segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Frédéric Gros e o direito dos governados

Homem alto, moreno, feição jovial e aparentando uns 45 anos. Usava um terno azul, não lembro se com gravata. Quando convidado a subir ao palco para nos conferenciar seus ditos, é anunciado como professor do Colégio da França e editor dos arquivos de Michel Foucault. Isso significa que vai falar em francês e nós, ali, em sua maioria, vamos ficar com os ouvidos atados a fones, onde uma voz de mulher fazia a tradução simultânea.

Antes da subida ao palco por Gros, estavam lá, abrindo o Seminário autoridades acadêmico-eclesiásticas. Padre Marcelo, o jesuíta reitor da Unisinos, faz a principal fala, enquanto eu testava os fones de ouvido. Daí, tive a agradável experiência de ter no outro lado uma voz feminina falando em francês. Um instante inusitado que durou minutos. Bom, mas o padre-reitor aparece aqui para que eu possa registrar o entendimento dele naquele Seminário. Uma aposta, por certo. O padre-reitor-filósofo refere-se ao encontro como um Aerópago. Por perto de mim, ninguém sabia o que era aquilo, mas creio que intuíam alguma convicção. A internet, no outro dia, mostrou ser um aerópago uma especie de conselho da aristocracia ateniense, que na época democrática cumpria funções de tribunal. Assim, éramos poucos no evento, mas éramos uma nata de algo, pensei.

Grós começa a falar e aponta para o curso de 1979, O nascimento da biopolítica, onde se foca uma discussão sobre o direito dos governados. Diz que nesse curso Foucault testa hipóteses teóricas não retomadas e que faz análises sobre o liberalismos, que assumem uma condição singular na obra do Foucault. Seria a primeira vez em que Foucault se aproximaria da atualidade política e de fatos contemporâneos, para mostrar a relação entre o liberalismo e a biopolítica. “É um curso enigmático”, pontua Gros, que diz servir para entender como o liberalismo constitui uma biopolítica.

Após essa breve introdução, Gros resolve apresentar os sentidos da biopolítica na obra do Foucault. Aqui é importante ressaltar, que na fala, Gros dar alguns saltos entre o que havia prometido e o que viabilizou, mas há também lapsos meus tentando acompanhar duas vozes ao mesmo tempo (Gros e tradutora) e ainda o gestual do francês, que projetava os braços, como se buscasse mais ênfase para algumas sentenças.

Diz que o primeiro sentido para a biopolítica aparece entre os cursos de 1973 e 1976 e encaminham duas formas complementares de biopoder: disciplinamento dos corpos e regulação das populações. Formas que combatem o poder soberano, que se ordena como uma “autoridade indiscutível” e que projetada como a lei, estabelece um direito de morte sobre a vida. Já o poder disciplinar, ocupado com a extração das utilidades dos corpos e ativando controles sobre o comportamento, se viabilizaria enquanto norma.

Daí Gros diz do interesse de Foucault em buscar decifrar o “enigma da prisão”. Relaciona nesse momento a sociedade primitiva e a sociedade disciplinar. Aponta que num primeiro momento o crime seria tomado como uma ameaça pública e a correção se resguardaria em uma sensação de desvio moral. Há uma marcação sobre o indivíduo, mas aqui me perdi um pouco na escuta. Retomo com uma frase dele, afirmando que a penitenciária assume uma funcionalidade política, num processo que ele denomina redistribuição de ilegalismos. Nessa lógica, pensar o ilegalismo do povo seria impossível; tipo: vamos prender o mundo? A degradação do ambiente social anuncia sua realidade e Gros aponta para um movimento da burguesia interessada em desestimular o ilegalismo popular através do que toma por geração de delinquência. A prisão deixaria de lado a sua funcionalidade política, passando a operar como uma determinação carcerária. Aqui se faz, ali se paga. De algum modo isso é muito liberal (coisa minha).

Em seguida ele fala da determinação disciplinar e da funcionalidade econômica, que através da disciplina transforma o tempo de vida em força de trabalho. Foucault diria que o capitalismo repousa em uma cronopolítica. Ele saiu com o termo, sem qualquer outro desdobramento sobre. Coisas de aerópago! Mas faz referência ao regime de aceleração da vida através do liberalismo.

A regulação das populações seria para Gros a segunda forma de biopoder. O Estado se envolve com questões sanitárias e a produção de medidas FLEXÍVEIS, que se aporta nos modos de fazer viver ou deixar que morra. Nesse momento Grós dá um salto e retorna ao curso de 1979, onde Foucault apresenta o capitalismo em 4 formas e marcado por uma dimensão massiva, sistemática, que dá funcionalidade às riquezas e garante o confisco das mesmas para proveito de uma minoria.

Seriam essas as 4 dimensões do capitalismo para Michel Foucault.

Capitalismo mercantil: criação do mercado e dos conceitos de troca e divisão do trabalho.

Capitalismo industrial: aparecimento das fábricas. Modelo energético. A força de trabalho tem função destacada. O direito a propriedade expressa as garantias individuais. (Ele falou de outras coisas, mas fiquei nessas).

Capitalismo gerencial: foco na organização interna. Produção de saberes para essas organizações humanas.

Capitalismo financeiro: especulação.



Importante apontar que Grós acentua que essas formas de capitalismo estão sempre presentes, e correspondem as figuras do comerciante, do patrão, dos gestor e do “trade”.

Retoma então o curso de 1973, para falar das condições éticas do capitalismo, interrogar a resignação do trabalho operário, tendo a disciplina como fator de determinação da função e orientação da força de trabalho.

Daí retorna as formas que o capitalismo assume. Na 1a; exemplifica com a análise da mão-invisível. Pontua que se a mão é invisível, é porque o sujeito é cego e voltado para o lucro pessoal. Passei-me na 2a em meus alfarrábios, mas a 3a já aponta para o neoliberalismo dos EUA, que radicaliza o modo de operação na Alemanha. A empresa é tomada como elemento de configuração subjetiva e via trabalhos produzidos na Escola de Chicago, a vida é marcada pela valorização do capital inicial. O sujeito passa a ser gestor de si, o que inviabiliza projetos coletivos.

Chegamos na 4a forma. Trata da globalização financeira. Aqui também perdi um pouco em informação, mas fica a idéia de que se vive uma passagem e intensificação dos fluxos, onde o indivíduo conectado assume o lugar do normal. As formas são modos de configuração da vida pela biopolítica e o francês Gros aponta para 4 modos de pensar essas configurações. De 4 em 4, a gente chega lá, ou por dividir as coisas dessa maneira, seria Gros um sujeito 4 x 4?

Não me cabe. Vamos às caracterizações da vida.

Para os estoicos a vida estaria marcada por um processo de orientação. Isso implicaria, nessa conversão feita por Gros, numa polarização entre os desejos vitais voltados para o consumo. (?). Em Nietzsche a vida seria uma invenção de formas e Gros entende esse modo como dinâmico. Em Aristóteles a vida seria uma atualização de potencialidades. Em Deleuze a vida é imanente e permeável. Fluxos e aberturas para outros fluxos. Aqui ele apontou que os fluxos podem se dar ou se dão em detrimento dos outros. (?).

Enfim Gros chega para discutir a relação entre biopolítica e segurança, e sobre o curso de 1979 diz tratar-se de processos de captação das forças vitais. Em Canguilhen, diz que a relação entre viventes e regulação se circunstancia entre forças externas e internas. Já em Foucault, a ação se faz nobre o meio e assim produz efeitos de comportamentos. Chega então, nessa discussão sobre controle, que toma a ação sobre o meio, a uma problematização dos dispositivos de segurança e compatibilidade, e o conceito de liberdade.

Ora, se há eficácia dos dispositivos de segurança sobre a ação dos indivíduos, como dispor sobre processos de autonomia? Para Foucault, o liberalismo tem por função o condicionamento das liberdades, acentua, mas a segurança na atualidade, modificou seu paradigma. Trata-se agora de controle de fluxos. Exemplifica com a vida no aeroporto e desse modo busca pensar um liberalismo que estabeleça um direito para os governados, o que ele vai chamar de liberalismo crítico, daqui a algumas linhas.

Nesse momento chega ao lugar de problematização da sua fala. Antes apenas dispunha sobre seu modo de ler Foucault. Que história é essa de Foucault com o direito dos governados? Gros diz que Foucault recusa a idéia de direitos humanos fundamentais. O poder é uma relação que se faz em processos de captura e resistência; e pensar a biopolítica como resistência é fazer valer o direito dos governados. Fazer valer a vontade de existir de modo diferente.

Coloca em questão então o fundamento do liberalismo e a questão do excesso de governo. O liberalismo resiste ao excesso de governo, pelo menos enquanto doutrina. Daí a modificação da biopolítica enquanto uma experiência de organização da população através de dispositivos sanitários em relação ao disposto nos EUA, pela Escola de Chicago. Troca-se o estado pela empresa.

Daí Gros formula três modalidades de liberalismo e aponta para um problema, minimamente controverso. A elas:

1.Liberalismo político e a concepção de estado de direito.

2.Liberalismo econômico e essa transição da biopolítica germânica para o modelo dos EUA.

3.Liberalismo crítico e a concepção foucaultiana de uma resistência, digamos assim, por dentro da lógica liberal da atualidade.

E essa terceira modalidade faz-se questão, que acaba não sendo muito discutida após a fala de Grós. Talvez seja coisa de aerópago, talvez seja coisa de não conseguir assimilar ali, a construção de uma discussão que pensasse outros encaminhamentos. Não havia lido esse curso na coleção dos vermelhinhos, mas fiquei muito incomodado.

Esse incômodo, reparto agora, com quem conseguiu chegar até aqui. É possível um liberalismo crítico?

É possível pensar o liberalismo apenas como um processo de racionalização dos encaminhamentos do viver, tendo por ordem modos de decisão que se pautam menos no político e mais no econômico? É possível levar essa lógica a modos de exercício de liberdades? Há ainda a questão da resistência no fluxo, mas essa não teria uma marcação predominantemente exclusiva, melhor, individual?

Questões? Bom, pra mim foram e esse texto pode não passar de efeito de exercício de um “liberalismo crítico”, mas isso ainda seria mais produtivo para a vida que passar em branco.

Abraço!



PS: Há no link: http://www.ihuonline.unisinos.br/impressa/ a conferência de Frédéric Gros. Esse texto, entretanto, pautou-se apenas na escuta que tive e em reflexões feitas nesse momento de escrita.