segunda-feira, 21 de junho de 2010

Crônicas

17 de junho de 2010
Fim de jogo: ARGENTINA 4 X 1 CORÉIA DO SUL

(Em algum lugar do Brasil...)
— Hein, você é argentino?
— Eu torço pra Argentina, sim!
— Você não é brasileiro, não!?
— Ah!... De novo isso... Toda copa é assim... Caducou essa tese antropológica de que torcer pra seleção canarinho é sinônimo de patriotismo. Prefiro o carnaval de Bakhtin ao de da Matta. Também não sou cordial! — ao menos, não nos níveis que me são exigidos em função de minha nacionalidade brasileira. Isso para desespero de Sérgio Buarque de Holanda: por que será que os cientistas sociais brasileiros de re-nome têm nome aristocrático? Tampouco sou pacífico. O panelaço de nossos hermanos na Plaza de Mayo deveria ter nos ensinado algo, mas, pelo visto, o que confronta nosso ideário cordialesco é automaticamente rechaçado (recalcado?) em prol da manutenção de nossa causa identitária. Somos cordiais porque acabamos dando um jeitinho em tudo (o próprio difusor dessa lei, Gérson, era atleta e fumante!), sem necessidade de partir pro confronto direto. Agimos à surdina e nos bastidores. Daí os sem-terra tornarem-se “baderneiros” por essas bandas, ao menos é essa a imagem que a mass media brasileira, como legítima porta-voz do senso-comum e difusora da mediocridade, procura passar desse movimento. Somos coniventes com as silenciosas transgressões hodiernas (furar fila, burlar as leis de trânsito e torturar presos já são clássicos tupiniquins!) e intolerantes com os protestos barulhentos e viris, por mais justos que sejam. Coisa para baderneiros desocupados! — pensamos. Acho essa tese da cordialidade brasileira um embuste! (E não me venha com essa de dizer que o pai do Chico Buarque usou a expressão “cordial” como sinônimo de “emocional” ou “instintivo”! As palavras têm uma ação performativa para além de nossa intencionalidade e, vindo de tão eminente figura, assume nesse caso o estatuto de um autêntico ato falho.) Geralmente, somos cordiais com os estrangeiros, sobretudo os anglo-saxões e europeus que portam moeda mais valorizada do que a nossa, mesmo que estes visitem o Brasil para fins de turismo sexual infanto-juvenil; alguém já reparou como somos xenófobos para com os asiáticos de olhinhos puxados, os africanos subsaarianos e os latino-americanos hispânicos? Além disso, alimentamos torpes rivalidades e preconceitos internos para com nossos vizinhos em pleno território nacional, talvez uma má herança do sistema de capitanias hereditárias: gaúchos x catarinenses, paulistas x cariocas, mineiros x capixabas, baianos x sergipanos etc.; e desde a inauguração da atual capital do Brasil, nova rivalidade forjada artificialmente: goianos x candangos. Isso quando não discriminamos toda uma região geográfica: basta reparar a freqüência com a qual as barbeiragens no trânsito são apelidadas de “baianadas”, assim como os porteiros dos prédios chiques de Ipanema são “paraíbas”. E olha que falamos a mesma língua em todo o território nacional, os movimentos separatistas representam mera mancha histórica em nosso passado e não temos disputas étnicas significativas, diferentemente da Bélgica (onde recentemente uma miss foi vaiada por só falar a língua francesa, minoritária, e não o dialeto holandês), da Espanha (onde os bascos, por exemplo, reivindicam sua autonomia enquanto Estado independente por intermédio do grupo separatista ETA) e de Ruanda (onde massacres étnicos assumem as proporções de um genocídio). Tais rivalidades brasileiras não são sem conseqüência: quando migramos de um Estado para outro no Brasil somos impelidos a converter nossa naturalidade, tentando ser acolhidos em nossa nova morada. “Nasci em Minas, mas sou capixaba de coração” — repetia essa pérola um ex-vizinho meu à exaustão. (E haja “cariocas” ilustres nascidos em outros Estados!) Só conseguia me lembrar da máxima de Sade: “Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos”. Curioso que o Gugu Liberato faz suposta filantropia num dos quadros de maior audiência de seu programa de TV mandando nordestinos que residem em São Paulo “de volta pra casa”; porém, quando um paulistano, por exemplo, “volta pra casa” após ter residido no nordeste, ele é um ingrato, quando não um traidor, que não amou suficientemente a nordestinidade. Considera-se este turista e aqueles vagabundos - diria Bauman. Ledo equívoco! No fim, sempre haverá um caminho de volta pra casa após o término dos sonhos dourados. Quanto à tese da pacificidade, ainda é possível sustentá-la frente os atuais índices de criminalidade que assolam a nação? Recentemente, vi um noticiário brasileiro que apresentava os alarmantes índices de criminalidade da cidade de Johanesburgo, na África do Sul, alertando para os perigos do lugar aos participantes da Copa do Mundo da FIFA. Chocou-me constatar que tais índices são semelhantes (até mesmo ligeiramente menores!) aos das grandes metrópoles brasileiras, como Rio e São Paulo. Dizem que cada país tem a violência que merece e, no caso do Brasil, ela é generalizada e sua banalização aproxima-se da barbárie. Não adianta culpar as drogas, como a mídia faz atualmente. Baudelaire, sábio escritor e perspicaz usuário de entorpecentes, já dizia no século XIX, antecipando argumentos do movimento psicodélico, que elas só realçam aquilo que já somos. Se as drogas forem mesmo um espelho da alma, os brasileiros estão muito mal “almados”. Quanto ao tráfico, já são outros quinhentos e não é evitando o debate em torno da legalização das drogas ilícitas que nos livraremos dele. Também não basta culpar a colonização portuguesa pelas nossas mazelas: o Congo é Belga, a Namíbia é alemã, a Líbia é italiana, a Índia é inglesa, o Suriname é holandês, o Haiti é francês, só pra citar alguns, e nenhum desses países é menos problemático que o Brasil. Por muito tempo tive que conviver, apesar de discordar desde minha infância, com o mito de que se tivéssemos tido senhores mais generosos (Casagrandes mais hospitaleiras), estaríamos em melhores condições hoje em dia. Típica lógica da subserviência que perpassava as senzalas brasileiras, com honrosas exceções, cujo ícone da resistência é Zumbi dos Palmares. Aliás, você sabia que até hoje nem 10% dos municípios brasileiros decretam feriado no Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro? Enquanto isso pululam feriados juninos em dias santos pelo Brasil afora... Se Zumbi fosse católico ele provavelmente já teria sido canonizado por martírio. Católico é assim: acredita na bondade das pessoas, em culpa, arrependimento e perdão, desde que você venere os santos oficiais e tenha como princípio ético a busca da santidade em vida (quando Santo Agostinho se converteu ele já contava mais de 30 anos de vida profana e boêmia!); desconfio que o juiz que libertou o maníaco de Luziânia seja um bom católico (mesmo que não-praticante), isto é, ingênuo o bastante pra acreditar na regeneração de um pederasta em pleno sistema prisional brasileiro. Acreditar em remissão espontânea da crueldade no “inferno” é demais pra mim! Dizer que só "aplicou a lei" também é ingênuo e kafkiano demais pro meu gosto! Já os evangélicos são mais céticos quanto à pureza da condição humana, senão não haveria necessidade de imprimir tamanha vigilância (cujo modelo é o panóptico, de Bentham) sobre a vida dos crentes. Aliás, essa vigília já deve vir inclusa na taxa do dízimo, o qual, no caso dos evangélicos, é compulsório. Até porque sendo a certeza da salvação um mistério, você só tem como confirmar que é um eleito para ser salvo prosperando ($$$) em vida; e quanto mais você prospera, maior é o seu dízimo e maior é a vigilância sobre você. Essa indissociação entre riqueza material e salvação espiritual deu aos fiéis um álibi pra incorporar a lógica do capitalismo sem culpa. Aos católicos resta enriquecer com culpa e, no máximo, com arrependimento e perdão. Quanto a mim, sou ateu, ou melhor, agnóstico, como se diz atualmente, pois soa menos agressivo e é expressão politicamente correta, digna de figurar na controversa cartilha do Lula. Conheço muitos ateus que levam uma vida mais digna do que muitos religiosos. Só acreditaria num Deus que soubesse dançar, apesar de não ver motivos para o batuque dos tambores assumir privilégios musicais. Já não bastam as vuvuzelas?
— Ainda acho que você não é brasileiro...
— VOCÊ SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO!?
— Ô dotô, desculpe! Achei que você fosse argentino por conta da sua camisa! Senta aí e toma uma com a gente, chefe!

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