terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Prezada Senhora Ana Cecília

Tenho, pois, de escrever uma correspondência e quis o destino, isto é, o sorteio que foste tu a minha destinatária. Na verdade, o que escreverei aqui certamente escreveria para quaisquer destinatários, porque o que importa é escrever, “expor-se, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro” (DE V, p. 156). Também importa ser lido, também importa saber quem vai ler, mas nesse caso o universo não se limita a ti. Quaisquer sujeitos presentes no dia 10 de novembro de 2010 na aula foucaultiana poderiam receber esta carta. Então, vamos lá.
Sobre o que escreverei? Sobre qualquer coisa, diriam alguns. Ora, mas não existem quaisquer coisas; todas as coisas têm a sua verdade, ainda que inconstante, que transitória. E atrás dela correram, por muitos séculos, diversos cientistas. Alguns deles sustentaram tê-la e morreram sem saber que “a própria verdade científica de hoje não passa de um episódio” (DE II, 1985, p. 361). Aliás, para construir a história dos viventes, foi preciso buscar estudar a morte, o feio e o erro; não para que a partir daí se chegasse à vida ou ao bonito ou ao certo. Mas para que a partir daí se percebessem as relações entre uma coisa e outra, se percebesse que no emaranhado em que elas estão não se fazem opostas, não se fazem melhores ou piores; o que importa é a relação que se estabelece entre as pessoas, entre elas e os objetos.
Toda relação é um entretenimento. Sem entretenimento não se vive. É um jogo de poder. Um jogo que não dispensa ninguém. Tão logo nascemos, entramos no mundo da linguagem e, então, começou a partida. Uma partida em que cada componente é singular; o contingente é a arena em que se joga e o que move o jogar, além da busca pela verdade, é saber que o tempo do jogo é o presente; não se joga para ganhar ou perder, joga-se para simplesmente viver. Isto pode parecer pouco, mas é o destino de quem mergulhou no mundo da linguagem e conseguiu emergir, ou seja, constituir-se como sujeito. O mundo é feito de “coisas ditas”. O sujeito é tecido no discurso, entrelaçado por ele, e se faz discurso, pois, efetivamente, o sujeito se pronunciará por meio das negações, das súplicas, das dúvidas, etc.
E o discurso de onde vem e para onde vai? Talvez, ele não vá nem venha, pois está aí por todo o sempre na história: “não se pode dissociar o mundo histórico em que vivemos de todos os elementos discursivos que habitaram esse mundo e ainda o habitam” (DE III, p. 404). Constituímo-nos de linguagem e por meio da apreensão que fazemos dela nos expressamos e nos inserimos nas centenas relações de poder; assim em meio a elas abriremos resistências. Nas relações de poder há submissão, entrega, mas há acima de tudo, na repetição dessas relações, resistências, escapes. Essa agitação leva o sujeito a emitir “enunciados que serão considerados verdadeiros” (DE IV, p. 233). Verdadeiros porque foram ditos, ainda que inventados. Afinal, o que conta é “saber o que somos nesse tempo que é o nosso” (DE V, p. 301).
O que somos?
Não somos substância. O sujeito “é uma forma, e essa forma nem sempre é, sobretudo, idêntica a si mesma” (DE V, p. 274). Somos sujeitos que entramos em um ou outro jogo de verdade. As relações que vivenciamos são diversas e distintas; “móveis, reversíveis e instáveis”, logo, fazem-nos sujeitos “com diferentes formas”, imbuídos de poder e de liberdade. Por meio da liberdade é que nos posicionamos diferentemente de acordo com o que exige a história que nos cerca, as contingências que nos surpreendem. Enfim, constituímo-nos plural. Se o mundo fosse um objeto estático, mesmo assim, o homem agiria em relação a ele de modo dinâmico pois o homem se deslocaria em torno desse objeto, olhando-o diversas vezes em circunstâncias completamente distintas. Imagina que o mundo gira, o homem gira, somos uma roda viva.
Veja o que ocorreu em nossas aulas foucaultianas. Quantas rodas de conversa foram feitas, quantas promessas de discutir o texto foram cumpridas e descumpridas, quantas divagações, quantas balas de banana, quantas revelações. Quem tinha o domínio da palavra? Quem direcionava as aulas? Quem se esquecia de ler o texto para a aula? Quem se calava?
Percebeu? Todos fizeram tudo, porque as aulas giravam. A depender da rotação você falava mais, falava menos, não falava. E daí? Numa relação de liberdade e ética, todos estavam construindo a longa escrita de si. A compreensão do Foucault, mas não a compreensão única de um mestre dotado do saber. Chegamos até a duvidar da verdade do Foucault!! Chegamos até a fingir ser o “filósofo mascarado” para que no fingimento escrevêssemos as nossas verdades e mentiras momentâneas!!
Por fim, Cecília, tenho de parar e contestando o início da carta, eis que escrevo algo que é exclusivamente para você, isto é, para mim e para você: “a vida só é possível reinventada”!

Até breve,

Quem assina a carta?


Por ora, sou Herculine Barbin. Por quê? Porque sou homem e sou mulher, verdadeiro e mentiroso, escritor e leitor, ateu e crente, político e nefelibata, rico e pobre, sadio e doente, bonito e feio, forte e fraco; enfim, sou Hércules Barbie.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Já é noite quando me sento para redigir esta carta. Na verdade, ela já deveria estar pronta, já deveria ter sido enviada... acho até que se os prazos tivessem sido cumpridos por mim no momento em que escrevo já teria sido lida. Peço perdão. Alguns imprevistos e contratempos do percurso contribuíram para o atraso, mas agora que posso, sento e escrevo. Escrevo com satisfação. Há muito que um trabalho acadêmico não se apresenta tão interessante aos meus olhos. Fico feliz por ter participado dessa disciplina que se desenrolou de uma maneira muito gostosa ao longo do semestre e que encontrou uma maneira igualmente gostosa de se encerrar: escrever uma carta anônima! Posso afirmar com toda certeza que, muito mais do que Foucault, que foi a figura, a instituição, o autor em torno do qual nos reunimos durante esse tempo, somos nós, eu, você e os demais integrantes do grupo, os responsáveis pelo sucesso da disciplina. Uso a palavra sucesso não pensando em padrões que foram conquistados ou metas que foram atingidas, mas pensando nos encontros que foram proporcionados, nas questões que foram levantadas e nos afetos que foram produzidos.
Pensando em afetos e em todas as coisas que me mobilizaram nesse percurso nem sei se todas são transponíveis em palavras. Mas, sobre as que consigo, ou acho que consigo, falar vou recorrer inicialmente às palavras de outra pessoa, um não-anônimo, nosso conhecido:
Um dia desses você vai ficar lembrando de nós dois
e não vai acender a luz do quarto quando o sol se for
bem abraçada no lençol da cama vai chorar por nós
pensando no escuro ter ouvido o som da minha voz
vai acariciar seu próprio corpo e na imaginação
fazer de conta que a sua agora é a minha mão
mas eu não vou saber de nada do que você vai sentir
sozinha no seu quarto de dormir.¹

O trecho acima é de uma música intitulada “quarto de dormir” e me faz pensar em coisas íntimas e secretas. Essa carta, por exemplo, se não for íntima, é no mínimo secreta em função do seu caráter anônimo, apesar de ao mesmo tempo ser compartilhada por toda a turma. Já se pensarmos em nós, individualmente, se não somos secretos, não temos como renegar à intimidade que nos constitui. Nos constitui? É-nos imposta? Ou impera sobre nós? Os três não são necessariamente excludentes. Aquilo que dedicamos à esfera do nosso quarto de dormir, inclusive dormir, é parte fundamental disso que foi referido acima como individualidade e que guarda uma certa verdade sobre cada um de nós. Verdade essa que abrange inclusive nossa intimidade e nossos segredos.
Fico me perguntando se não estaria você tentando adivinhar quem sou eu. Quem, dentre as pessoas que foram seus colegas de turma durante um semestre inteiro, estaria te dedicando estas palavras? Em algum momento, para encontrar o mascarado escritor desta carta as coisas ditas precisarão se unir a uma ou mais imagens para constituir a verdade do autor. Maldita verdade que nos acompanha onde quer que formos. Por que maldita? Como uma maldição, ela permite e espera um único desfecho e aparece como única explicação, faz com que precisemos de explicação.
O fardo da verdade se estende às esferas mais íntimas e secretas da nossa vida. Eu disse “se estende”? Agora fiquei na dúvida... será que não seria mais apropriado dizer que é o próprio anseio por uma verdade que produz esferas íntimas e secretas? Sabe, se de alguma forma eu possuísse palavras de conforto diante de todas essas dúvidas que levanto eu as diria. Não sei onde o conforto nos levaria. De fato, não considero que o conforto permita qualquer tipo de movimento, no máximo ele permite que continuemos na inércia do mesmo lugar. Um lugar onde, ao mesmo tempo em que podemos ser facilmente encontrados, é inevitável que estejamos sós.
Acho que essa carta trás um pouco de proximidade... talvez um pouco de intimidade compartilhada. O que venho por meio desta compartilhar contigo, caro colega, é a minha necessidade de companhia. O que quero dizer é que não me agrada permanecer no conforto de uma vida solitária, preciso de companhia, de colegas, de parceiros. Preciso de pessoas, livros, imagens e tensões que ponham a minha vida em movimento, para que nesse movimento eu perceba que a minha vida não é só minha, que essa tal individualidade é ilusória, por que de repente eu me percebo no meio de uma deliciosa confusão muito maior que o meu alcance. Uma confusão que abre espaço para o falseamento da tão perseguida verdade e que a todo instante é invadida pelos frutos do acaso. Também de repente, percebemos que não há nada mais íntimo do que essa estranha coletividade e que os segredos não precisam se justificar, mesmo quando revelados ainda é permitido que mantenham sua aura de mistério.
Talvez essa carta assuma a aparência de palavras ao vento, ou quem sabe contenha certa frivolidade, ou possua uma grande falta de sentido. Não sei. Só o que posso afirmar é que essa é uma carta despretensiosa, não tentei resolver grandes mistérios ou inaugurar novas idéias, só tentei falar um pouco de mim para você! Espero que o prazer que senti ao escrever seja alcançado também na outra margem desse papel!
Com carinho,
Uma boa noite!
Pindorama, novembro de 2010.

Caro Eder,
sei que você recebe essa carta com uma disposição incomum. Ler uma carta de quem lhe é desconhecido é algo incomum nesses dias. Por isso, é essa disposição do que aqui quero tratar aqui, um pouco que seja. A sua disposição, a minha e a dos demais companheiros e companheiras que participam dessa brincadeira, parece-me ser algo que não se deva deixar passar despercebido. As coisas costumam aparecer e desaparecer sem que a gente se dê conta daquilo que foi experimentado. Evaporam. A troca dessas cartas parece dizer que a essa indiferença, não nos permitimos. É uma aposta que faço. Essa aposta pode se confirmar como boa aposta, quando do nosso almoço de fechamento dos trabalhos da disciplina, com todos aparecendo com as cartas que receberam de escritores mascarados para realizar uma leitura pública e comunitária no lugar combinado, mas também pode ser uma boa aposta, nesse instante mesmo, de escrita e leitura, quando outros mundos podem ser inventados.
Menos pelo efeito e mais pelo cuidado, tenderei a ver nesses momentos alguma alegria transbordando, além daquilo que durantes esses meses temos vivido e repartido, junto aos ditos e escritos de Michel Foucault. Como fosse uma brincadeira que vivida intensamente, ao fim vai perdendo o sentido, seja pelo cansaço do corpo, seja pela ausência da lógica que a sustenta, mas nesse princípio de desaparecimento, vê-se entre os brincantes uma correspondência estranha através da troca de olhares, gestos e risos, ou como um sentimento que se reparte sem razão, percebe-se novas correspondências. Algo como se ali, houvesse sido produzida uma outra gramática, uma linguagem singular para aquele acontecimento, que se não faz dele melhor ou pior que outros, lhe torna ao menos distinto. Coisa própria aos que se encontram com disposição em se encontrar.
Não seria possível entretanto, apontar o que cada um leva dessa brincadeira. Muito menos o que levaremos em comum. Também não seria o melhor valor dessa experiência. Acho também que isso não é possível, ante a pluralidade do que se fez. Foucault concordaria com isso? E você? Sei que você não sabe de onde vem a carta. Não tem meu endereço. A pergunta pode soar cruel, dada a inviabilidade de encaminhar a resposta, mas não se trata disso. E que me deu uma vontade de querer saber de imediato a sua opinião sobre isso. Mas disposição e opinião são coisas que não necessariamente precisam caminhar juntas. Melhor até que não.
Mas vamos adiante nessa escrita de mim que intento aqui fazer transparecer uma escrita de si. A condição de escritor mascarado parece querer zelar por essa possibilidade, mas não esqueçamos que ela é apenas uma forma de dizer. Fosse ela o dito, a ética desfilaria pelos atos, como neles mesmos; apenas. A fenomenologia se esbaldaria num mundo muito peculiar a sua verdade. A coisa para a consciência e vice e versa. Não é assim que a vida funciona. Não é a assim que um encontro acontece.
Bom, retorno a disposição como uma vontade quase ingênua, mas ativa, que busca fazer ver as linhas além das margens da folha que as carrega. Isso me parece um encontro. Nesse momento essa questão me incomoda e trabalho com ela para uma outra produção em texto, mas aqui, quem sabe mais leve, solto, distraído, consiga dela dizer, até mesmo como um exercício.
Uma questão. Como conhecer o desconhecido? Uma resposta. Fabricando-o. Uma outra questão. Como fabricar o desconhecido? Uma outra resposta. Entregando-se ao desconhecimento. Penso que as linhas impressas de cada texto só trazem o desconhecido quando atravessadas pelo olhar disposto, curioso e precário, que trabalha em nome da extensão, quase que exclusivamente. Dar extensão as coisas é a sua função, a sua paixão e o seu legado.
Desse modo, esse olhar precário que denuncia a si, melhor, denuncia a sua condição de insuficiência no ato de ver, vai a cata de parceiros ou algo como aquilo que Gilles Deleuze chama por intercessores. Sua condição convoca essas parcerias para que um sentido se produza. Trabalha esse olhar com disposição.
Daí, quem sabe, nas linhas que ele encontra e mira, possa estabelecer nelas, melhor, com elas, alguma miragem. Fazer aparecer onde não está, alguma imagens, mesmo que para uma convicção objetiva não esteja ali o que se diz ver, saberá esse olhar precário em ação conjunta a sua parceria, que há algo ali, pois não poderia ser de outro modo. Ali há o desconhecido sendo fabricado.
Uma cena. A escrita de uma linha, geralmente é marcada por preenchimento do espaço com signos específicos e já reconhecidos, que almejando uma definição qualquer, se agrupam e afastam esse agrupamento de outros; daí o par agrupamento-afastamento estabelece uma sentença que é tomada por frase. O olhar decifrador e filiado a política de Hermes, portanto hermenêutico, dirá dali duas condições. Aquilo que é ou aquilo que quis ser, mas não conseguiu. A frase que é um agrupamentos de agrupados que se afastam entre si, essa mesma frase que se diz sentença, é subtraída da sua pretensão inicial, sendo submetida a uma política de estabelecer o verdadeiro por um modo exclusivo de produzir e impor sentenças. O par agrupamento-afastamento encontra o par verdadeiro-falso e nesse momento encerra-se como acontecimento. Passa necessariamente, nesse instante a ser: seja verdade, seja mentira.
Voltando a cena. Um olhar encontra uma linha. O olhar está disposto, ativo e se sabe precário. A linha, supostamente passiva e disposta na página, aguarda o que dela vai se fazer. Sentença ou presença? É necessário alguma mágica para que esse tipo de máquina funcione. Não vem ao caso, mas eis que o disposto na linha não se encerra nela como sentença e o olhar não consegue deixa-lá e partir para o próximo arranjo. Ficam ali então, namorando. O olhar disposto e precário não se alinha à lógica do que está disposto na página. O movimento do texto lhe comanda a seguir adiante. Ele não consegue. Enuncia aí para o mundo a sua condição precária. Precisa daquela linha. A linha, aquela que fora feita para ser sentença quase percebe que outra coisa pode vir a ser, mas cabe ao olhar retirá-la da página como sentença. Só há um modo de fazê-lo. Transformando-a em som. Ela já se permite uma outra condição. Ele necessita disso. Transfiguram-se o escrito e o lido numa sonoridade. Um encontro que retira o instante de um tempo marcado e o permite vibrar como modulações sonoras, que reverberam os os escritos e lidos para algum além de si-mesmos. Têm-se aí as reverberações do fazer ou
algo como se a linha dissesse ao olho: “me leia, que lhe escuto”.
É o que lhe peço!
Abraço,

Cícero Ritornelo da Silva
Aracaju, 20 de novembro de 2010.

Andressa,

Durante a convivência que tivemos este semestre, pudemos ter contato
com alguns conceitos que vieram enriquecer sobremaneira a nossa
vontade de saber.
Escolhi destacar, neste momento, os temas da menoridade e da
maioridade, discutidos no começo do nosso curso. E não me cabe aqui
pormenorizar aspectos de um e de outro, pois tenho certeza que você já
os domina muito bem, em razão de você ser sempre muito participativa
em aula.
Realço apenas a questão da maioridade. Compreendi que a condição da
maioridade permite ao indivíduo alçar vôos mais altos. Vestido com
audácia e coragem, pode-se modificar a relação preexistente entre
vontade, autoridade e uso da razão.
Mas vamos sair um pouco do campo do conhecimento técnico, formal,
científico, como queira denominá-lo, e passar para a seara da simples
noção de sociabilidade, que muitas vezes se imite na psicologia social.
Abandone o preconceito, pois quero mesmo entrar nos domínios do senso
comum ou talvez não, nem sei.
Senti necessidade de abordar algo sobre amadurecimento, o crescimento
como pessoa, que só chega para nós com o calejamento de tudo que
vivemos. Uns o alcançam muito cedo outros levam mais tempo... Mas é
condição de relevo para se conduzir enquanto indivíduo social.
Outro aspecto muito importante para a nossa vida como pessoa plena é
cultivar o respeito, o reconhecimento, a gratidão para com aqueles que
são muito generosos gastando tempo precioso conosco, seja nos
ensinando, mostrando-nos outras formas de enxergar o mundo,
orientando-nos, enfim.
Despeço-me com a reflexão de Gibran, na sua obra O Profeta, quando se
refere a amizade:
Quando vosso amigo expressa seu pensamento, não temais o não de vossa
própria opinião, nem prendais o sim. (.) E que não haja outra
finalidade na amizade a não ser o amadurecimento do espírito. (.)
Pois, que achais seja vosso amigo para que o procureis somente a fim
de matar o tempo? Procurai-o sempre com horas para viver: o papel do
amigo é de encher vossa necessidade, não vosso vazio.
E continuo com Gibran, aproveitando a oportunidade para exaltar o
querido e sensível Kleber:
O mestre que caminha à sombra do templo, rodeado de discípulos, não dá
de sua sabedoria, mas sim de sua fé e de sua ternura.
Abraço fraterno, um convidado para o baile de máscaras.

sábado, 11 de dezembro de 2010

Alguém, de algum lugar do mundo, num dia qualquer do presente.
Escrevo-te esta carta sem saber muito bem o que dizer. Mas, de algum modo, escrevo-te para contar algumas coisas da vida que a mim tem se apresentado. Estou vestido com uma potente armadura – o anonimato – que, de fato, alarga a possibilidade de invenção de novos modos de vida. É isso: uma primeira coisa que tenho a te dizer, minha amiga, é que na escrita podemos nos tornar outrem, podemos nos transfigurar, temos condições de abandonar o velho corpo cansado das repetições sem diferenças. Entretanto, querida amiga, não basta afirmar que através da escrita podemos vir-a-ser outra coisa. Não é tão simples assim, ou, pelo menos, não vivo isso de maneira tão simples assim. Quais as condições que se arregimentam para tornar real a afirmação de que escrever pode nos levar a um outro modo de existência? Para tentar pensar melhor essa questão, recorrerei a algumas outras cartas, que aquele nosso amigo incomum, o Michel, escreveu-nos. Lembro-me que essas cartas escritas e ditas sempre nos fazem balançar, estremecer, pensar, sentir e rir. Como um outro amigo – que gostava de usar uns bigodes estranhos e que só acreditava nos deuses mundanos que dançavam – também só acredito num pensamento que possa rir e dançar, num pensamento que perambula com humor pelas tragédias do mundo e que diz sim ao acaso inominável.
Nesse momento mesmo em que te escrevo essas confusas linhas me torno outrem. O próprio ato de escrever algo para alguém produz interferências na minha constituição subjetiva que podem me arrastar para um devir por meio da escrita. Como o nosso
amigo Michel diz, escrevemos justamente para sermos diferentes daquilo que somos, para nos tornarmos outra coisa, para inventar uma outra vida, para potencializar nosso desejo de diferenciação em relação àquilo que se solidificou. E é aqui que a coisa fica mais interessante ainda. Tornamo-nos diferentes do que éramos por meio da escrita, e esse processo de diferenciação não é da ordem de um indivíduo que se fecha sobre si mesmo para se tornar outro. Esse devir da escrita, e através escrita, coloca em cena um agenciamento coletivo que constituirá traços diferentes de subjetivação. Esse tornar-se outrem que pode emergir no ato de escrever se intensifica ainda mais quando a escrita é direcionada para alguém. Algumas coisas que me constituíam, cara amiga, modificam-se quando me coloco diante dessa enigmática superfície branca do papel para te escrever uma carta. Ou seja, torno-me outro agora, quando te escrevo para falar de alguma coisa; meus processos de subjetivação entram em ebulição, e quando falo de mim, de certa forma, falo de alguém que está se inventando na própria escrita. De modo algum esse movimento de modificação de si pela escrita é isolado do conjunto de relações no qual estou envolvido. Já que escrevo para você, sua presença se faz real nos instantes em que as mãos violentam o papel para inscrever algo, no momento em que as palavras me chegam para compor as frases. Sua presença interfere nos processos subjetivos que me constitui, e você também participa do movimento que me faz ganhar outros contornos e novos delineamentos.
Quando digo que podemos diferir de nós mesmo na escrita estou falando de uma coisa que tem me intrigado muito ultimamente. De fato, preciso me tornar outrem! Parece que as velhas máscaras que usei durante um tempo já não me servem mais, e é
por isso também que te escrevo para falar dessa possibilidade de inventar novos modos de vida através da escrita. Trata-se de uma escrita de si, uma escrita que pode desmanchar um arranjo subjetivo que por ventura não mais nos sirva, para compor um novo si. Porém, essa invenção de um novo si nada tem a ver com a busca de um ideal de ego, nem com a procura de um si perfeito. Quando nos desmanchamos e nos reinventamos na escrita estamos apostando numa virtualidade, num horizonte incerto que não nos permite prever o futuro. Ou seja, quando nos inventamos por meio do ato escriturário estamos mergulhando no risco. Esse ato de criar um outro modo de existência não é algo indolor ou previsível. Se de fato apostarmos nessa capacidade de nos tornarmos outra coisa pela escrita, sentiremos a proximidade do risco, estaremos envoltos num desconhecido oceano de perigos e de possibilidades. Talvez, a vida possa se tornar mais bonita se a vivermos com a coragem de não negativar suas tragédias e suas agruras cotidianas.
Esse anônimo que te escreve usa uma máscara, muito confortável por sinal. Mas isso é outra coisa que também importa ser dito: sempre usamos máscaras, de tal modo que por trás de uma máscara só encontraremos mais e mais máscaras, um infinidade de máscaras que se coadunam para compor isso que chamamos de subjetividade. O anonimato é apenas uma máscara, mas que é extremamente potente para pensarmos nossas outras máscaras cotidianas. Utilizamos uma máscara até o momento em que ela nos serve. Mas, será que sempre temos a coragem de abandonar máscaras inúteis à nossa vida? Será que realmente temos a liberdade de inventar outras máscaras, outros modos de vida? Ou será que nos apegamos demasiadamente a
algumas máscaras a ponto de acharmos que elas são a nossa essência, a nossa identidade?
Como falei em linhas anteriores, vivo um momento que me força a abandonar antigas máscaras, para a confecção de outras. Essa necessidade é sofrida também, dolorosa, já que, de alguma maneira, perdemos o rosto quando arrancamos as máscaras antigas. Esse desejo que me assola no momento, desejo de se tornar outra coisa, inevitavelmente passa por um sofrimento. Mas se estivermos realmente dispostos a diferir do que somos, precisamos encarar esse sofrimento. Não se trata de vivermos como mártires, fazendo do sofrimento nossa própria vida; o que digo é que se efetivamente quisermos nos inventar precisamos viver as alegrias e as tristezas, os gozos e as dores desse movimento imprevisível e potente que se arroja na transformação de si pela escrita. Enquanto ainda te escrevo, arrisco-me, tento me tornar outra coisa, tento criar um fugidio modo de vida mais potente. Arrisquemo-nos um pouco mais na vida para a fazermos variar, desfuncionar e se recriar!
Com muito afeto!
Miguel Fucoul da Silva

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

À você,
uma carta... isso fora proposto nas últimas aulas daquele grupo de estudo.
Você deve ter experimentado a expectativa de aguardar chegar uma carta em sua casa e ao chegar logo quis abrir e a curiosidade lhe tomou, não?? E agora seguras estas folhas e seus olhos deslizam de um lado para o outro, captando informações... e ainda na curiosidade de saber do que se trata, o que esses escritos falam e até mesmo quem os fez...
Deves arriscar palpites sobre seu autor, não?
Sim, sobre o grupo, os encontros acontecem uma vez por semana e em conjunto com os estudos feitos em casa, se constrói diálogos, indagações, proposições, achismos, discussões... e talvez mais importante: era proposto um borbulhar de pensamentos e ainda que não expostos, surgiam idéias e quando colocados à discussão, vozes eram atentamente ouvidas e logo novas idéias e aí o desencadear das discussões.
Michel Foucault, considerável e sábio, é a linha de estudos e pensamentos. As vezes assuntos ou expressões eram tão exploradas que parecia transcender o entendimento; tentava-se expor e chegar a um entendimento e cada vez mais estreitando o que se tratava; cada um com suas limitações e expansões, mas a nenhum outro fora dada sensibilidade tal como a de Eder, que ao ler “A escrita de si” (se não me falha a memória), enorme sentimento lhe tomou e lágrimas rolaram do seu rosto...
Talvez tenha me debruçado um tanto considerável sobre o grupo, se que não o suficiente, mas o sucinto para simples conhecimento sobre o mesmo, esta era a intenção.
Enfim, tantas coisas poderiam ser escritas a você leitor, mas encerro tais escritos com o que fora dito/escrito pois já não penso no que pode aqui ser registrado, restando somente a esperança do acontecimento de coisas boas e te desejando muitos momentos, já que penso, a felicidade não é plena e constante.
Grande abraço
Aracaju, novembro de 2010

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Frédéric Gros e o direito dos governados

Homem alto, moreno, feição jovial e aparentando uns 45 anos. Usava um terno azul, não lembro se com gravata. Quando convidado a subir ao palco para nos conferenciar seus ditos, é anunciado como professor do Colégio da França e editor dos arquivos de Michel Foucault. Isso significa que vai falar em francês e nós, ali, em sua maioria, vamos ficar com os ouvidos atados a fones, onde uma voz de mulher fazia a tradução simultânea.

Antes da subida ao palco por Gros, estavam lá, abrindo o Seminário autoridades acadêmico-eclesiásticas. Padre Marcelo, o jesuíta reitor da Unisinos, faz a principal fala, enquanto eu testava os fones de ouvido. Daí, tive a agradável experiência de ter no outro lado uma voz feminina falando em francês. Um instante inusitado que durou minutos. Bom, mas o padre-reitor aparece aqui para que eu possa registrar o entendimento dele naquele Seminário. Uma aposta, por certo. O padre-reitor-filósofo refere-se ao encontro como um Aerópago. Por perto de mim, ninguém sabia o que era aquilo, mas creio que intuíam alguma convicção. A internet, no outro dia, mostrou ser um aerópago uma especie de conselho da aristocracia ateniense, que na época democrática cumpria funções de tribunal. Assim, éramos poucos no evento, mas éramos uma nata de algo, pensei.

Grós começa a falar e aponta para o curso de 1979, O nascimento da biopolítica, onde se foca uma discussão sobre o direito dos governados. Diz que nesse curso Foucault testa hipóteses teóricas não retomadas e que faz análises sobre o liberalismos, que assumem uma condição singular na obra do Foucault. Seria a primeira vez em que Foucault se aproximaria da atualidade política e de fatos contemporâneos, para mostrar a relação entre o liberalismo e a biopolítica. “É um curso enigmático”, pontua Gros, que diz servir para entender como o liberalismo constitui uma biopolítica.

Após essa breve introdução, Gros resolve apresentar os sentidos da biopolítica na obra do Foucault. Aqui é importante ressaltar, que na fala, Gros dar alguns saltos entre o que havia prometido e o que viabilizou, mas há também lapsos meus tentando acompanhar duas vozes ao mesmo tempo (Gros e tradutora) e ainda o gestual do francês, que projetava os braços, como se buscasse mais ênfase para algumas sentenças.

Diz que o primeiro sentido para a biopolítica aparece entre os cursos de 1973 e 1976 e encaminham duas formas complementares de biopoder: disciplinamento dos corpos e regulação das populações. Formas que combatem o poder soberano, que se ordena como uma “autoridade indiscutível” e que projetada como a lei, estabelece um direito de morte sobre a vida. Já o poder disciplinar, ocupado com a extração das utilidades dos corpos e ativando controles sobre o comportamento, se viabilizaria enquanto norma.

Daí Gros diz do interesse de Foucault em buscar decifrar o “enigma da prisão”. Relaciona nesse momento a sociedade primitiva e a sociedade disciplinar. Aponta que num primeiro momento o crime seria tomado como uma ameaça pública e a correção se resguardaria em uma sensação de desvio moral. Há uma marcação sobre o indivíduo, mas aqui me perdi um pouco na escuta. Retomo com uma frase dele, afirmando que a penitenciária assume uma funcionalidade política, num processo que ele denomina redistribuição de ilegalismos. Nessa lógica, pensar o ilegalismo do povo seria impossível; tipo: vamos prender o mundo? A degradação do ambiente social anuncia sua realidade e Gros aponta para um movimento da burguesia interessada em desestimular o ilegalismo popular através do que toma por geração de delinquência. A prisão deixaria de lado a sua funcionalidade política, passando a operar como uma determinação carcerária. Aqui se faz, ali se paga. De algum modo isso é muito liberal (coisa minha).

Em seguida ele fala da determinação disciplinar e da funcionalidade econômica, que através da disciplina transforma o tempo de vida em força de trabalho. Foucault diria que o capitalismo repousa em uma cronopolítica. Ele saiu com o termo, sem qualquer outro desdobramento sobre. Coisas de aerópago! Mas faz referência ao regime de aceleração da vida através do liberalismo.

A regulação das populações seria para Gros a segunda forma de biopoder. O Estado se envolve com questões sanitárias e a produção de medidas FLEXÍVEIS, que se aporta nos modos de fazer viver ou deixar que morra. Nesse momento Grós dá um salto e retorna ao curso de 1979, onde Foucault apresenta o capitalismo em 4 formas e marcado por uma dimensão massiva, sistemática, que dá funcionalidade às riquezas e garante o confisco das mesmas para proveito de uma minoria.

Seriam essas as 4 dimensões do capitalismo para Michel Foucault.

Capitalismo mercantil: criação do mercado e dos conceitos de troca e divisão do trabalho.

Capitalismo industrial: aparecimento das fábricas. Modelo energético. A força de trabalho tem função destacada. O direito a propriedade expressa as garantias individuais. (Ele falou de outras coisas, mas fiquei nessas).

Capitalismo gerencial: foco na organização interna. Produção de saberes para essas organizações humanas.

Capitalismo financeiro: especulação.



Importante apontar que Grós acentua que essas formas de capitalismo estão sempre presentes, e correspondem as figuras do comerciante, do patrão, dos gestor e do “trade”.

Retoma então o curso de 1973, para falar das condições éticas do capitalismo, interrogar a resignação do trabalho operário, tendo a disciplina como fator de determinação da função e orientação da força de trabalho.

Daí retorna as formas que o capitalismo assume. Na 1a; exemplifica com a análise da mão-invisível. Pontua que se a mão é invisível, é porque o sujeito é cego e voltado para o lucro pessoal. Passei-me na 2a em meus alfarrábios, mas a 3a já aponta para o neoliberalismo dos EUA, que radicaliza o modo de operação na Alemanha. A empresa é tomada como elemento de configuração subjetiva e via trabalhos produzidos na Escola de Chicago, a vida é marcada pela valorização do capital inicial. O sujeito passa a ser gestor de si, o que inviabiliza projetos coletivos.

Chegamos na 4a forma. Trata da globalização financeira. Aqui também perdi um pouco em informação, mas fica a idéia de que se vive uma passagem e intensificação dos fluxos, onde o indivíduo conectado assume o lugar do normal. As formas são modos de configuração da vida pela biopolítica e o francês Gros aponta para 4 modos de pensar essas configurações. De 4 em 4, a gente chega lá, ou por dividir as coisas dessa maneira, seria Gros um sujeito 4 x 4?

Não me cabe. Vamos às caracterizações da vida.

Para os estoicos a vida estaria marcada por um processo de orientação. Isso implicaria, nessa conversão feita por Gros, numa polarização entre os desejos vitais voltados para o consumo. (?). Em Nietzsche a vida seria uma invenção de formas e Gros entende esse modo como dinâmico. Em Aristóteles a vida seria uma atualização de potencialidades. Em Deleuze a vida é imanente e permeável. Fluxos e aberturas para outros fluxos. Aqui ele apontou que os fluxos podem se dar ou se dão em detrimento dos outros. (?).

Enfim Gros chega para discutir a relação entre biopolítica e segurança, e sobre o curso de 1979 diz tratar-se de processos de captação das forças vitais. Em Canguilhen, diz que a relação entre viventes e regulação se circunstancia entre forças externas e internas. Já em Foucault, a ação se faz nobre o meio e assim produz efeitos de comportamentos. Chega então, nessa discussão sobre controle, que toma a ação sobre o meio, a uma problematização dos dispositivos de segurança e compatibilidade, e o conceito de liberdade.

Ora, se há eficácia dos dispositivos de segurança sobre a ação dos indivíduos, como dispor sobre processos de autonomia? Para Foucault, o liberalismo tem por função o condicionamento das liberdades, acentua, mas a segurança na atualidade, modificou seu paradigma. Trata-se agora de controle de fluxos. Exemplifica com a vida no aeroporto e desse modo busca pensar um liberalismo que estabeleça um direito para os governados, o que ele vai chamar de liberalismo crítico, daqui a algumas linhas.

Nesse momento chega ao lugar de problematização da sua fala. Antes apenas dispunha sobre seu modo de ler Foucault. Que história é essa de Foucault com o direito dos governados? Gros diz que Foucault recusa a idéia de direitos humanos fundamentais. O poder é uma relação que se faz em processos de captura e resistência; e pensar a biopolítica como resistência é fazer valer o direito dos governados. Fazer valer a vontade de existir de modo diferente.

Coloca em questão então o fundamento do liberalismo e a questão do excesso de governo. O liberalismo resiste ao excesso de governo, pelo menos enquanto doutrina. Daí a modificação da biopolítica enquanto uma experiência de organização da população através de dispositivos sanitários em relação ao disposto nos EUA, pela Escola de Chicago. Troca-se o estado pela empresa.

Daí Gros formula três modalidades de liberalismo e aponta para um problema, minimamente controverso. A elas:

1.Liberalismo político e a concepção de estado de direito.

2.Liberalismo econômico e essa transição da biopolítica germânica para o modelo dos EUA.

3.Liberalismo crítico e a concepção foucaultiana de uma resistência, digamos assim, por dentro da lógica liberal da atualidade.

E essa terceira modalidade faz-se questão, que acaba não sendo muito discutida após a fala de Grós. Talvez seja coisa de aerópago, talvez seja coisa de não conseguir assimilar ali, a construção de uma discussão que pensasse outros encaminhamentos. Não havia lido esse curso na coleção dos vermelhinhos, mas fiquei muito incomodado.

Esse incômodo, reparto agora, com quem conseguiu chegar até aqui. É possível um liberalismo crítico?

É possível pensar o liberalismo apenas como um processo de racionalização dos encaminhamentos do viver, tendo por ordem modos de decisão que se pautam menos no político e mais no econômico? É possível levar essa lógica a modos de exercício de liberdades? Há ainda a questão da resistência no fluxo, mas essa não teria uma marcação predominantemente exclusiva, melhor, individual?

Questões? Bom, pra mim foram e esse texto pode não passar de efeito de exercício de um “liberalismo crítico”, mas isso ainda seria mais produtivo para a vida que passar em branco.

Abraço!



PS: Há no link: http://www.ihuonline.unisinos.br/impressa/ a conferência de Frédéric Gros. Esse texto, entretanto, pautou-se apenas na escuta que tive e em reflexões feitas nesse momento de escrita.

terça-feira, 6 de julho de 2010

A ressalva faz outra verdade

Muita chuva. Muito guarda-chuva. Muita lama. Muita bota. Guarde a bota e a guarda. Chuva e lama são um outro acontecimento quando molham e melam.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

ESTAÇÃO RODOVIÁRIA GOVERNADOR LUIZ GARCIA

Placa de Inauguração - Estação Rodoviária Governador Luiz Garcia.
Foto: José de Oliveira B. Filho



Estação Rodoviária Governador Luiz Garcia.
Inaugurada em 31.01.1962.





Estação Rodoviária Governador Luiz Garcia - Aspecto externo.
Cartão Postal - Paraná-Cart. - Fotografia: José Kalkbrenner Fº.




Estação Rodoviária Governador Luiz Garcia - Aspecto externo.
Cartão Postal - Foto: Autor desconhecido.




Estação Rodoviária Governador Luiz Garcia - Plataforma Embarque/Desembarque.
Jornal Gazeta de Sergipe nr. 5.408 - 16/17/04/1976.




Estação Rodoviária Governador Luiz Garcia - Aspecto externo.
Jornal Gazeta de Sergipe nr. 5.416 - 28/04/1976.




Estação Rodoviária Governador Luiz Garcia - Obra em conclusão.
Revista da Associação Sergipana de Imprensa - 1961 nº 04.




Estação Rodoviária Governador Luiz Garcia - Em construção.
Revista da Associação Sergipana de Imprensa - 1961 nº 04.




Estação Rodoviária Governador Luiz Garcia - Em construção.
Revista da Associação Sergipana de Imprensa -1960 nº 03.




Planta da Estação Rodoviária.
Revista da Associação Sergipana de Imprensa - 1960 nº 3.





Governador Luiz Garcia.
BARRETO, Luiz Antônio. Personalidades Sergipanas. Aracaju: Typografia Editorial, 2007.





Leandro Maciel.
BARRETO, Luiz Antônio. Personalidades Sergipanas. Aracaju: Typografia Editorial, 2007.






Desmanche do Morro do Bonfim - 1956.
MELINS, Murillo. Aracaju romântica que vi e vivi anos 40 e 50 3ed. Aracaju:Unit, 2007.






Desmanche do Morro do Bonfim - 1956.
MELINS, Murillo. Aracaju romântica que vi e vivi anos 40 e 50 3ed. Aracaju: Unit, 2007.






A Estação Rodoviária Governador Luiz Garcia, popularmente conhecida como Rodoviária Velha, teve sua construção iniciada no governo de Leandro Maciel (1955-1959) e inaugurada no dia 31/03/1962, no Governo de Luiz Garcia(1959-1962), em um local onde antes existia um grande morro de areia, o Morro do Bonfim. A respeito disso, Luiz Antônio Barreto comenta:

-"E assim, obra a obra, Aracaju tomou corpo nas várias direções do seu território. Uma delas, porém, no Centro comercial, no coração mesmo da cidade, mudou completamente o traçado urbano de Aracaju: o desmonte do Morro do Bonfim, imensa duna que se espalhava por várias ruas, impedindo o agenciamento urbanístico. A grande obra foi feita no Governo de Leandro Maciel (1955-1959) e foi acompanhada, diariamente, por parte da população, e particularmente pelas crianças e jovens que faziam da duna uma diversão permanente.
As areias do Morro do Bonfim estão distribuídas por muitos lugares da cidade, aterrando os charcos, nivelando os terrenos, erguendo novas áreas residenciais, como foi o caso do Bairro Brasília, entre o Santo Antônio e o Industrial, nome que homenageou a nova capital do Brasil, construída, à época, no planalto central. Os córregos e mangues que impediam, muitas vezes, a passagem das pessoas, entre os bairros Industrial e Santo Antônio, cederam lugar às ruas e avenidas que surgiram com os aterros. Mais do que retirar de sua paisagem um morro inconveniente, Aracaju ganhou um novo bairro, justo como presente do Centenário.
O desmonte do Morro do Bonfim criou várias alternativas para a urbanização do centro comercial e das ruas centrais: Vitória (avenida Carlos Burlamaqui), Bonfim (avenida Sete de Setembro, antes Nobre de Lacerda, Getúlio Vargas) Divina Pastora, Capela, Geru, Lagarto, Santo Amaro, Itabaianinha. Nivelado, o terreno foi imediatamente ocupado, com diversas construções que foram logo incorporadas ao traçado da cidade. No Governo seguinte, de Luiz Garcia (1959-1962), foi construída a Estação Rodoviária, moderno prédio com linhas que lembravam Brasília, disciplinando o trânsito dos ônibus entre o interior do Estado e a capital. A Estação Rodoviária, que recebeu o nome de Governador Luiz Garcia, serve hoje de terminal suburbano, sendo substituído em suas funções originais pelo Terminal Rodoviário Governador José Rollemberg Leite, outra obra estadual feita no segundo Governo de José Rollemberg Leite (1975-1979).
O terreno onde existiu o Morro do Bonfim, mesmo com as construções que surgiram, serviu para a montagem de circos, dentre eles o de Zé Bezerra, circo mambembe, de forte apelo popular. No local também costumavam fazer parada noturna os caminhões que traziam carga do interior. Aos poucos novos prédios, como o do INAMPS, o do IAPC, muitas casas nas várias ruas limítrofes com a grande duna, e ordenamento do tráfego por toda aquela área, modificando a vida do centro da cidade. O desmonte do Morro do Bonfim representou, sem dúvida, a maior intervenção da engenharia no centro urbano de Aracaju".


BARRETO, Luiz Antônio. Personalidades Sergipanas. Aracaju: Typografia Editorial, 2007.


Texto retirado do blog "aracaju antiga" em http://aracajuantigga.blogspot.com/2009/10/terminal-rodoviario-luiz-garcia.html

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Crônicas

17 de junho de 2010
Fim de jogo: ARGENTINA 4 X 1 CORÉIA DO SUL

(Em algum lugar do Brasil...)
— Hein, você é argentino?
— Eu torço pra Argentina, sim!
— Você não é brasileiro, não!?
— Ah!... De novo isso... Toda copa é assim... Caducou essa tese antropológica de que torcer pra seleção canarinho é sinônimo de patriotismo. Prefiro o carnaval de Bakhtin ao de da Matta. Também não sou cordial! — ao menos, não nos níveis que me são exigidos em função de minha nacionalidade brasileira. Isso para desespero de Sérgio Buarque de Holanda: por que será que os cientistas sociais brasileiros de re-nome têm nome aristocrático? Tampouco sou pacífico. O panelaço de nossos hermanos na Plaza de Mayo deveria ter nos ensinado algo, mas, pelo visto, o que confronta nosso ideário cordialesco é automaticamente rechaçado (recalcado?) em prol da manutenção de nossa causa identitária. Somos cordiais porque acabamos dando um jeitinho em tudo (o próprio difusor dessa lei, Gérson, era atleta e fumante!), sem necessidade de partir pro confronto direto. Agimos à surdina e nos bastidores. Daí os sem-terra tornarem-se “baderneiros” por essas bandas, ao menos é essa a imagem que a mass media brasileira, como legítima porta-voz do senso-comum e difusora da mediocridade, procura passar desse movimento. Somos coniventes com as silenciosas transgressões hodiernas (furar fila, burlar as leis de trânsito e torturar presos já são clássicos tupiniquins!) e intolerantes com os protestos barulhentos e viris, por mais justos que sejam. Coisa para baderneiros desocupados! — pensamos. Acho essa tese da cordialidade brasileira um embuste! (E não me venha com essa de dizer que o pai do Chico Buarque usou a expressão “cordial” como sinônimo de “emocional” ou “instintivo”! As palavras têm uma ação performativa para além de nossa intencionalidade e, vindo de tão eminente figura, assume nesse caso o estatuto de um autêntico ato falho.) Geralmente, somos cordiais com os estrangeiros, sobretudo os anglo-saxões e europeus que portam moeda mais valorizada do que a nossa, mesmo que estes visitem o Brasil para fins de turismo sexual infanto-juvenil; alguém já reparou como somos xenófobos para com os asiáticos de olhinhos puxados, os africanos subsaarianos e os latino-americanos hispânicos? Além disso, alimentamos torpes rivalidades e preconceitos internos para com nossos vizinhos em pleno território nacional, talvez uma má herança do sistema de capitanias hereditárias: gaúchos x catarinenses, paulistas x cariocas, mineiros x capixabas, baianos x sergipanos etc.; e desde a inauguração da atual capital do Brasil, nova rivalidade forjada artificialmente: goianos x candangos. Isso quando não discriminamos toda uma região geográfica: basta reparar a freqüência com a qual as barbeiragens no trânsito são apelidadas de “baianadas”, assim como os porteiros dos prédios chiques de Ipanema são “paraíbas”. E olha que falamos a mesma língua em todo o território nacional, os movimentos separatistas representam mera mancha histórica em nosso passado e não temos disputas étnicas significativas, diferentemente da Bélgica (onde recentemente uma miss foi vaiada por só falar a língua francesa, minoritária, e não o dialeto holandês), da Espanha (onde os bascos, por exemplo, reivindicam sua autonomia enquanto Estado independente por intermédio do grupo separatista ETA) e de Ruanda (onde massacres étnicos assumem as proporções de um genocídio). Tais rivalidades brasileiras não são sem conseqüência: quando migramos de um Estado para outro no Brasil somos impelidos a converter nossa naturalidade, tentando ser acolhidos em nossa nova morada. “Nasci em Minas, mas sou capixaba de coração” — repetia essa pérola um ex-vizinho meu à exaustão. (E haja “cariocas” ilustres nascidos em outros Estados!) Só conseguia me lembrar da máxima de Sade: “Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos”. Curioso que o Gugu Liberato faz suposta filantropia num dos quadros de maior audiência de seu programa de TV mandando nordestinos que residem em São Paulo “de volta pra casa”; porém, quando um paulistano, por exemplo, “volta pra casa” após ter residido no nordeste, ele é um ingrato, quando não um traidor, que não amou suficientemente a nordestinidade. Considera-se este turista e aqueles vagabundos - diria Bauman. Ledo equívoco! No fim, sempre haverá um caminho de volta pra casa após o término dos sonhos dourados. Quanto à tese da pacificidade, ainda é possível sustentá-la frente os atuais índices de criminalidade que assolam a nação? Recentemente, vi um noticiário brasileiro que apresentava os alarmantes índices de criminalidade da cidade de Johanesburgo, na África do Sul, alertando para os perigos do lugar aos participantes da Copa do Mundo da FIFA. Chocou-me constatar que tais índices são semelhantes (até mesmo ligeiramente menores!) aos das grandes metrópoles brasileiras, como Rio e São Paulo. Dizem que cada país tem a violência que merece e, no caso do Brasil, ela é generalizada e sua banalização aproxima-se da barbárie. Não adianta culpar as drogas, como a mídia faz atualmente. Baudelaire, sábio escritor e perspicaz usuário de entorpecentes, já dizia no século XIX, antecipando argumentos do movimento psicodélico, que elas só realçam aquilo que já somos. Se as drogas forem mesmo um espelho da alma, os brasileiros estão muito mal “almados”. Quanto ao tráfico, já são outros quinhentos e não é evitando o debate em torno da legalização das drogas ilícitas que nos livraremos dele. Também não basta culpar a colonização portuguesa pelas nossas mazelas: o Congo é Belga, a Namíbia é alemã, a Líbia é italiana, a Índia é inglesa, o Suriname é holandês, o Haiti é francês, só pra citar alguns, e nenhum desses países é menos problemático que o Brasil. Por muito tempo tive que conviver, apesar de discordar desde minha infância, com o mito de que se tivéssemos tido senhores mais generosos (Casagrandes mais hospitaleiras), estaríamos em melhores condições hoje em dia. Típica lógica da subserviência que perpassava as senzalas brasileiras, com honrosas exceções, cujo ícone da resistência é Zumbi dos Palmares. Aliás, você sabia que até hoje nem 10% dos municípios brasileiros decretam feriado no Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro? Enquanto isso pululam feriados juninos em dias santos pelo Brasil afora... Se Zumbi fosse católico ele provavelmente já teria sido canonizado por martírio. Católico é assim: acredita na bondade das pessoas, em culpa, arrependimento e perdão, desde que você venere os santos oficiais e tenha como princípio ético a busca da santidade em vida (quando Santo Agostinho se converteu ele já contava mais de 30 anos de vida profana e boêmia!); desconfio que o juiz que libertou o maníaco de Luziânia seja um bom católico (mesmo que não-praticante), isto é, ingênuo o bastante pra acreditar na regeneração de um pederasta em pleno sistema prisional brasileiro. Acreditar em remissão espontânea da crueldade no “inferno” é demais pra mim! Dizer que só "aplicou a lei" também é ingênuo e kafkiano demais pro meu gosto! Já os evangélicos são mais céticos quanto à pureza da condição humana, senão não haveria necessidade de imprimir tamanha vigilância (cujo modelo é o panóptico, de Bentham) sobre a vida dos crentes. Aliás, essa vigília já deve vir inclusa na taxa do dízimo, o qual, no caso dos evangélicos, é compulsório. Até porque sendo a certeza da salvação um mistério, você só tem como confirmar que é um eleito para ser salvo prosperando ($$$) em vida; e quanto mais você prospera, maior é o seu dízimo e maior é a vigilância sobre você. Essa indissociação entre riqueza material e salvação espiritual deu aos fiéis um álibi pra incorporar a lógica do capitalismo sem culpa. Aos católicos resta enriquecer com culpa e, no máximo, com arrependimento e perdão. Quanto a mim, sou ateu, ou melhor, agnóstico, como se diz atualmente, pois soa menos agressivo e é expressão politicamente correta, digna de figurar na controversa cartilha do Lula. Conheço muitos ateus que levam uma vida mais digna do que muitos religiosos. Só acreditaria num Deus que soubesse dançar, apesar de não ver motivos para o batuque dos tambores assumir privilégios musicais. Já não bastam as vuvuzelas?
— Ainda acho que você não é brasileiro...
— VOCÊ SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO!?
— Ô dotô, desculpe! Achei que você fosse argentino por conta da sua camisa! Senta aí e toma uma com a gente, chefe!

sábado, 19 de junho de 2010

Novos links aí na coluna à direita... coloquei alguns sites que acho que podem servir nos nossos descaminhos. a quem interessar possa.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

As Coletividades Pensantes e o Fim da Metafísica

Uma substância unitária, racional e atenta para focar todas as dobras do mundo, que se apresentam como claras e distintas possibilidades de escolha a nossa livre faculdade do arbítrio. Essa é a alma caduca e nada humana que Descartes tanto trabalhou para lapidar, e que nós - pelas bandas de cá - já cansamos de malhar. Freud - outro que adoro mal falar - propõe um modelo do psiquísmo que até tem suas interessâncias. Uma delas é a diversidade de instâncias que compõem seu aparelho anímico, interagindo e negociando de maneira mais ou menos conflituosa. O que a psicanálise introduziu na vida emocional, a psicologia do contemporâneo o fez no plano do cognitivo. Coloquemos duas teses desta psicologia que fazem oposição à alma cartesiana: um, a multiplicidade da mente; dois, a limitação da consciência.
A unidade da alma é questão diretamente ligada à inconsciência das operações mentais. Se todas as funções psíquicas estivessem sob o jugo da consciência, suporíamos uma linguagem comum às diferentes partes da mente. Entretanto, se a vida psíquica situa-se quase inteiramente fora da zona da consciência, a tese da multiplicidade da mente passa a fazer mais sentido, visto que tais diferentes partes não partilham da mesma lógica de funcionamento.
Marvin Minsky, pesquisador de inteligência artificial da MIT, sugere a mente como o agrupamento de milhares de agentes em agências, que competem, cooperam e conversam entre si por recursos limitados, divergência de objetivos e situações afins. O psiquismo é pintado como uma sociedade cosmopolita, não um sistema coerente e harmônico reduzido a uma substância una. Muitos artistas - de Platão a Nietzsche, de Freud a Jung, de William James a James Hillmann, de Deleuze a Guattari - retratam, cada um com suas matizes, a mesma sociedade profusa que ferve por detrás do véu de cada pensamento frio. Piaget pode ter entendido a inteligência como um conjunto de habilidades lógico-matemáticas aplicáveis a todos os domínios do viver. Howard Gardner, por sua vez, espartilha o problema e sugere múltiplas inteligências para além da geometria: linguística, musical, espacial, corporal, inter e intrapessoal. Boa notícia descobrir que não somos ignorantes como um todo! Multiplicamos as formalidades, verdade, mas favorecemos pensar as pessoas como grupos, e o psíquico como uma sociedade da mente. Tratar a alma como substância individual seria como facultar julgamentos sobre um grupo sem uma boa distinção das partes que o compõem.
Um coração, um olho ou uma mão cumprem seu papel numa estrutura sistêmica. Assim sendo, Noam Chomsky proposiciona a existência de órgãos mentais. Argumenta: e por que o cérebro seria a única entidade indiferenciada do mundo biológico!? Este pontuamento anula uma teoria da aprendizagem que se proponha comum a todos os domínios do psíquico, já que cada órgão da mente possui seu próprio desenvolvimento histórico independente dos demais. Entrando na onda de Chomsky, Jerry Fodor fala de módulos cognitivos que funcionam fora da zona de controle da consciência. A faculdade linguística e os módulos perceptivos podem ser tomados como exemplo. Enquanto escrevo este texto na janela de edição de postagens do blogspot, passo meus olhos pelos parágrafos grifados num livro e escuto a sinfonia Eroica. Sou incapaz de passar os olhos pelo livro e ver uma simples sequência de impressões negras e rabiscadas. Também constato a minha impossibilidade de escutar uma simples sequência ruidosa a ser executada pelo Windows Media Player. Sou obrigado a, olhando para o livro, ler e perceber algumas sentenças chave do capítulo, como sociedade cosmopolita, modularidade mental ou ecologia cognitiva, assim como também sou obrigado a, apertando o ícone Play/Executar do meu reprodutor de mídia, escutar a terceira de Beethoven regida pelo perfeccionismo de Toscanini. Tais módulos escapam à consciência! São seus resultados que chegam até a zona de atenção mental, mas os processos operados não são nem um pouco transparentes no tocante a qualquer tentativa de controle dos mesmos.
E o que seria a consciência, para bem precisarmos nossa discussão? Sendo curto, mas grosso: é o agente responsável pela enunciação da memória de curto prazo. Nossa cognição processa inúmeras operações ao mesmo tempo, mas é difícil estar consciente a vários eventos ao mesmo tempo. Tais operações, por estarem fora do campo da atenção, são inconscientes. E, por escaparem da vontade, são automáticas; o que nada tem de ver com o determinismo típico de nossas inteligências eletrônicas. Determinismo e automatismo não são sinônimos. Os processos são classificados como autônomos, justamente, por serem independentes uns dos outros. Grande parte da mente é - neste e somente neste sentido - maquinal, visto que composta por inúmeradas partes e peças e pedaços. É este automatismo inconsciente que cria condições para a sobrevivência de nossas unidades biológicas.
Mecanismo, inconsciência, multiplicidade, exterioridade. Todos formam a base constitutiva da vida mental. Partindo daqui, não seria de todo estranho inferir a participação de mecanismos e processos não biológicos na formação do pensamento - dispositivos técnicos e instituições sociais, em exemplo - o que torna impossível fazer do pensamento a resultante duma substância única e transcendente. Uma ecologia cognitiva deve ocupar o lugar das antigas metafísicas! Subjetividade e objetividade não podem ser categorias puras e bem definidas pois, de um lado, temos inúmeros mecanismos e objetos operando na produção das subjetividades e, doutro, as objetividades constituídas pelo imaginário e pelo suor dos homens. O id fala, mas não a lingua de Freud ou de Lacan. Falamos, mas não cuspimos, tão somente, recalques, traumas e complexos porém multidões inteiras - de pessoas e de coisas - que falam em nós. Dando um passo com nossa outra perna, podemos fazer uma segunda inferência: não há mais estranheza nenhuma em pensar que um grupo ou uma instituição pensem, visto ser o pensamento a realização dum coletivo!
Pensar, numa frase, é um devir coletivo de homens e coisas. Assim como os aparatos cognitivos individuais, os dispositivos sociais também são encapsulados. Imaginemos uma empresa e alguns de seus setores. O pessoal do secretariado, o pessoal da contabilidade, o pessoal da comunicação. Os dois primeiros podem ser substituídos por, digamos, softwares computacionais, enquanto o último pode ser dispensado pelo uso de correios eletrônicos. Isto porque tais segmentos burocráticos intencionam - quase fenomenologicamente! - funcionar como máquinas. Tanto o cérebro quanto o socius são compostos por muitos e muitos módulos maquinais encapsulados.
A consciência gosta de se apresentar como o mais importante aspecto da inteligência, mas nem de longe representa a sua essência! Ela pode ser considerada, isto sim, uma interface entre o organismo e o que lhe é ambiente, interface enquanto manutenção do seu próprio funcionamento e do seu sistema cognitivo. Os processos conscientes - controlados - são menos céleres que suas contrapartes automáticas, mas compensam a falta de potência com flexibilidade. Esta flexibilidade sensível também está presente nos grupos. Não como consciência, claro, mas por meios outros que tomam a sua função; um debate visando chegar a uma deliberação pode ser tomado como exemplo. Na biologia do cérebro, a nível neuronal, a multiplicidade das entidades e seu funcionamento paralelo e inconsciente são traços constitutivos da arquitetura cognitiva. A consciência, ao bradar "eu penso, eu existo, eu sou", reclama para si uma importância que pertence a um agenciamento social, complexo, cósmico que ultrapassa seus limites encapsulados e individuais, não passando dum simples ponto desta ecologia cognitiva que é o pensamento. A consciência é individual, mas o pensamento é coletivo!
Mesmo agora, quando admitimos que grupos humanos possuem sua cognição, ainda resistimos à idéia dum coletivo misto, que abarca não só pessoas, mas coisas. E pulula a pergunta: como é que, diabos, uma coisa poderia participar da inteligência!? É fácil caírmos na solução da passividade objetal, considerando os instrumentos enquanto extensões inertes de nossa mente. A alma humana, entretanto, não é um núcleo central ao redor do qual as tecnologias da inteligência circulam, mas é o agenciamento aparentemente sistêmico desses inúmeros satélites. Não o sol, mas todo um universo de frágeis relações a se coadunarem! O que seria da grandiosa mente, por exemplo, sem a linguagem - misto sujeito-objeto - fruto e árvore das conversações, dos nossos grupos sociais, das nossas tecnologias da memória?
As tecnologias da inteligência estão fora de nós. Tudo bem! Digito este texto em meu modesto PC, processado por um Intel Celeron 220; seguro um livro meio amassado do Pierre Lévy, publicado pela editora 34; e, tendo acabado a Eroica, pús-me a escutar o álbum Awake, do Dream Theater. Entidades claramente distintas de mim, de você e delas mesmas. Não obstante - uso a conjunção preferida do Dr. Cooper! - o advérbio "fora" nos parece - a mim e ao Pierre - mal colocado, sendo preferível a partícula "entre". Afinal, escrevo numa postagem que (assim espero) será lida por outrem, em seu computador pessoal; leio e comento um livro escrito por um judeu tunísio que mora na França; aprecio uma música em mp3 (The Silent Man, a balada do CD) editada pela Elektra Records, uma das muitas gravadoras da Warner. Os objetos não só conectam os sujeitos, mas estruturam a rede cognitiva que permite a sua existência. Mesmo quando sozinhos e de mãos vazias estamos na presença de muitos, sejam homens, mulheres, infantos e velhos, sejam falas, regras, lógicas e imagens. O sujeito só o é na imbricação dos objetos! Sujeitos atravessados de objetividade e objetos recheados de subjetividade, numa rede louca, complicada, heterogênea, imenso entrelaçamento articulado de subjetividades fractais e tecnologias intelectuais! Homens-coisas...
LÉVY, Pierre; As coletividades pensantes e o fim da metafísica; In As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática; Trad. Carlos Irineu da Costa; Rio de Janeiro; Ed. 34; 1993; pp.163-175.

sábado, 29 de maio de 2010

Metodologia Temporal

Já no escritório, após sair da Rodoviária com João e Maicon, conversa vai, conversa vem, e João (creio) insinua uma possibilidade de método para o nosso fazer. É mais uma expressão em busca de sentidos possíveis. Metodologia Temporal (MT).
Quem está na chuva é para se molhar. Molham-se os que correm da chuva e os que ficam na chuva. A MT volta-se para os dois casos, creio.
Os que correm da chuva, melhor do temporal, levam seus suspiros e correntes de água, mesmo sem querer; pelo corpo, nos calçados e bainha das calças, por exemplo. Mas tendem a se sentir secos quando protegidos. O que sabem da experiência?
Os que mergulham no temporal e embriagam-se com o vento e a precipitação da água, são conexões com o fenômeno, e sem poder ser nele ou mesmo ele, com ele se encontram, como um par.
Depois disso, podem dizer da experiência numa outra articulação.
Será que faz sentido? "Será que vai chover?".
Convenço-me que estou latoutando. E aí?

Histórias de um homem que viu Deus

Depois de uma semana, retorno ao banco disposto em frente a parada do ônibus que faz o trajeto para São Cristovão. Os ônibus carregam seu motor na parte da frente e esses em funcionamento, tremem a três passos dos bancos de espera, que são, já, o limite da passagem entre o terminal e os coletivos. Daí, quando nas paradas encontram-se todos os ônibus alinhados, forma-se um corredor ensurdecedor e de ar bastante carregado pela queima do diesel.
Acostumar-se a essa condição, para quem passa o dia ali, deve trazer em algum tempo, comprometimentos auditivos e respiratórios. Entretanto não se percebe com facilidade reclamações nesse sentido. Nem entre os ambulantes, os fiscais, os motoristas, os de passagem e outros. Pareço ser eu, o mais incomodado com essa situação. O barulhos dos infernos e o vapor das descargas dos ônibus, em uma tarde quente, provocam um certo mal estar. A pequena rodoviária, cravada no coração do centro da cidade, se incomoda pouco com isso.
Encontro um lugar no banco e sento. Preparo os ouvidos para o exercício que chamamos de “Forrest Gump as avessas”. Escutar. Sento entre duas mulheres que conversam com outras pessoas. Para a esquerda a mulher conversa com sua família e de lá escuto alguém sugerir a possibilidade de voltar para casa de Topic. Alternativas à rodoviária se fazem na sua adjacência. A senhora, com ares de cansaço e que é o centro das preocupações da família acena com uma recusa. A minha direito a outra mulher conversa com um homem, que adiante, buscará conversa comigo. Trata-se do homem que já viu Deus. Talvez essa peculiaridade tenha afastado rapidamente a mulher do banco.
Passados alguns instantes, Zé, o homem que viu Deus, já está ao meu lado e diz em voz baixa e grave dos risco de falar coisas ruins: “falar coisa ruim é ruim, falar coisa ruim é ruim...”. Não escuto bem e peço que repita e ele o faz, já trazendo a história. Disse que um homem, seu amigo, estava em coma no hospital. Levara 200 pontos na barriga, cem internos e 100 externos e que ele falava e fazia muitas coisas ruins. Que seria um matador e que encontrara sua sina; a vingança que um dia chega. Conta um pouco mais da história do matador e logo pula para a sua conversão. É disso que ele quer tratar.
Zé aparenta 40 anos. Não cheira a bebida. Camisa e bermuda bem surrada e nos pés um par de chinelos bem gastos. Moreno e na boca lhe faltam alguns dentes. Tem um fino bigode e cabelo curto e penteado. Esse homem diz que um dia fora ruim também. Que dizia e fazia coisas ruins, até que resolveu pedir a Deus uma transformação na vida. Sem apontar para ressentimentos, acerta com Deus que vai fazer e pensar coisas boas, somente. E Deus, ao seus olhos e ouvidos, parece ter aceitar o trato. Diz que morava numa casinha no pé da serra no município de Simão Dias, quando seu deu a aparição. Um homem alto, vestido de amarelo, que ficou de pé por cima de uma árvore, talvez, para Zé, como a dizer que dali em diante sua vida deviria seguir o caminho do bem.
Zé contou ainda algumas histórias com a presença de Deus em sua vida, até que um senhor, vestido a sertaneja e de chapéu senta ao lado de Zé em toma a palavra para contar de suas participações em guerras, de como sobreviveu a um acidente aéreo e das suas táticas para ganhar em jogos de azar. Apesar de ter nascido em 1935, conta das guerras de 1915 a 1945, insinuando ter combatido por ali. Zé não tem vez de voz diante de senhor de chapéu. “Olha ganhei na milhar 3447 com o acidente do avião da França. O avião era da Tam 447. Tam tem três letras. Aí botei 3, 447, trinta e quatro, quarenta e sete. Acertei a milhar. Ganhei 3 mil reais”.
Logo encosta o ônibus para São Cristovão. O velho levante e se despede e Zé me olha e diz como pode um senhor inventar tanta história. É nesse momento em que aparecem João e Maicon, e ao apresentar Zé a eles, incentivo-o a falar de sua vida espiritual para eles.
Nessa tarde ainda conversei com uma senhora que tinha três problemas graves na coluna, redução, bico de papagaio e outro, que não lembro ou ela não disse. Registro também o vendedor de bonecos do Pica-pau e a minha condição de aprendiz daquele universo de passagem. Sentar no banco e esperar as histórias pegarem outros caminhos.
PS: Zé me contou outras façanhas suas como o dia em que deus lhe deu um porco e da sua viagem a São Paulo, a pé, que durou três meses. Noutra postagem retorno com elas.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Uma tarde desfaz a idéia de que já é tarde

Estive quinta-feira passada na rodoviária do centro de Aracaju. O ônibus* começa a passar por ali, com vontade de saber daquele lugar. Há muitas possibilidades de estudos urbanos nessa relação entre o centro e a rodoviária velha. Em conversa na UfS, já havíamos apontado para algumas, entretanto, nessa quinta, sentado num banco, aguardando os companheiros de estudos, dei-me com a prosa de João, vendedor de dvd's e cd's, que ao meu lado, após tomar um banho de desodorante, quis me dizer de um tanto de sua vida.
“Faz uns seis anos que não vou a Riachuelo”. Repetiu essa frase umas três vezes, até que eu, ainda em busca de alguma audição daquele lugar, lhe compreendesse. Daí, veio a conversa e ele contou de outros tempos em Riachuelo e de outros trabalhos que lhe deram sustento e de outras cidades-lugares que lhe eram importantes.
Não era necessário levantar a bola para que João, que naquela tarde estava ali por nada, tocasse seu discurso. Imaginei que esperava uma mulher. O amor pulsando na rodoviária era denunciado no cheiro e na voz deambulante de João, mas isso é suposição minha.
João não falou de intimidade. Narrou coisas da sua experiência. Coisas que sua história conta com vontade de se repartir. Penso que assim, como em João, aqueles bancos de madeira da rodoviária velha escutem infinitas histórias que os ônibus interrompem e carregam para outros lugares de Sergipe.
Minha vontade é de sentar ali, toda semana, em busca de contadores de histórias. Coisas que acontecem sem estímulo ou reforço. Talvez quase sem psicologia.
É bom saber que há gente querendo falar da sua vida pra mim, pra qualquer um. Gente desinteressada. Gente que gosta de cuspir conversa. Eis uma boa política. Estou apostando!

* Coletivo de estudos da subjetividade e políticas para a vida

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Da Fabricação à Realidade (II)

Um livro em meu colo; um computador pessoal em minha frente; uma cadeira a me sustentar; uma mesa, ao longe, sob uma pilha de textos que - preguiça dantesca! - tenho de ler ainda hoje. Todos estes objetos que me cercam são, ao mesmo tempo, "fabricados" e "reais". Fácil entender isso. Mas o problema que o Latour nos apresenta, no tocante aos objetos científicos, não se nos afigura tão simples assim. Sua tese paradoxal: é, justamente, por serem artificiais e fabricados que tais objetos científicos adiquirem uma existência autônoma independente desta mesma artificialidade e fabricação!
A aparente viagem na maionese empreendida por Latour torna-se ainda mais paradoxa quando percebemos duas epistemologias contraditórias se justapondo no enunciado acima; a saber, um Construtivismo e um Realismo. Pra melhor preparar nossa salada, uma pitadinha a mais de Pasteur e de seu ácido lático não nos fará mal. Um experimento, como já coloquei em postagem anterior, é um ato - metáforas teatrais e musicais são válidas, aqui - montado pelo cientista/diretor/humano/Pasteur para fazer o objeto/atuante/não-humano/fermento aparecer por si mesmo. O labor e a oração do cientista fazem com que um outro plano de referência - uma transcendência absoluta, derivada dessa imanência relacional - se desenvolva. A referência do cientista-diretor delega, através de sua atividade, existência à referência do objeto-ator.
Esse é o momento em que invocamos nossos palavrões mais escabrosos diante de tão confusa explicação! É aqui que nos perguntamos: qual o problema da distinção sociedade-natureza, epistemologia-ontologia, palavras-coisas? Pra que precisamos dispender tanta energia intelectual nessa colcha de retalhos filosófica que o Latour nos traz se, ao que parece, o acordo moderno que distingue história de realidade é bem sucedido em trazer felicidade a todos nós? Por que não nos damos por satisfeitos com a clássica solução do paralelogramo, que considera o experimento científico como a resultante de dois eixos, o dos estados de coisas e o das tendências e teorias?
Segundo esse modelo, se nenhuma força for exercida pelo eixo das humanidades, teremos acesso ao estado primeiro das coisas. Se os cientistas acreditam nisso não sei, mas o seu Luís - afirma Latour - certamente não cairia nessa, pois sabe a trabalheira que deu tornar visível seu fermento e fazê-lo circular entre seus colegas da Academia. O contrário, caso a força exercida pelo eixo das coisicidades fosse nula, resultaria em que nossas sentenças sobre o mundo seriam configuradas unicamente por nossas teorias e paradigmas legadas pelo social. Pasteur, mais uma vez, não daria muita bola para essa assertiva. Como tão lindamente formulou o Latour, Pasteur autoriza o fermento a autorizá-lo a falar em nome dele. Nossa dificuldade em entender o encaminhamento de Pasteur está na relação de identidade que o próprio estabelece entre duas sentenças que consideramos contraditórias: "o fermento foi fabricado em meu laboratório" e "o fermento independe de minha fabricação" são sinônimas para o nosso amigo Luís! Um realismo construtivista nasce aqui!
Deixamos escapulir, uma vez mais, aquele palavrão inicial. Confusão dos diabos esse Latour causa com seus jogos de linguagem! Uma confusão esclarecedora, no entanto, assim como aqueles aforismos incompreensíveis que um sensei lança ao seu neófito gafanhoto, na esperança de que a flecha atinja seu espírito. Para melhor se fazer entender, Latour utiliza de metáforas outras, para além do paralelogramo. Fala do teatro, para mostrar os dois eixos operando ao mesmo tempo; mostra a metáfora do fetiche, que explica o porquê de esquecermos o trabalho que realizamos para completar a obra e de cedermos à sua autonomia; constrói um modelo ótico, visto fixarmos o olhar em coisas independentes; discorre sobre indústria, para falar da realidade como transformação; apresenta o modelo da trilha, colocando toda mediação em termos daquilo que torna possível o acesso às coisas; e, finalmente, apresenta a articulação - sua melhor metáfora - que enfatiza a independência da coisa, revela os dois eixos ao mesmo tempo, toca no experimento como acontecimento histórico e liga a realidade à quantidade de trabalho!
Não obstante, todas estas analogias bonitas estão erigidas no modelo linguístico das assertivas, no qual há o mundo mudo dum lado e o humano falador doutro. O que o Latour propõe não é mais uma engenharia ou metáfora para suprir o vazio existente entre estes dois mundos, mas um chamado "modelo de proposições", proposições estas que não são nem palavras nem coisas, nem um intermediário das duas. Proposições são atuantes (em exemplo, Pasteur ou seu fermento ou seu laboratório ou a Academia...)! Não são substâncias mudas com uma natureza, mas "ocasiões" de contato entre diferentes entidades, que permitem às mesmas modificar suas definições no curso dum evento (em exemplo, um experimento).
No modelo canônico das assertivas, referenciar é fazer a assertiva corresponder a um estado de coisas, embora criar uma tal semelhança seja impossível. A palavra "fermento" não fermenta! Já no modelo de proposições, não se trata de criar uma ponte por sobre o abismo sujeito-objeto, mas de articular (e aqui nos reapropriamos da metáfora da articulação, mas posta sobre um novo terreno). Aqui - espero que já tenham percebido - o Latour apresenta uma lida totalmente diferente para com a linguagem. Se nos aparatos linguísticos tradicionais a mente humana está cercada de coisas mudas, no novo modelo a articulação se torna não uma função humana, mas uma propriedade das entidades e coisas mesmas, ou melhor, das proposições! Quando Pasteur fala, ele não enuncia em palavras a natureza ontológica do fermento, mas "propõe" que consideremos aquele subproduto duma reação puramente química uma entidade viva e autônoma.
Os termos que o Latour utiliza - ação, testes, evento, articulação - ganham nova significância com o modelo das proposições. É graças à artificialidade do laboratório que o fermento de ácido lático se torna articulado, ganhando estatuto próprio devido à Pasteur, seus experimentos, alguns artigos seus, artigos de outros acadêmicos, ações e reações mil. Articular proposições, aqui, não é simplesmente falar. Nós falamos justamente porque as proposições do mundo são, em si mesmas, articuladas! Confuso? Não mais! Complexo? Talvez! Tal modelo coloca uma relação inteiramente diferente da visão tradicional do homem com o mundo; modelo este que, embora de difícil digestão, é muito mais exato no tocante a capturar a atividade científica que a simples correspondência estéril entre um discurso e um estado de coisas de um mundo "lá fora"...
LATOUR, Bruno; “Da Fabricação à Realidade";
In: A Esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos; trad. Gilson C. C. de Souza; Bauru, SP: EDUSC, 2001; pp. 148-167.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Agora eu já sei o que responder...

Desculpa tá tomando o espaço de voces, achei isso num blog, pus noutro e tambem to pondo aqui. Nem sei se podia, mas às vezes a gente tem que ser pentelho mesmo...

"Ajudamos a controlar crianças inquietas na escola, a melhorar a disciplina, a controlar a sexualidade; contribuímos com nosso saber para asilar os loucos, as prostitutas, os desempregados; ajudamos a ocultar a produção das desigualdades sociais justificando-as como diferenças individuais; criamos instrumentos de seleção e categorização; pusemos o homem certo no lugar certo; isentamos a escola de suas deficiências com nosso conceito de dificuldades de aprendizagem; chegamos até a justificar acidentes de trabalho pela pulsão de morte; construímos exclusão de minorias através da concepção de patologia nas condutas. Apresentamos como necessária e normal a constituição da família burguesa das camadas médias e condenamos as famílias das camadas de baixo poder aquisitivo à patologia; fizemos do homem branco, europeu, heterossexual, das camadas médias, o modelo da normalidade (...) Justificamos e reafirmamos a normalidade das condutas das camadas dominantes, apresentando-as como naturais. Retiramos desta natureza o conceito de normalidade. Enfim, tornamos normal o que é dominante. Esse tem sido o nosso compromisso social". (Ana Bock)

http://psicologiadospsicologos.blogspot.com/

sábado, 10 de abril de 2010

Impressões da Feira de Laranjeiras (II)






Com o intuito de verificar se a notícia de que a Feira da cidade de Laranjeiras iria sofrer uma mudança de lugar, com a visita ao local, obtive as seguintes impressões.



A feira livre é um local público que em determinadas épocas e dias fixos, se expõem e vendem mercadorias. Como acontece em diversas cidades do país, a feira da cidade de Laranjeiras, situada no interior do estado do Sergipe, é um fenômeno econômico social muito antigo, que já conta com mais de 17 anos de existência, mas que como toda e qualquer feira tem suas implicações de ordem pública e possui regras de criação e funcionamento que dependem da intervenção e da garantia do município.



Como as feiras se originaram há muito tempo, quando as pessoas se reuniam periodicamente em algum ponto pré-determinado da cidade para vender seus produtos à população ou mesmo realizar trocas, com o tempo o número de mercadores foi aumentando e o poder público interveio com o objetivo de disciplinar, fiscalizar e, é claro, cobrar impostos.



O papel das feiras tornou-se verdadeiramente importante a partir da revolução comercial, nessa época os mercadores realizavam transações comerciais e intermediavam trocas numa atividade eminentemente itinerante. Esta prática tornou necessário o uso do dinheiro, como havia pessoas que vinham de diversos lugares, existia então, uma grande variedade de moedas em circulação, o que ajudou e muito a desenvolver os bancos e o câmbio. As feiras eram localizadas em lugares estratégicos, como num cruzamento de rotas comerciais e algumas chegaram a ter abrangência internacional.



As feiras livres existem no Brasil desde o tempo da colônia e apesar dos tempos modernos e dos contratempos que elas causam nas cidades, elas não desapareceram, embora corra o risco, em muitas cidades do interior do país, elas são o principal e, às vezes, o único local de comércio da população, funcionando também como centro cultural e de lazer. Algumas pessoas circulam, examinam, pechincham ou simplesmente estão à procura do que desejam. Outras pessoas já têm suas barracas preferidas, conhecem o feirante de longa data e parecem mais amigos do que fregueses. Pode-se dizer que a feira é uma referência cultural, muitas vezes visitada por turistas e bastante frequentada por pessoas de cidades vizinhas.



Mas a feira está sendo descaracterizada, está sendo deslocada das áreas estratégicas para áreas de pouca movimentação e convívio social, geralmente distantes da zona de concentração populacional, áreas pouco habitadas ou mesmo desvalorizadas.



É o que está acontecendo na cidade de Laranjeiras. Numa visita a cidade, conversando com as pessoas que frequentam a feira, de uma maneira geral, a maioria se mostrou contra a mudança da feira para a praça de eventos da cidade, um dos principais motivos para que ocorra essa mudança é que a feira ocorre nas imediações do campus da Universidade Federal de Sergipe, além de interromper o trânsito, impedindo a circulação dos veículos, mas as pessoas alegam que a feira só funciona aos sábados pela manhã, e que já há uma tradição, um costume da feira naquele local, com a mudança de lugar haveria uma grande dificuldade de acesso, já que a feira seria dividida, pois o mercado de corte e cereais permaneceria no prédio vizinho a Universidade, mas as barracas de frutas e verduras seriam transferidas para a praça de eventos que fica do outro lado do rio, apesar da construção de uma passarela, os mercadores relatam que “os fregueses que forem ao mercado de corte, não vão atravessar a passarela para olhar se o tomate ou a cebola estão na promoção”, o que poderia acarretar prejuízos.
Enfim, a feira mais parece uma “confusão” perfeitamente organizada onde tudo funciona na hora e no lugar certo. É um lugar caricaturesco cheio de figuras ou personagens, cada um com sua história, um lugar com cheiros, sons, cores e luzes a serem descobertas, exploradas, fotografadas... na memória e na história.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

RELATO DA VISITA À FEIRA DE LARANJEIRAS

Teve o objetivo de averiguar o que as pessoas ligadas à feira de Laranjeiras - feirantes, vendedores ambulantes, comerciantes do local e compradores – achavam quanto à informação sobre a mudança da feira para a praça de eventos de Laranjeiras.

A feira acontece próximo ao recém chegado campus da Universidade de Sergipe no município, sendo estes um dos motivos apontados para tal mudança. Além disso, alegam que outro motivo da mudança se deve a feira estar atrapalhando a circulação de automóveis e outros transportes. A notícia da mudança era sabida pela maioria dos entrevistados, sendo que alguns comentavam saber a pouco mais de um ano e outro só a um mês. Uma compradora, que diz ser assídua, revela que não sabia da notícia da mudança e fica surpresa inclusive por saber que a entrevistadora que é de outro município sabia.

De um modo geral, a maioria dos entrevistados era contrário à mudança e estão descontentes com a mudança da feira. Entre os argumentos dessa contrariedade é que grande parte dos feirantes está acostumado com a feira nesse local, já que a mesma se encontra lá há muitos anos e acreditam que essa mudança da feira será para pior, seja para o comercio dos feirantes, visto que dificultará o acesso dos compradores à feira, apesar da passarela a ser construída, comentada por muitos entrevistados. Acreditam também que a feira ficará dividida, pois uma parte será transferida ao mercado (parte de “corte”) e a parte restante de frutas, verduras e etc, irá para a praça de eventos. Outros feirantes acreditam que o futuro espaço será insuficiente para comportar o tamanho da feira.

De modo controverso, uma compradora relata que a mudança pode ser interessante já que a feira se encontra muito apertada, o que dificulta conhecer as promoções, além de o atual local da feiras ser sobre pedras que dificultam o caminhar dos compradores, que correm o risco de tropeçar, por exemplo.

Curiosamente, um feirante comenta que o preço que paga pela estrutura montada da feira é de 7 reais por semana, sendo que antes era 6 reais e em época de eleição o valor era dividido entre o feirante e a prefeitura.

Quanto a opinião de uma vendedora da loja de material de construção que fica próxima à feira, menciona que a mudança trará vantagens e desvantagens para ela: de um lado proporcionará à loja que os veículos que transportam o material tenha fácil acesso para carregar e descarregar o material aos sábados (dia em que a feira acontece); por outro lado acredita que com a feira em outro local, poderá de certo modo diminuir o número de clientes na loja, além dela mesma ser compradora da feira e a mudança da feira de local dificultar seu acessa a ela.