sábado, 11 de dezembro de 2010

Alguém, de algum lugar do mundo, num dia qualquer do presente.
Escrevo-te esta carta sem saber muito bem o que dizer. Mas, de algum modo, escrevo-te para contar algumas coisas da vida que a mim tem se apresentado. Estou vestido com uma potente armadura – o anonimato – que, de fato, alarga a possibilidade de invenção de novos modos de vida. É isso: uma primeira coisa que tenho a te dizer, minha amiga, é que na escrita podemos nos tornar outrem, podemos nos transfigurar, temos condições de abandonar o velho corpo cansado das repetições sem diferenças. Entretanto, querida amiga, não basta afirmar que através da escrita podemos vir-a-ser outra coisa. Não é tão simples assim, ou, pelo menos, não vivo isso de maneira tão simples assim. Quais as condições que se arregimentam para tornar real a afirmação de que escrever pode nos levar a um outro modo de existência? Para tentar pensar melhor essa questão, recorrerei a algumas outras cartas, que aquele nosso amigo incomum, o Michel, escreveu-nos. Lembro-me que essas cartas escritas e ditas sempre nos fazem balançar, estremecer, pensar, sentir e rir. Como um outro amigo – que gostava de usar uns bigodes estranhos e que só acreditava nos deuses mundanos que dançavam – também só acredito num pensamento que possa rir e dançar, num pensamento que perambula com humor pelas tragédias do mundo e que diz sim ao acaso inominável.
Nesse momento mesmo em que te escrevo essas confusas linhas me torno outrem. O próprio ato de escrever algo para alguém produz interferências na minha constituição subjetiva que podem me arrastar para um devir por meio da escrita. Como o nosso
amigo Michel diz, escrevemos justamente para sermos diferentes daquilo que somos, para nos tornarmos outra coisa, para inventar uma outra vida, para potencializar nosso desejo de diferenciação em relação àquilo que se solidificou. E é aqui que a coisa fica mais interessante ainda. Tornamo-nos diferentes do que éramos por meio da escrita, e esse processo de diferenciação não é da ordem de um indivíduo que se fecha sobre si mesmo para se tornar outro. Esse devir da escrita, e através escrita, coloca em cena um agenciamento coletivo que constituirá traços diferentes de subjetivação. Esse tornar-se outrem que pode emergir no ato de escrever se intensifica ainda mais quando a escrita é direcionada para alguém. Algumas coisas que me constituíam, cara amiga, modificam-se quando me coloco diante dessa enigmática superfície branca do papel para te escrever uma carta. Ou seja, torno-me outro agora, quando te escrevo para falar de alguma coisa; meus processos de subjetivação entram em ebulição, e quando falo de mim, de certa forma, falo de alguém que está se inventando na própria escrita. De modo algum esse movimento de modificação de si pela escrita é isolado do conjunto de relações no qual estou envolvido. Já que escrevo para você, sua presença se faz real nos instantes em que as mãos violentam o papel para inscrever algo, no momento em que as palavras me chegam para compor as frases. Sua presença interfere nos processos subjetivos que me constitui, e você também participa do movimento que me faz ganhar outros contornos e novos delineamentos.
Quando digo que podemos diferir de nós mesmo na escrita estou falando de uma coisa que tem me intrigado muito ultimamente. De fato, preciso me tornar outrem! Parece que as velhas máscaras que usei durante um tempo já não me servem mais, e é
por isso também que te escrevo para falar dessa possibilidade de inventar novos modos de vida através da escrita. Trata-se de uma escrita de si, uma escrita que pode desmanchar um arranjo subjetivo que por ventura não mais nos sirva, para compor um novo si. Porém, essa invenção de um novo si nada tem a ver com a busca de um ideal de ego, nem com a procura de um si perfeito. Quando nos desmanchamos e nos reinventamos na escrita estamos apostando numa virtualidade, num horizonte incerto que não nos permite prever o futuro. Ou seja, quando nos inventamos por meio do ato escriturário estamos mergulhando no risco. Esse ato de criar um outro modo de existência não é algo indolor ou previsível. Se de fato apostarmos nessa capacidade de nos tornarmos outra coisa pela escrita, sentiremos a proximidade do risco, estaremos envoltos num desconhecido oceano de perigos e de possibilidades. Talvez, a vida possa se tornar mais bonita se a vivermos com a coragem de não negativar suas tragédias e suas agruras cotidianas.
Esse anônimo que te escreve usa uma máscara, muito confortável por sinal. Mas isso é outra coisa que também importa ser dito: sempre usamos máscaras, de tal modo que por trás de uma máscara só encontraremos mais e mais máscaras, um infinidade de máscaras que se coadunam para compor isso que chamamos de subjetividade. O anonimato é apenas uma máscara, mas que é extremamente potente para pensarmos nossas outras máscaras cotidianas. Utilizamos uma máscara até o momento em que ela nos serve. Mas, será que sempre temos a coragem de abandonar máscaras inúteis à nossa vida? Será que realmente temos a liberdade de inventar outras máscaras, outros modos de vida? Ou será que nos apegamos demasiadamente a
algumas máscaras a ponto de acharmos que elas são a nossa essência, a nossa identidade?
Como falei em linhas anteriores, vivo um momento que me força a abandonar antigas máscaras, para a confecção de outras. Essa necessidade é sofrida também, dolorosa, já que, de alguma maneira, perdemos o rosto quando arrancamos as máscaras antigas. Esse desejo que me assola no momento, desejo de se tornar outra coisa, inevitavelmente passa por um sofrimento. Mas se estivermos realmente dispostos a diferir do que somos, precisamos encarar esse sofrimento. Não se trata de vivermos como mártires, fazendo do sofrimento nossa própria vida; o que digo é que se efetivamente quisermos nos inventar precisamos viver as alegrias e as tristezas, os gozos e as dores desse movimento imprevisível e potente que se arroja na transformação de si pela escrita. Enquanto ainda te escrevo, arrisco-me, tento me tornar outra coisa, tento criar um fugidio modo de vida mais potente. Arrisquemo-nos um pouco mais na vida para a fazermos variar, desfuncionar e se recriar!
Com muito afeto!
Miguel Fucoul da Silva

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