terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Prezada Senhora Ana Cecília

Tenho, pois, de escrever uma correspondência e quis o destino, isto é, o sorteio que foste tu a minha destinatária. Na verdade, o que escreverei aqui certamente escreveria para quaisquer destinatários, porque o que importa é escrever, “expor-se, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro” (DE V, p. 156). Também importa ser lido, também importa saber quem vai ler, mas nesse caso o universo não se limita a ti. Quaisquer sujeitos presentes no dia 10 de novembro de 2010 na aula foucaultiana poderiam receber esta carta. Então, vamos lá.
Sobre o que escreverei? Sobre qualquer coisa, diriam alguns. Ora, mas não existem quaisquer coisas; todas as coisas têm a sua verdade, ainda que inconstante, que transitória. E atrás dela correram, por muitos séculos, diversos cientistas. Alguns deles sustentaram tê-la e morreram sem saber que “a própria verdade científica de hoje não passa de um episódio” (DE II, 1985, p. 361). Aliás, para construir a história dos viventes, foi preciso buscar estudar a morte, o feio e o erro; não para que a partir daí se chegasse à vida ou ao bonito ou ao certo. Mas para que a partir daí se percebessem as relações entre uma coisa e outra, se percebesse que no emaranhado em que elas estão não se fazem opostas, não se fazem melhores ou piores; o que importa é a relação que se estabelece entre as pessoas, entre elas e os objetos.
Toda relação é um entretenimento. Sem entretenimento não se vive. É um jogo de poder. Um jogo que não dispensa ninguém. Tão logo nascemos, entramos no mundo da linguagem e, então, começou a partida. Uma partida em que cada componente é singular; o contingente é a arena em que se joga e o que move o jogar, além da busca pela verdade, é saber que o tempo do jogo é o presente; não se joga para ganhar ou perder, joga-se para simplesmente viver. Isto pode parecer pouco, mas é o destino de quem mergulhou no mundo da linguagem e conseguiu emergir, ou seja, constituir-se como sujeito. O mundo é feito de “coisas ditas”. O sujeito é tecido no discurso, entrelaçado por ele, e se faz discurso, pois, efetivamente, o sujeito se pronunciará por meio das negações, das súplicas, das dúvidas, etc.
E o discurso de onde vem e para onde vai? Talvez, ele não vá nem venha, pois está aí por todo o sempre na história: “não se pode dissociar o mundo histórico em que vivemos de todos os elementos discursivos que habitaram esse mundo e ainda o habitam” (DE III, p. 404). Constituímo-nos de linguagem e por meio da apreensão que fazemos dela nos expressamos e nos inserimos nas centenas relações de poder; assim em meio a elas abriremos resistências. Nas relações de poder há submissão, entrega, mas há acima de tudo, na repetição dessas relações, resistências, escapes. Essa agitação leva o sujeito a emitir “enunciados que serão considerados verdadeiros” (DE IV, p. 233). Verdadeiros porque foram ditos, ainda que inventados. Afinal, o que conta é “saber o que somos nesse tempo que é o nosso” (DE V, p. 301).
O que somos?
Não somos substância. O sujeito “é uma forma, e essa forma nem sempre é, sobretudo, idêntica a si mesma” (DE V, p. 274). Somos sujeitos que entramos em um ou outro jogo de verdade. As relações que vivenciamos são diversas e distintas; “móveis, reversíveis e instáveis”, logo, fazem-nos sujeitos “com diferentes formas”, imbuídos de poder e de liberdade. Por meio da liberdade é que nos posicionamos diferentemente de acordo com o que exige a história que nos cerca, as contingências que nos surpreendem. Enfim, constituímo-nos plural. Se o mundo fosse um objeto estático, mesmo assim, o homem agiria em relação a ele de modo dinâmico pois o homem se deslocaria em torno desse objeto, olhando-o diversas vezes em circunstâncias completamente distintas. Imagina que o mundo gira, o homem gira, somos uma roda viva.
Veja o que ocorreu em nossas aulas foucaultianas. Quantas rodas de conversa foram feitas, quantas promessas de discutir o texto foram cumpridas e descumpridas, quantas divagações, quantas balas de banana, quantas revelações. Quem tinha o domínio da palavra? Quem direcionava as aulas? Quem se esquecia de ler o texto para a aula? Quem se calava?
Percebeu? Todos fizeram tudo, porque as aulas giravam. A depender da rotação você falava mais, falava menos, não falava. E daí? Numa relação de liberdade e ética, todos estavam construindo a longa escrita de si. A compreensão do Foucault, mas não a compreensão única de um mestre dotado do saber. Chegamos até a duvidar da verdade do Foucault!! Chegamos até a fingir ser o “filósofo mascarado” para que no fingimento escrevêssemos as nossas verdades e mentiras momentâneas!!
Por fim, Cecília, tenho de parar e contestando o início da carta, eis que escrevo algo que é exclusivamente para você, isto é, para mim e para você: “a vida só é possível reinventada”!

Até breve,

Quem assina a carta?


Por ora, sou Herculine Barbin. Por quê? Porque sou homem e sou mulher, verdadeiro e mentiroso, escritor e leitor, ateu e crente, político e nefelibata, rico e pobre, sadio e doente, bonito e feio, forte e fraco; enfim, sou Hércules Barbie.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Já é noite quando me sento para redigir esta carta. Na verdade, ela já deveria estar pronta, já deveria ter sido enviada... acho até que se os prazos tivessem sido cumpridos por mim no momento em que escrevo já teria sido lida. Peço perdão. Alguns imprevistos e contratempos do percurso contribuíram para o atraso, mas agora que posso, sento e escrevo. Escrevo com satisfação. Há muito que um trabalho acadêmico não se apresenta tão interessante aos meus olhos. Fico feliz por ter participado dessa disciplina que se desenrolou de uma maneira muito gostosa ao longo do semestre e que encontrou uma maneira igualmente gostosa de se encerrar: escrever uma carta anônima! Posso afirmar com toda certeza que, muito mais do que Foucault, que foi a figura, a instituição, o autor em torno do qual nos reunimos durante esse tempo, somos nós, eu, você e os demais integrantes do grupo, os responsáveis pelo sucesso da disciplina. Uso a palavra sucesso não pensando em padrões que foram conquistados ou metas que foram atingidas, mas pensando nos encontros que foram proporcionados, nas questões que foram levantadas e nos afetos que foram produzidos.
Pensando em afetos e em todas as coisas que me mobilizaram nesse percurso nem sei se todas são transponíveis em palavras. Mas, sobre as que consigo, ou acho que consigo, falar vou recorrer inicialmente às palavras de outra pessoa, um não-anônimo, nosso conhecido:
Um dia desses você vai ficar lembrando de nós dois
e não vai acender a luz do quarto quando o sol se for
bem abraçada no lençol da cama vai chorar por nós
pensando no escuro ter ouvido o som da minha voz
vai acariciar seu próprio corpo e na imaginação
fazer de conta que a sua agora é a minha mão
mas eu não vou saber de nada do que você vai sentir
sozinha no seu quarto de dormir.¹

O trecho acima é de uma música intitulada “quarto de dormir” e me faz pensar em coisas íntimas e secretas. Essa carta, por exemplo, se não for íntima, é no mínimo secreta em função do seu caráter anônimo, apesar de ao mesmo tempo ser compartilhada por toda a turma. Já se pensarmos em nós, individualmente, se não somos secretos, não temos como renegar à intimidade que nos constitui. Nos constitui? É-nos imposta? Ou impera sobre nós? Os três não são necessariamente excludentes. Aquilo que dedicamos à esfera do nosso quarto de dormir, inclusive dormir, é parte fundamental disso que foi referido acima como individualidade e que guarda uma certa verdade sobre cada um de nós. Verdade essa que abrange inclusive nossa intimidade e nossos segredos.
Fico me perguntando se não estaria você tentando adivinhar quem sou eu. Quem, dentre as pessoas que foram seus colegas de turma durante um semestre inteiro, estaria te dedicando estas palavras? Em algum momento, para encontrar o mascarado escritor desta carta as coisas ditas precisarão se unir a uma ou mais imagens para constituir a verdade do autor. Maldita verdade que nos acompanha onde quer que formos. Por que maldita? Como uma maldição, ela permite e espera um único desfecho e aparece como única explicação, faz com que precisemos de explicação.
O fardo da verdade se estende às esferas mais íntimas e secretas da nossa vida. Eu disse “se estende”? Agora fiquei na dúvida... será que não seria mais apropriado dizer que é o próprio anseio por uma verdade que produz esferas íntimas e secretas? Sabe, se de alguma forma eu possuísse palavras de conforto diante de todas essas dúvidas que levanto eu as diria. Não sei onde o conforto nos levaria. De fato, não considero que o conforto permita qualquer tipo de movimento, no máximo ele permite que continuemos na inércia do mesmo lugar. Um lugar onde, ao mesmo tempo em que podemos ser facilmente encontrados, é inevitável que estejamos sós.
Acho que essa carta trás um pouco de proximidade... talvez um pouco de intimidade compartilhada. O que venho por meio desta compartilhar contigo, caro colega, é a minha necessidade de companhia. O que quero dizer é que não me agrada permanecer no conforto de uma vida solitária, preciso de companhia, de colegas, de parceiros. Preciso de pessoas, livros, imagens e tensões que ponham a minha vida em movimento, para que nesse movimento eu perceba que a minha vida não é só minha, que essa tal individualidade é ilusória, por que de repente eu me percebo no meio de uma deliciosa confusão muito maior que o meu alcance. Uma confusão que abre espaço para o falseamento da tão perseguida verdade e que a todo instante é invadida pelos frutos do acaso. Também de repente, percebemos que não há nada mais íntimo do que essa estranha coletividade e que os segredos não precisam se justificar, mesmo quando revelados ainda é permitido que mantenham sua aura de mistério.
Talvez essa carta assuma a aparência de palavras ao vento, ou quem sabe contenha certa frivolidade, ou possua uma grande falta de sentido. Não sei. Só o que posso afirmar é que essa é uma carta despretensiosa, não tentei resolver grandes mistérios ou inaugurar novas idéias, só tentei falar um pouco de mim para você! Espero que o prazer que senti ao escrever seja alcançado também na outra margem desse papel!
Com carinho,
Uma boa noite!
Pindorama, novembro de 2010.

Caro Eder,
sei que você recebe essa carta com uma disposição incomum. Ler uma carta de quem lhe é desconhecido é algo incomum nesses dias. Por isso, é essa disposição do que aqui quero tratar aqui, um pouco que seja. A sua disposição, a minha e a dos demais companheiros e companheiras que participam dessa brincadeira, parece-me ser algo que não se deva deixar passar despercebido. As coisas costumam aparecer e desaparecer sem que a gente se dê conta daquilo que foi experimentado. Evaporam. A troca dessas cartas parece dizer que a essa indiferença, não nos permitimos. É uma aposta que faço. Essa aposta pode se confirmar como boa aposta, quando do nosso almoço de fechamento dos trabalhos da disciplina, com todos aparecendo com as cartas que receberam de escritores mascarados para realizar uma leitura pública e comunitária no lugar combinado, mas também pode ser uma boa aposta, nesse instante mesmo, de escrita e leitura, quando outros mundos podem ser inventados.
Menos pelo efeito e mais pelo cuidado, tenderei a ver nesses momentos alguma alegria transbordando, além daquilo que durantes esses meses temos vivido e repartido, junto aos ditos e escritos de Michel Foucault. Como fosse uma brincadeira que vivida intensamente, ao fim vai perdendo o sentido, seja pelo cansaço do corpo, seja pela ausência da lógica que a sustenta, mas nesse princípio de desaparecimento, vê-se entre os brincantes uma correspondência estranha através da troca de olhares, gestos e risos, ou como um sentimento que se reparte sem razão, percebe-se novas correspondências. Algo como se ali, houvesse sido produzida uma outra gramática, uma linguagem singular para aquele acontecimento, que se não faz dele melhor ou pior que outros, lhe torna ao menos distinto. Coisa própria aos que se encontram com disposição em se encontrar.
Não seria possível entretanto, apontar o que cada um leva dessa brincadeira. Muito menos o que levaremos em comum. Também não seria o melhor valor dessa experiência. Acho também que isso não é possível, ante a pluralidade do que se fez. Foucault concordaria com isso? E você? Sei que você não sabe de onde vem a carta. Não tem meu endereço. A pergunta pode soar cruel, dada a inviabilidade de encaminhar a resposta, mas não se trata disso. E que me deu uma vontade de querer saber de imediato a sua opinião sobre isso. Mas disposição e opinião são coisas que não necessariamente precisam caminhar juntas. Melhor até que não.
Mas vamos adiante nessa escrita de mim que intento aqui fazer transparecer uma escrita de si. A condição de escritor mascarado parece querer zelar por essa possibilidade, mas não esqueçamos que ela é apenas uma forma de dizer. Fosse ela o dito, a ética desfilaria pelos atos, como neles mesmos; apenas. A fenomenologia se esbaldaria num mundo muito peculiar a sua verdade. A coisa para a consciência e vice e versa. Não é assim que a vida funciona. Não é a assim que um encontro acontece.
Bom, retorno a disposição como uma vontade quase ingênua, mas ativa, que busca fazer ver as linhas além das margens da folha que as carrega. Isso me parece um encontro. Nesse momento essa questão me incomoda e trabalho com ela para uma outra produção em texto, mas aqui, quem sabe mais leve, solto, distraído, consiga dela dizer, até mesmo como um exercício.
Uma questão. Como conhecer o desconhecido? Uma resposta. Fabricando-o. Uma outra questão. Como fabricar o desconhecido? Uma outra resposta. Entregando-se ao desconhecimento. Penso que as linhas impressas de cada texto só trazem o desconhecido quando atravessadas pelo olhar disposto, curioso e precário, que trabalha em nome da extensão, quase que exclusivamente. Dar extensão as coisas é a sua função, a sua paixão e o seu legado.
Desse modo, esse olhar precário que denuncia a si, melhor, denuncia a sua condição de insuficiência no ato de ver, vai a cata de parceiros ou algo como aquilo que Gilles Deleuze chama por intercessores. Sua condição convoca essas parcerias para que um sentido se produza. Trabalha esse olhar com disposição.
Daí, quem sabe, nas linhas que ele encontra e mira, possa estabelecer nelas, melhor, com elas, alguma miragem. Fazer aparecer onde não está, alguma imagens, mesmo que para uma convicção objetiva não esteja ali o que se diz ver, saberá esse olhar precário em ação conjunta a sua parceria, que há algo ali, pois não poderia ser de outro modo. Ali há o desconhecido sendo fabricado.
Uma cena. A escrita de uma linha, geralmente é marcada por preenchimento do espaço com signos específicos e já reconhecidos, que almejando uma definição qualquer, se agrupam e afastam esse agrupamento de outros; daí o par agrupamento-afastamento estabelece uma sentença que é tomada por frase. O olhar decifrador e filiado a política de Hermes, portanto hermenêutico, dirá dali duas condições. Aquilo que é ou aquilo que quis ser, mas não conseguiu. A frase que é um agrupamentos de agrupados que se afastam entre si, essa mesma frase que se diz sentença, é subtraída da sua pretensão inicial, sendo submetida a uma política de estabelecer o verdadeiro por um modo exclusivo de produzir e impor sentenças. O par agrupamento-afastamento encontra o par verdadeiro-falso e nesse momento encerra-se como acontecimento. Passa necessariamente, nesse instante a ser: seja verdade, seja mentira.
Voltando a cena. Um olhar encontra uma linha. O olhar está disposto, ativo e se sabe precário. A linha, supostamente passiva e disposta na página, aguarda o que dela vai se fazer. Sentença ou presença? É necessário alguma mágica para que esse tipo de máquina funcione. Não vem ao caso, mas eis que o disposto na linha não se encerra nela como sentença e o olhar não consegue deixa-lá e partir para o próximo arranjo. Ficam ali então, namorando. O olhar disposto e precário não se alinha à lógica do que está disposto na página. O movimento do texto lhe comanda a seguir adiante. Ele não consegue. Enuncia aí para o mundo a sua condição precária. Precisa daquela linha. A linha, aquela que fora feita para ser sentença quase percebe que outra coisa pode vir a ser, mas cabe ao olhar retirá-la da página como sentença. Só há um modo de fazê-lo. Transformando-a em som. Ela já se permite uma outra condição. Ele necessita disso. Transfiguram-se o escrito e o lido numa sonoridade. Um encontro que retira o instante de um tempo marcado e o permite vibrar como modulações sonoras, que reverberam os os escritos e lidos para algum além de si-mesmos. Têm-se aí as reverberações do fazer ou
algo como se a linha dissesse ao olho: “me leia, que lhe escuto”.
É o que lhe peço!
Abraço,

Cícero Ritornelo da Silva
Aracaju, 20 de novembro de 2010.

Andressa,

Durante a convivência que tivemos este semestre, pudemos ter contato
com alguns conceitos que vieram enriquecer sobremaneira a nossa
vontade de saber.
Escolhi destacar, neste momento, os temas da menoridade e da
maioridade, discutidos no começo do nosso curso. E não me cabe aqui
pormenorizar aspectos de um e de outro, pois tenho certeza que você já
os domina muito bem, em razão de você ser sempre muito participativa
em aula.
Realço apenas a questão da maioridade. Compreendi que a condição da
maioridade permite ao indivíduo alçar vôos mais altos. Vestido com
audácia e coragem, pode-se modificar a relação preexistente entre
vontade, autoridade e uso da razão.
Mas vamos sair um pouco do campo do conhecimento técnico, formal,
científico, como queira denominá-lo, e passar para a seara da simples
noção de sociabilidade, que muitas vezes se imite na psicologia social.
Abandone o preconceito, pois quero mesmo entrar nos domínios do senso
comum ou talvez não, nem sei.
Senti necessidade de abordar algo sobre amadurecimento, o crescimento
como pessoa, que só chega para nós com o calejamento de tudo que
vivemos. Uns o alcançam muito cedo outros levam mais tempo... Mas é
condição de relevo para se conduzir enquanto indivíduo social.
Outro aspecto muito importante para a nossa vida como pessoa plena é
cultivar o respeito, o reconhecimento, a gratidão para com aqueles que
são muito generosos gastando tempo precioso conosco, seja nos
ensinando, mostrando-nos outras formas de enxergar o mundo,
orientando-nos, enfim.
Despeço-me com a reflexão de Gibran, na sua obra O Profeta, quando se
refere a amizade:
Quando vosso amigo expressa seu pensamento, não temais o não de vossa
própria opinião, nem prendais o sim. (.) E que não haja outra
finalidade na amizade a não ser o amadurecimento do espírito. (.)
Pois, que achais seja vosso amigo para que o procureis somente a fim
de matar o tempo? Procurai-o sempre com horas para viver: o papel do
amigo é de encher vossa necessidade, não vosso vazio.
E continuo com Gibran, aproveitando a oportunidade para exaltar o
querido e sensível Kleber:
O mestre que caminha à sombra do templo, rodeado de discípulos, não dá
de sua sabedoria, mas sim de sua fé e de sua ternura.
Abraço fraterno, um convidado para o baile de máscaras.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Alguém, de algum lugar do mundo, num dia qualquer do presente.
Escrevo-te esta carta sem saber muito bem o que dizer. Mas, de algum modo, escrevo-te para contar algumas coisas da vida que a mim tem se apresentado. Estou vestido com uma potente armadura – o anonimato – que, de fato, alarga a possibilidade de invenção de novos modos de vida. É isso: uma primeira coisa que tenho a te dizer, minha amiga, é que na escrita podemos nos tornar outrem, podemos nos transfigurar, temos condições de abandonar o velho corpo cansado das repetições sem diferenças. Entretanto, querida amiga, não basta afirmar que através da escrita podemos vir-a-ser outra coisa. Não é tão simples assim, ou, pelo menos, não vivo isso de maneira tão simples assim. Quais as condições que se arregimentam para tornar real a afirmação de que escrever pode nos levar a um outro modo de existência? Para tentar pensar melhor essa questão, recorrerei a algumas outras cartas, que aquele nosso amigo incomum, o Michel, escreveu-nos. Lembro-me que essas cartas escritas e ditas sempre nos fazem balançar, estremecer, pensar, sentir e rir. Como um outro amigo – que gostava de usar uns bigodes estranhos e que só acreditava nos deuses mundanos que dançavam – também só acredito num pensamento que possa rir e dançar, num pensamento que perambula com humor pelas tragédias do mundo e que diz sim ao acaso inominável.
Nesse momento mesmo em que te escrevo essas confusas linhas me torno outrem. O próprio ato de escrever algo para alguém produz interferências na minha constituição subjetiva que podem me arrastar para um devir por meio da escrita. Como o nosso
amigo Michel diz, escrevemos justamente para sermos diferentes daquilo que somos, para nos tornarmos outra coisa, para inventar uma outra vida, para potencializar nosso desejo de diferenciação em relação àquilo que se solidificou. E é aqui que a coisa fica mais interessante ainda. Tornamo-nos diferentes do que éramos por meio da escrita, e esse processo de diferenciação não é da ordem de um indivíduo que se fecha sobre si mesmo para se tornar outro. Esse devir da escrita, e através escrita, coloca em cena um agenciamento coletivo que constituirá traços diferentes de subjetivação. Esse tornar-se outrem que pode emergir no ato de escrever se intensifica ainda mais quando a escrita é direcionada para alguém. Algumas coisas que me constituíam, cara amiga, modificam-se quando me coloco diante dessa enigmática superfície branca do papel para te escrever uma carta. Ou seja, torno-me outro agora, quando te escrevo para falar de alguma coisa; meus processos de subjetivação entram em ebulição, e quando falo de mim, de certa forma, falo de alguém que está se inventando na própria escrita. De modo algum esse movimento de modificação de si pela escrita é isolado do conjunto de relações no qual estou envolvido. Já que escrevo para você, sua presença se faz real nos instantes em que as mãos violentam o papel para inscrever algo, no momento em que as palavras me chegam para compor as frases. Sua presença interfere nos processos subjetivos que me constitui, e você também participa do movimento que me faz ganhar outros contornos e novos delineamentos.
Quando digo que podemos diferir de nós mesmo na escrita estou falando de uma coisa que tem me intrigado muito ultimamente. De fato, preciso me tornar outrem! Parece que as velhas máscaras que usei durante um tempo já não me servem mais, e é
por isso também que te escrevo para falar dessa possibilidade de inventar novos modos de vida através da escrita. Trata-se de uma escrita de si, uma escrita que pode desmanchar um arranjo subjetivo que por ventura não mais nos sirva, para compor um novo si. Porém, essa invenção de um novo si nada tem a ver com a busca de um ideal de ego, nem com a procura de um si perfeito. Quando nos desmanchamos e nos reinventamos na escrita estamos apostando numa virtualidade, num horizonte incerto que não nos permite prever o futuro. Ou seja, quando nos inventamos por meio do ato escriturário estamos mergulhando no risco. Esse ato de criar um outro modo de existência não é algo indolor ou previsível. Se de fato apostarmos nessa capacidade de nos tornarmos outra coisa pela escrita, sentiremos a proximidade do risco, estaremos envoltos num desconhecido oceano de perigos e de possibilidades. Talvez, a vida possa se tornar mais bonita se a vivermos com a coragem de não negativar suas tragédias e suas agruras cotidianas.
Esse anônimo que te escreve usa uma máscara, muito confortável por sinal. Mas isso é outra coisa que também importa ser dito: sempre usamos máscaras, de tal modo que por trás de uma máscara só encontraremos mais e mais máscaras, um infinidade de máscaras que se coadunam para compor isso que chamamos de subjetividade. O anonimato é apenas uma máscara, mas que é extremamente potente para pensarmos nossas outras máscaras cotidianas. Utilizamos uma máscara até o momento em que ela nos serve. Mas, será que sempre temos a coragem de abandonar máscaras inúteis à nossa vida? Será que realmente temos a liberdade de inventar outras máscaras, outros modos de vida? Ou será que nos apegamos demasiadamente a
algumas máscaras a ponto de acharmos que elas são a nossa essência, a nossa identidade?
Como falei em linhas anteriores, vivo um momento que me força a abandonar antigas máscaras, para a confecção de outras. Essa necessidade é sofrida também, dolorosa, já que, de alguma maneira, perdemos o rosto quando arrancamos as máscaras antigas. Esse desejo que me assola no momento, desejo de se tornar outra coisa, inevitavelmente passa por um sofrimento. Mas se estivermos realmente dispostos a diferir do que somos, precisamos encarar esse sofrimento. Não se trata de vivermos como mártires, fazendo do sofrimento nossa própria vida; o que digo é que se efetivamente quisermos nos inventar precisamos viver as alegrias e as tristezas, os gozos e as dores desse movimento imprevisível e potente que se arroja na transformação de si pela escrita. Enquanto ainda te escrevo, arrisco-me, tento me tornar outra coisa, tento criar um fugidio modo de vida mais potente. Arrisquemo-nos um pouco mais na vida para a fazermos variar, desfuncionar e se recriar!
Com muito afeto!
Miguel Fucoul da Silva

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

À você,
uma carta... isso fora proposto nas últimas aulas daquele grupo de estudo.
Você deve ter experimentado a expectativa de aguardar chegar uma carta em sua casa e ao chegar logo quis abrir e a curiosidade lhe tomou, não?? E agora seguras estas folhas e seus olhos deslizam de um lado para o outro, captando informações... e ainda na curiosidade de saber do que se trata, o que esses escritos falam e até mesmo quem os fez...
Deves arriscar palpites sobre seu autor, não?
Sim, sobre o grupo, os encontros acontecem uma vez por semana e em conjunto com os estudos feitos em casa, se constrói diálogos, indagações, proposições, achismos, discussões... e talvez mais importante: era proposto um borbulhar de pensamentos e ainda que não expostos, surgiam idéias e quando colocados à discussão, vozes eram atentamente ouvidas e logo novas idéias e aí o desencadear das discussões.
Michel Foucault, considerável e sábio, é a linha de estudos e pensamentos. As vezes assuntos ou expressões eram tão exploradas que parecia transcender o entendimento; tentava-se expor e chegar a um entendimento e cada vez mais estreitando o que se tratava; cada um com suas limitações e expansões, mas a nenhum outro fora dada sensibilidade tal como a de Eder, que ao ler “A escrita de si” (se não me falha a memória), enorme sentimento lhe tomou e lágrimas rolaram do seu rosto...
Talvez tenha me debruçado um tanto considerável sobre o grupo, se que não o suficiente, mas o sucinto para simples conhecimento sobre o mesmo, esta era a intenção.
Enfim, tantas coisas poderiam ser escritas a você leitor, mas encerro tais escritos com o que fora dito/escrito pois já não penso no que pode aqui ser registrado, restando somente a esperança do acontecimento de coisas boas e te desejando muitos momentos, já que penso, a felicidade não é plena e constante.
Grande abraço
Aracaju, novembro de 2010