punhal e com o sangue faz uma marca de cruz na testa de Rosa. Manoel cai em si, concluindo que não pode vingar a morte de Jesus Cristo com o sangue dos inocentes. Despertando do desmaio, Rosa pega o punhal e mata Sebastião sobre o altar da capela. Nesse mesmo momento, Antônio-das-Mortes chega atirando e matando todos os fiéis do culto de Sebastião. Entrando na capela, Antônio encontra Rosa ainda com o punhal e Manoel abraçado ao corpo de Sebastião. Antônio vai embora deixando Manoel e Rosa vivos. No caminho encontra um cego violeiro e conta a este o que ocorreu em Monte Santo.

Manoel, Rosa e o cego Júlio partem pelo sertão e acabam encontrando Corisco em uma colina, onde o cangaceiro executa algumas pessoas, dizendo estar cumprindo sua promessa ao Padre Cícero, de não deixar o pobre morrer de fome. Corisco diz estar continuando o trabalho de Lampião, que este não teria morrido, estaria vivo nele. Corisco declara-se contra o gigante da maldade que come o povo para alimentar a República. Manoel chega aos pés de Corisco, revelando-lhe a morte do beato Sebastião pelas mãos de Antônio-das-Mortes. Corisco revolta-se contra o governo que matou Virgulino e agora havia matado o beato. Lembra que havia sonhado com o ataque que os levaria à morte. Virgulino não acreditou em Corisco que decidiu ir embora com seus cabras. Depois da morte de Lampião, Corisco vingou-se, matando o coiteiro que os denunciou e mandando as cabeças para o delegado. Manoel oferece-se para ser cangaceiro a que Corisco aceita, batizando-o de Satanás. Manoel, Corisco e seus cangaceiros invadem a fazenda do Coronel Calazans, aliado do governo. Eles saqueiam, destroem e estupram a noiva do Coronel. Corisco ordena que Manoel castre o Coronel e em seguida, de volta à caatinga, Corisco o mata. Dadá, mulher de Corisco, apela para eles irem embora, mas Corisco discorda, diz que tem que cumprir seu destino, fazer justiça para aliviar seu sofrimento, tem que vingar-se. Manoel diz que vai matar Corisco e apanha da mulher, ficando no chão choramingando. Corisco o levanta chamando-o de cabra frouxo. Manoel diz que não se pode fazer justiça derramando sangue.

Antônio-das-Mortes encontra o cego Júlio e pergunta-lhe se o vaqueiro de Monte Santo era o cangaceiro Satanás e se seria o cego quem o entregara a Corisco. O cego confirmou, dizendo que tinha lhe dado um destino. O cego diz não entender Antônio a que Antônio esbraveja ser esse o destino a que foi condenado. O cego pergunta se é matando que Antônio ajuda seus irmãos, ao que Antônio responde que o beato o havia perguntado a mesma coisa e que ele só matou os fiéis de Sebastião porque não conseguia viver conformado com tanta miséria. O cego Júlio protesta, dizendo que a culpa não é do povo. Antônio diz que um dia haverá uma guerra entre Deus e o Diabo no sertão e que o que ele quer é apressar esse acontecimento, matando Corisco e depois morrendo de uma vez.

O cego Júlio avisa Corisco que Antônio está por perto. Dadá, apela mais uma vez para eles fugirem ao que Corisco responde que o Padre Cícero fechou seu corpo. Manoel diz que morre por Corisco, que Lampião e Sebastião eram a mesma coisa, ao que Corisco responde que o beato não valia nada, o que Manoel diz ser uma blasfêmia. Corisco e Manoel discutem, Corisco diz que o beato Sebastião uma vez quis que Lampião largasse as armas e o seguisse. Corisco acredita que não se faz justiça só com oração e rosário, o que Manoel diz ser uma mentira. Dadá diz que Virgulino era grande mas também ficava pequeno, Corisco protesta, mas depois admite ser uma verdade. Corisco manda Dadá ir com o cego Júlio buscar sua filha e manda Manoel ver com quantos macacos Antônio está vindo.

Sozinhos na colina, Rosa e Corisco se aproximam e se encaram. Rosa, usando ainda o véu de noiva que pegara na casa do Coronel, cheira os cabelos de Corisco, rodeia-o e para diante de seu rosto. Eles se beijam. O beijo parece estranho aos olhos do espectador, o encontro brutal entre dois desesperançados.

Manoel e Dadá retornam. Dadá revela que a filha foi morta. Manoel diz que todas as saídas estão bloqueadas pelos macacos. Corisco dispensa seus cangaceiros entregando-lhes todo o ouro que tinha, diz que enfrentará sozinho Antônio-das-Mortes e pergunta se Manoel ficará ou irá embora. Manoel pergunta a Rosa o que fazer, ao que Rosa responde que está com ele para viver.

Antônio encontra Corisco e o mata a tiros. Antes de morrer Corisco grita que mais fortes são os poderes do povo. Antônio corta a cabeça de Corisco. Manoel e Rosa correm pelo sertão. Rosa cai e Manoel segue correndo. O narrador-cordelista canta que o sertão vai virar mar e o mar virar sertão e que assim mal-dividida a terra há de errar que a terra é do homem não é de Deus nem do Diabo. A seguir, a cena corta para uma tomada aérea sobre o mar.

terça-feira, 14 de junho de 2011

A PESQUISA ETNOGRÁFICA EM PSICOLOGIA SOBRE A COMPLEXA REALIDADE DO COTIDIANO

Bibliografia: SATO, Leny; SOUZA,Marilene Proença Rebello de. Contribuindo para desvelar a complexidade do cotidiano através da pesquisa etnográfica em Psicologia. Psicol. USP. São Paulo, v. 12. N. 2., 2011.


Esse texto vem trazer algumas idéias a partir do artigo de Leny Sato em que trata da abordagem etnográfica em pesquisa nos locais de trabalho em contextos urbanos na sociedade ocidental. Enfatiza sobre dois aspectos: o estar no campo e a coleta de dados. Sato faz no final de seu artigo uma distinção de “dado” como “algo imediato e não construído”, por “fato”, que designa “coisa ou ação feita”, preferindo este seguindo uma concepção construtivista. Eu acredito na produção coletiva desses dados, já que etnografia afirma a convivência do pesquisador no campo, construindo uma experiência de onde se depreenderia tais “dados”.

Sato vem afirmar que a etnografia é um método de pesquisa que tem origem na Antropologia Social baseada em observação participante e/ou registros permanentes da vida diária no campo. Atenta-se para os vestígios e contradições dos múltiplos processos de construção histórica, contrapondo uma suposta coerência de um sistema social ou cultural, sendo interessante levar em consideração a história local do campo.

Algumas perguntas são levantadas por Sato no trabalho de campo e as coloco da seguinte forma: o que acontece naquele cenário particular?, Que significados têm tais ações para seus atores?, Como essas e outras pessoas se relacionam nesse local?. Essa autora traz ainda a partir de Rockwell algumas características das quais algumas dou destaque: permanecer longamente no campo (faz sentido já que deve passar bastante tempo no campo e com tudo que faz parte dele) e integrar conhecimentos locais a elaboração da descrição (compreendo que esses conhecimentos são obtidos no convívio com o campo ou com alguma leitura sobre o local).

Sato traz uma idéia de universalização do exótico e do diferente encontrado no campo de que não vejo porquê acontecer, qual seu objetivo, por acaso produzir um conhecimento generalizante das particularidades? Sato traz ainda uma afirmação em seu artigo que diz de uma postura em pesquisa que merece cuidado, sobre o fato de se querer produzir hipóteses, querer interpretar a realidade, enfim, concepções que não condizem com quem acredita numa construção e invenção do conhecimento e não descobrimento de uma verdade.

Por outro lado, concordo com Sato ao mencionar que tanto o pesquisador como as pessoas do local pesquisado são pesquisadores, pois ambos fazem parte do processo de pesquisa, da experiência no campo. É claro que cada qual tem suas questões específicas como no caso das pessoas do local se interessarem em saber quem é aquele que pesquisa, porque está ali, como se pesquisa, o assunto, etc. Mas quando se tem uma convivência com o campo e seus atores, é possível afirmar que essa separação vai se desfazendo. Ao mesmo tempo é possível afirmar que não existe neutralidade no campo, bem como no processo de conhecimento, pois há uma afetação mútua de que pesquisa e é pesquisado, co-produção e transformação de ambos.

A autora menciona a possibilidade de existirem no campo pessoas interessadas e colaboradoras privilegiadas da pesquisa, que buscam informações sobre esse pesquisar, sobre a vida acadêmica, querem ajudar e contribuir com o estudo. É possível que exista(m) esse(s) personagem(ns), mas não deve ser algo convocado, mas que surja espontaneamente.

Sato ressalta também o cuidado com a inserção no campo, devendo se informar de detalhes do campo que podem fazer a diferença, mas que a meu ver se trata de uma antecipação do campo que não faz sentido, pois cada pessoa ou pesquisador constrói seu modo de estar no campo a partir do que vivencia nele. É querer fazer do campo algo em si que não cabe, pois o campo é mutável tanto quanto as pessoas que o compõem.

De fato, na experiência no campo se enfrenta dificuldades, constrói-se estratégias para lidar com aquilo que surge no campo, situações e problemas diversos. Nem por isso a inquietação deve acabar, a experiência no campo não deve ser tranquila, deve-se promover a problematização daquilo que acontece no campo, mantendo uma atenção desfocada, observar e interagir com tudo que é possível, sem se ocupar apenas em “colher informações”.

A autora levanta a questão da não utilização de instrumentos pelo pesquisador, o que traz algumas questões quanto ao o que olhar, o que registrar, etc. Essas questões, de acordo com Sato, chama a uma disciplina e rigor metodológico, devendo se norteado pela delimitação do objetivo e objeto, atenção aos diálogos no campo e acontecimentos, percebendo as contradições e ambiguidades. Sato salienta um cuidado com a diversidade dos acontecimentos como algo que dificultasse as conclusões devessem ser feitas, que devesse ser apreendido e tivesse um significado a ser desvendado. A autora afirma ainda que “os ‘acontecimentos’ independem do pesquisador, se processam e conformam o dia-a-dia do local estudado”. Nesse sentido, os “dados” se transformariam em “fatos” a partir de um processo interpretativo para se produzir sínteses da realidade estudada.

Mas me pergunto diante dessas informações: é possível antecipar o objetivo ou qualquer coisa antes de vivenciar o campo? A diversidade do campo como empecilho ou potência quanto àquilo que deve estar sendo ressaltado nas descrições? Como assim interpretar o campo, produzir um significado, impor uma verdade àquilo que acontece? Acredito que estas são posturas que dizem de uma pretensa autoridade de produção de conhecimento generalizante e simplificadora de vida social que deve ser deixada de lado, e precisam ser trocadas a favor de uma simples e atenta descrição da experiência local e particular no campo, bem como dos seus múltiplos componentes heterogêneos.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

O Lugar Antropológico - Marc Auge

Qual é o lugar de pesquisa para o etnólogo? Auge vem afirmar que seria o mesmo lugar onde ocupam os indígenas, ou aqueles a quem estuda, onde eles trabalham e defendem contra ameaças externas. Esse autor vem trazer em sua obra “Não Lugares” uma compreensão quanto a pesquisa antropológica, remetendo a ideia das pesquisas pelos etnólogos sobre indígenas. Aqui nesse texto se tentará fazer um paralelo das explicações dadas por Auge com a pesquisa na feira.

Auge vem afirmar que o lugar comum tanto dos etnólogos quanto dos indígenas pode ser considerado invenções, já que a marca social do solo nem sempre é original. O etnólogo ao reencontrar essa marcação através de sua intervenção e curiosidade, devolve aos indígenas o gosto pelas origens que os fenômenos ligados à atualidade atenuaram como a migração de cidades, novos povoamentos e extensões das culturas industriais.

Pensando isso para o campo da feira, significaria dizer que a inserção do pesquisador no meio dos feirantes poderia estar estimulando ou motivando um certo orgulho ou interesse em continuar participando da feira. Ao mesmo tempo, não se pode afirmar que não exista uma valorização sendo criada não só pelos feirantes envolvidos na pesquisa, como pelo pesquisador.

De acordo com Auge, existe uma dupla invenção ou concepções criadas na pesquisa antropológica, uma refere-se ao pensamento dos indígenas diante do lugar e outra a dos pesquisadores ou etnólogo. A primeira invenção Auge chama de Fantasia indígena que remete aos tempos imemoriais de uma terra intocada, um mundo fechado, onde tudo já se conhece e se assegura a estabilidade através da legitimidade dos relatos de origem e o calendário de rituais.

Esses artifícios ou ideias propagadas pelos indígenas exprimem a identidade do grupo, defende uma tribo contra as ameaças externas e fissões internas, conservando um sentido da identidade da linguagem. Mas essa fantasia do lugar fundado, o qual é incessantemente refundado, é considerada uma semifantasia, visto que se deve aos dispositivos de adivinhação e prevenção. A partir destas estratégias é possível fazer com que ninguém duvide da realidade do lugar comum e dos poderes que o ameaçam ou o protegem, nem a realidade dos outros grupos. Nada permite duvidar desse mundo fechado e auto-suficiente com o qual se identificavam os mitos aproximados aos solo e que fundava uma singularidade.

A feira pode ser considerada um lugar onde se construiu uma história, costumes, modos de se portar na comunidade. Há a fantasia de que ser um lugar que nunca se acabará, já que muitas gerações já passaram por esse lugar. Porém essa fantasia não se sustenta diante das diversas ameaças de uma facção de pessoas que não toleram a feira, geralmente comerciantes locais que sentem ter suas vendas prejudicadas. Algumas feiras possuem sua associação de feirantes, mas nem todas se mantém e continuam na luta pelo bem comum, enfim, algo a se investigar caso a caso.

A segunda invenção nas pesquisas antropológicas Auge denominou de Ilusão do Etnólogo o qual remete a aquilo que se estuda, a uma sociedade transparente, que acaba encontrando a semifantasia dos indígenas, sendo considerada uma semi-ilusão. O etnólogo fica tentado a identificar aquele que estuda através da paisagem e espaço descoberto e que eles indicam. Mas os indígenas ignoram a história, sua mobilidade, a multiplicidade de espaços dos quais se referem e a flutuação de suas fronteiras, por sua vez de suas identidades. Tentam se apegar a uma estabilidade do passado.

A esse movimento de querer manter uma imagem identitária arraigada ao passado poderia se chamar de “tentação da totalidade”. Auge expõe duas ideias de totalidade do fato social: uma que se remete a Mauss e outra de Levi-Strauss. A primeira se ramifica em mais duas que acredita na totalidade ser a soma das diversas instituições ou também ao conjunto das diversas dimensões que compõem a individualidade de cada um. De acordo com Mauss, o homem médio na sociedade moderna seria qualquer um que não pertencesse a elite. Nesse sentido, a sociedade moderna possuiria um objeto etnológico dominável, localizado no tempo e espaço. Levi-Strauss vem afirmar que o fato social é algo totalmente percebido, cuja interpretação está integrada a visão que se tem de qualquer um, baseando-se na concepção do homem “médio” ou “total”, que é afetado por tudo e qualquer coisa. De qualquer forma, as ideias de totalidade e sociedade localizada remetem a uma transparência entre cultura, sociedade e indivíduo.

Uma função ideal para os etnólogos é caracterizar particularidades singulares, de forma que cada etnia fosse diferente da outra. Porém essa visão culturalista da sociedade tem limites, pois substantificando cada cultura singular se ignora tanto o caráter problemático (quando há reações ante às outras culturas e movimentos bruscos da história), quanto a complexidade da trama social e de posições individuais. Apesar das desvantagens em se afirmar uma postura identitária definitiva uma sociedade, não se deve ignorar a fantasia indígena e a ilusão etnológica que, na organização do espaço e constituição de lugares, compõe as motivações e uma das modalidades práticas coletivas e individuais no interior de um mesmo grupo social.

Voltando ao campo da feira como exemplo, a concepção que se construiu ao longo da história que se tem desse lugar já produz nos indivíduos algum afeto e os prepara para o que encontram nesse ambiente. Ao mesmo tempo, cada feira tem suas particularidades, seus modos de se organizar, as pessoas que a compõem, entre outras características que são compartilhadas numa comunidade. Essas características compartilhadas contribuem para se construir uma opinião generalizada sobre esse lugar, que ao mesmo tempo faz imaginar uma identidade contribui na união entre os que fazem parte, principalmente, os feirantes. Estes podem se sentir impelidos a organizar associações que os ajudem a manter esse lugar.

Auge vem afirmar que se constitui uma necessidade para as coletividades pensar a identidade e a relação, que para tanto deve simbolizar os constituintes da identidade partilhada (conjunto de um grupo), da identidade particular (determinado grupo ou indivíduo) e identidade singular (indivíduo ou grupo não semelhante a nenhum outro). Para fazer essa simbolização, um dos meios é o tratamento do espaço, que faz com que o etnólogo se sinta tentado a dar sentido do espaço ao social, como produzindo algo definitivamente. Esse é um percurso “cultural”, que se faz passar pelos signos mais visíveis, instituídos e reconhecidos da ordem social, o qual esboça um lugar comum.

A esse lugar comum Auge chama de Lugar Antropológico, que se caracteriza por uma construção concreta e simbólica do espaço, mas que não dá conta das contradições da vida social. Referir-se-ia a todos a quem designa naquele espaço. Este lugar seria um princípio de sentido para aqueles que habitam e um princípio de inteligibilidade para quem os observa, mas com uma escala variável. Auge acredita que existam pelo menos três características comuns que são identitárias, relacionais e históricas. A primeira pode ser representada como o lugar do nascimento como constitutivo da identidade individual, um lugar próprio, singular e exclusivo. A segunda característica diz do lugar que, para Michel de Certeau, tem seus elementos distribuídos em relações de coexistência, ao lado do outro, onde num mesmo lugar podem coexistir elementos distintos e singulares. Por último, o lugar histórico ao conjugar a identidade e a relação, definindo uma estabilidade mínima. “O habitante do lugar antropológico não faz história, vive na história” (AUGE, 1994, p.53).

Os percursos e recursos que desaparecem no lugar antropológico na realidade se transformam, pois já não falam mais de lembranças e recordações do tempo que passa ou o indivíduo que muda. Os habitantes se sentem turistas da intimidade desse lugar, espectadores de si a partir do momento que projetam os lugares que viveram através de celebrações, rituais e encenações. Essas transformações trazem uma série de consequências, como no fato do lugar antropológico ser ambíguo, uma ideia parcialmente materializada ou mitificada, quando varia a depender do lugar e do ponto de vista de quem ocupa. Além disso, uma série de marcas propostas e impostas pelo lugar quando desaparecem não voltam a ser preenchidas com facilidade. O etnólogo, sensível ao que observa, busca a proximidade do sentido, os signos.

A feira se encaixa e pode ser considerada um lugar antropológico, pois apesar das mudanças que carrega durante seu percurso histórico, diante das diversas gerações que passaram por ela, ainda se compõe um sentido, modos de experienciar a feira, um identidade que marca esse lugar. Aliado a essa construção identitária da feira, existem as contradições, as pesculiaridades de cada tipo de feira, a depender da localidade, dos habitantes que a compõem, dos feirantes que a organizam, de toda uma gama de fatores que não a tornam simples de se identificar, mas não deixa de promover uma ligação forte entre aqueles que fazem a feira.

Outra característica que pode ser constatada no lugar antropológico, de acordo com Auge, é o fato de ser geométrico. É possível percebê-lo em três formas espaciais simples que são aplicadas em dispositivos institucionais diferentes, que constituem as formas elementares do espaço social. Essas formas simples são a linha, a interseção de linha e o ponto de interseção que refletem nos dispositivos de itinerários, cruzamentos e centros os quais podem até coincidir parcialmente por não serem noções absolutamente independentes. Os itinerários são definidos como os locais de ajuntamento; já os mercados são pontos fixos que se encontram nos itinerários, funcionando como centro de atração. O centro de cidades são lugares ativos onde ficam espaços de maior movimentação como lojas, bares, hotéis, praça, sendo neste lugar que funciona a feira. O sistema rodoviário é que liga esses centros através de uma rede. Constrói-se dessa maneira uma complexidade institucional com esses vários espaços.

Já se sabe que a identidade e a relação estão no cerne de todos os dispositivos espaciais clássicos estudados pela antropologia. Auge vem afirmar que a história também faz parte dos espaços, pois também possuem duração. Além disso, as formas espaciais simples só se concretizam no e pelo tempo. Criam-se as condições de uma memória que se vincula a certos lugares e contribui para reforçar o caráter sagrado. Entende-se que a noção de sagrado está ligado ao caráter retrospectivo que decorre do caráter alternativo dos rituais.

Entre outros recursos que fazem menção a história do lugar existe o monumento que indica uma idéia de permanência, duração, continuidade das gerações. Cria-se uma ilusão monumental que permite a história não ser uma abstração. O espaço social possui muitos monumentos não diretamente funcionais que trazem a idéia de preexistência e que sobreviveram. Paradoxalmente, uma série de rupturas e descontinuidades no espaço representam a continuidade do tempo.

Pode-se considerar, de acordo com Auge, o corpo humano também uma porção do espaço, um espaço construído, hierarquizado, onde pode ser investido do exterior no plano da imaginação. O corpo seria então pensado como território, um lugar de culto. Nesse sentido o corpo centralizado se transforma em um monumento e dentro de um simbolismo político faz com que se expresse o poder da autoridade unificada. Este corpo simbolizado numa única figura soberana representaria as diversidades internas de uma coletividade social.

O soberano geralmente ocupa uma residência fixa, condenado a quase imobilidade, exposto no trono real, apresentado como objeto aos súditos. Percebe-se com isso uma passividade do corpo soberano. Mas existem outros corpos ou objetos, como o trono ou a coroa, que substituem o corpo do soberano para garantir o centro fixo do reino que o condena a longas horas de imobilidade. Interessante notar que justamente essa situação de imobilidade que reforça a perenidade da dinastia, que ordena e unifica a diversidade do corpo social. É através da identificação do poder num lugar fixo onde se abriga ou exerce como monumento ou representante que consta a regra do discurso político dos Estados modernos. A centralidade seria expressão mais aproximada para se pensar simultaneamente unidade e diversidade. Percebe-se que a metáfora geográfica perece dar conta da vida política que se quer centralizada.

Há nos espaços coletivos uma reinvindicação à profundidade histórica, bem como a abertura para o exterior, um equilibre o outro. Para tanto, vem-se colocando uma série de painéis que constituem uma espécie de cartão de visitas, que atraem o passante e turista, mas que só dá certo ao relacioná-los à história e a identidade arraigados na terra. Essa alusão ao passado torna mais complexo o presente. Entre os artifícios para acrescentar essa dimensão histórica tem-se os monumentos datados também se transformam em provas de autenticidade dessa história resgatada que provoca um interesse por si só. Além disso, tem os nomes de ruas, na maior parte das vezes são notabilidades da vida social e nacional ou grandes fatos históricos. Essa incessante referência a história provoca frequentes coincidências entre itinerários, cruzamentos e monumentos.

Mas a relação com a história está em vias de se artificializar, quando cidades se transformam em museus porque surgem desvios, rodovias e trens de alta velocidade que convidam a ignorar as marcas identitárias da terra e vestígios da história. Esse contraste ou paradoxo marcado por estradas de cidades, grandes conjuntos, zonas industrializadas e supermercados são locais onde existem os painéis que convidam a visitar monumentos antigos. Os locais de passagem ou grande aglomeração efêmera de sujeitos são usados a fazer referência a aquilo que dura, que possui história. Multiplicam-se as referências às curiosidades locais que deveriam nos reter, mas que na realidade só faz apenas alusão ao tempo e lugares antigos dizendo algo daquele espaço presente.

terça-feira, 5 de abril de 2011

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI: Livre adaptação de uma conferência sobre o cinema de Glauber Rocha

Acho que foi lá pelos idos dos anos 70 ou 80, quando Glauber Rocha esteve em Aracaju, no então Cine Vitória, no centro da cidade, mais ou menos onde é hoje a sede das Lojas Americanas. Casa lotada, o filme que o polêmico cineasta veio lançar em terras de Serigy era Terra em Transe. No elenco, só de Paulos tinham três de peso: o Gracindo, o Autran e o César Peréio. Ainda tinha Darlene Glória, Danuza Leão, Hugo Carvana e José Lewgoy, tudo para abrilhantar a mostra do filme e lotar ainda mais o Cine Vitória. Clima de entrega do Oscar!
O jornalista e crítico sergipano de cinema, Ivan Valença, era um dos que aguardavam a chegada de Glauber Rocha ao Cine Vitória, para iniciar a exibição do filme. Como o atraso foi ficando pra lá de qualquer tolerância (na época, o Cine Vitória não tinha ar condicionado, só ventiladores laterais!), Ivan Valença resolveu ir até a sala de projeção pra ver se estava tudo OK, para que, quando chegasse o Glauber, o evento começasse imediatamente. Para surpresa do Ivan, segundo seu próprio depoimento em uma conferência anos depois, a agonia era ainda maior na sala de projeção. É que os rolos (latas) dos filmes haviam chegado sem numeração – três ao todo. A dúvida atroz era: qual é o rolo número 1, o número 2 e o número três? Para que o filme fosse mostrado na “sequência lógica”, era preciso saber a ordem das latas, sem o que seria muito difícil “acertar” na projeção. Bem que tentaram colocar um pedacinho do filme de cada lata contra a luz, mas não adiantou muita coisa; o negócio, então, era esperar o Glauber chegar.
Agonias aumentando, a essa altura já além do limite, quando finalmente chega Glauber Rocha! Chega na tranqüilidade de sempre, aquele jeito meio zen, meio “acordei agora” ou “ainda estou pra lá de Bagdá”, e pergunta: Cadê o filme? Não chegou?
Todo mundo sobe correndo as escadas da sala de projeção e, na subida, vai o Ivan explicando:

- Glauber, é o seguinte... o pessoal tá aqui há mais de uma hora esperando, o calor tá insuportável, e a gente estava aflito pra você chegar, para nos dizer qual é a lata ou o rolo de filme que deve ser colocado primeiro na projeção.

- Então o filme chegou? Por que não começaram a projetar ainda? Estavam me esperando? Vocês não me conhecem mesmo, não é? Não é pra me esperar!

- Não, Glauber, não se trata disso. Estávamos esperando por você sim, mas não apenas pela sua presença. É que ninguém sabe qual rolo de filme colocar primeiro, só isso! Como é você o cineasta, estamos aguardando para você nos dizer; aí sim começamos a projeção.
Glauber Rocha, entre um sorriso e uma cara feia, completou:

- Gente, isso não tem a menor importância! Se estão esperando um filme com começo, meio e fim, e com uma história bonitinha para que o mocinho devore a mocinha, ou que o José Lewgoy mate o Paulo Gracindo a golpes de facão, desistam! Eu não faço cinema com enredo marcado, nem cinema por encomenda. Meu cinema é para sentir o que o cinema tem de sensação, de emocional, de som, de imagem sem foco, por aí vai. “Já vi que vocês não entendem porra nenhuma de cinema!”, no arremate típico de Glauber.
Diante da pequena platéia na sala de projeção, olhando para ele ainda sem entender direito, veio a finalização:

- Ah, querem mesmo saber qual é a ordem dos rolos de fita? É a seguinte: peguem a primeira que estiver à mão e coloquem para projetar. Depois uma outra qualquer e, por fim, a última. Se tiverem tempo, invertam a ordem e apresentem o filme de novo. Vocês vão ver que não faz a menor diferença!

Foi difícil entender de primeira. Mas algumas vezes depois de ver o filme em várias ordens, deu pra entender o que é que o cineasta estava mesmo querendo dizer. O cinema de Glauber Rocha não é o de Hollywood, nem é o cinema indiano, nem o francês. É o cinema de Glauber, talvez uma das maneiras mais próximas de entender, no mundo psíquico, o que quer dizer cinema! Não é para ter um enredo bonitinho; é para ter uma sensação direta e profunda.


Mário Celso N. Andrade - UFS/DPS