domingo, 12 de dezembro de 2010

Pindorama, novembro de 2010.

Caro Eder,
sei que você recebe essa carta com uma disposição incomum. Ler uma carta de quem lhe é desconhecido é algo incomum nesses dias. Por isso, é essa disposição do que aqui quero tratar aqui, um pouco que seja. A sua disposição, a minha e a dos demais companheiros e companheiras que participam dessa brincadeira, parece-me ser algo que não se deva deixar passar despercebido. As coisas costumam aparecer e desaparecer sem que a gente se dê conta daquilo que foi experimentado. Evaporam. A troca dessas cartas parece dizer que a essa indiferença, não nos permitimos. É uma aposta que faço. Essa aposta pode se confirmar como boa aposta, quando do nosso almoço de fechamento dos trabalhos da disciplina, com todos aparecendo com as cartas que receberam de escritores mascarados para realizar uma leitura pública e comunitária no lugar combinado, mas também pode ser uma boa aposta, nesse instante mesmo, de escrita e leitura, quando outros mundos podem ser inventados.
Menos pelo efeito e mais pelo cuidado, tenderei a ver nesses momentos alguma alegria transbordando, além daquilo que durantes esses meses temos vivido e repartido, junto aos ditos e escritos de Michel Foucault. Como fosse uma brincadeira que vivida intensamente, ao fim vai perdendo o sentido, seja pelo cansaço do corpo, seja pela ausência da lógica que a sustenta, mas nesse princípio de desaparecimento, vê-se entre os brincantes uma correspondência estranha através da troca de olhares, gestos e risos, ou como um sentimento que se reparte sem razão, percebe-se novas correspondências. Algo como se ali, houvesse sido produzida uma outra gramática, uma linguagem singular para aquele acontecimento, que se não faz dele melhor ou pior que outros, lhe torna ao menos distinto. Coisa própria aos que se encontram com disposição em se encontrar.
Não seria possível entretanto, apontar o que cada um leva dessa brincadeira. Muito menos o que levaremos em comum. Também não seria o melhor valor dessa experiência. Acho também que isso não é possível, ante a pluralidade do que se fez. Foucault concordaria com isso? E você? Sei que você não sabe de onde vem a carta. Não tem meu endereço. A pergunta pode soar cruel, dada a inviabilidade de encaminhar a resposta, mas não se trata disso. E que me deu uma vontade de querer saber de imediato a sua opinião sobre isso. Mas disposição e opinião são coisas que não necessariamente precisam caminhar juntas. Melhor até que não.
Mas vamos adiante nessa escrita de mim que intento aqui fazer transparecer uma escrita de si. A condição de escritor mascarado parece querer zelar por essa possibilidade, mas não esqueçamos que ela é apenas uma forma de dizer. Fosse ela o dito, a ética desfilaria pelos atos, como neles mesmos; apenas. A fenomenologia se esbaldaria num mundo muito peculiar a sua verdade. A coisa para a consciência e vice e versa. Não é assim que a vida funciona. Não é a assim que um encontro acontece.
Bom, retorno a disposição como uma vontade quase ingênua, mas ativa, que busca fazer ver as linhas além das margens da folha que as carrega. Isso me parece um encontro. Nesse momento essa questão me incomoda e trabalho com ela para uma outra produção em texto, mas aqui, quem sabe mais leve, solto, distraído, consiga dela dizer, até mesmo como um exercício.
Uma questão. Como conhecer o desconhecido? Uma resposta. Fabricando-o. Uma outra questão. Como fabricar o desconhecido? Uma outra resposta. Entregando-se ao desconhecimento. Penso que as linhas impressas de cada texto só trazem o desconhecido quando atravessadas pelo olhar disposto, curioso e precário, que trabalha em nome da extensão, quase que exclusivamente. Dar extensão as coisas é a sua função, a sua paixão e o seu legado.
Desse modo, esse olhar precário que denuncia a si, melhor, denuncia a sua condição de insuficiência no ato de ver, vai a cata de parceiros ou algo como aquilo que Gilles Deleuze chama por intercessores. Sua condição convoca essas parcerias para que um sentido se produza. Trabalha esse olhar com disposição.
Daí, quem sabe, nas linhas que ele encontra e mira, possa estabelecer nelas, melhor, com elas, alguma miragem. Fazer aparecer onde não está, alguma imagens, mesmo que para uma convicção objetiva não esteja ali o que se diz ver, saberá esse olhar precário em ação conjunta a sua parceria, que há algo ali, pois não poderia ser de outro modo. Ali há o desconhecido sendo fabricado.
Uma cena. A escrita de uma linha, geralmente é marcada por preenchimento do espaço com signos específicos e já reconhecidos, que almejando uma definição qualquer, se agrupam e afastam esse agrupamento de outros; daí o par agrupamento-afastamento estabelece uma sentença que é tomada por frase. O olhar decifrador e filiado a política de Hermes, portanto hermenêutico, dirá dali duas condições. Aquilo que é ou aquilo que quis ser, mas não conseguiu. A frase que é um agrupamentos de agrupados que se afastam entre si, essa mesma frase que se diz sentença, é subtraída da sua pretensão inicial, sendo submetida a uma política de estabelecer o verdadeiro por um modo exclusivo de produzir e impor sentenças. O par agrupamento-afastamento encontra o par verdadeiro-falso e nesse momento encerra-se como acontecimento. Passa necessariamente, nesse instante a ser: seja verdade, seja mentira.
Voltando a cena. Um olhar encontra uma linha. O olhar está disposto, ativo e se sabe precário. A linha, supostamente passiva e disposta na página, aguarda o que dela vai se fazer. Sentença ou presença? É necessário alguma mágica para que esse tipo de máquina funcione. Não vem ao caso, mas eis que o disposto na linha não se encerra nela como sentença e o olhar não consegue deixa-lá e partir para o próximo arranjo. Ficam ali então, namorando. O olhar disposto e precário não se alinha à lógica do que está disposto na página. O movimento do texto lhe comanda a seguir adiante. Ele não consegue. Enuncia aí para o mundo a sua condição precária. Precisa daquela linha. A linha, aquela que fora feita para ser sentença quase percebe que outra coisa pode vir a ser, mas cabe ao olhar retirá-la da página como sentença. Só há um modo de fazê-lo. Transformando-a em som. Ela já se permite uma outra condição. Ele necessita disso. Transfiguram-se o escrito e o lido numa sonoridade. Um encontro que retira o instante de um tempo marcado e o permite vibrar como modulações sonoras, que reverberam os os escritos e lidos para algum além de si-mesmos. Têm-se aí as reverberações do fazer ou
algo como se a linha dissesse ao olho: “me leia, que lhe escuto”.
É o que lhe peço!
Abraço,

Cícero Ritornelo da Silva

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