domingo, 11 de dezembro de 2011

Na beleza do trabalho de Eder

Eder, você é um éter.


um modo-risco, que risca as páginas

e na leitura faz passar paisagens //

que trazem e levam espaços e tempos

cotidianamente embriagados.

Bêbadas imagens que teimam

em explicar (des)explicando,

aquilo que prescinde explicação.

Uma experiência não tem explicação quando viva.

Por isso, a cada dia se dê viva a experiência,

viva a fluência obstinada da vontade de alegrar,

sendo alegre, ainda.

E afirmar essa alegria como quem canta,

e mesmo quando gemendo,

o gemido como que assobia,

como pássaro ou como éter,

melhor, como Eder.

Eder passarinho, essa espécie de errante natural

que acerta os lugares

e não sabe o motivo, //

sem bússola viaja o mundo,

sem que da causa advenha comprimidos

receitas, consultas e remédios.

É complexo singelo, o voo pássaro //

como o é também o éter absorvido.

Cada linha-inalação diz em mim

de um poema-dissertação.

Não são linhas, são versos //

versos distraídos

que narram um presente

de uma cidade qualquer,

com habitantes singulares,

habitantes na rua, embebidos de rua //

mesmo aqueles que não a enxergam.

E não enxergar pode ser virtude,

quando o que se mostra é mais do mesmo.

Etereamente vai Eder-éter-passarinho

singrando os ares que a cidade

respira, transpira e conspira //

fazendo falar campos adversários;

acertou Foucault ou ficou com Certou?

Michel, michel, (...) michel, michel.

Inventa conexões, atravessamentos //

faz o trabalho do vento

que mistura os ares

e quase nunca lhes dá forma //

deixa isso para os menos iluminados.

“Vento que balança as palhas do coqueiro”

vento que não descansa,

trabalha de noite e de dia

assim, aquilo que se diz,

era o que se queria:

a disciplina não pode tudo,

pois tudo não existe //

e nas artes do fazer

aquilo que se inventa,

aquilo que se cria,

em nós também é o que resiste.

Éter-eder, eder-éter.

E vai o filme passando

sem deixar o passado ansioso.

Ele flui sem que se perceba

adiante, algum remorso retorno.

Dos males, o melhor!

Errar é compor,

não é destrinchar, recolher e assimilar.

Não se erra deliberadamente, você diz.

Se erra porque se erra,

simplesmente,

como uma criança que diz que sente

e do que sente.

Criança: devir-fingidor em pessoa.

O erro sentimental carrega frescor

quando se dá bem,

quando se dá mal.

O segredo é se dar,

e se dando, se entregando

a errância se confirma,

flutua, vagueia, se espalha.

Errância é pedra na água,

é fogo de palha.

É amor consumido em vida

no fio da navalha.

E na arte de amar,

na melhor astucia do fazer,

não há certo e errado.

Há o dito e o não dito,

o toque das peles,

o frisson nos pelos,

há as calmarias e os destemperos.

Há amizade e a paixão que clama

momentos de café, de feijão e de cama.

O que se faz nesses momentos?

Responda quem ama!

Há muito de muitas coisas no amor.

Há até aquilo que ainda não sendo,

avisa intuindo no outro,

olha, já-já aí estou.

Como algo que se sabe sem saber,

como algo que se pode

sem dizer em si o poder.

Como algo que não se deve por na mesa

e buscar a melhor solução.

Problemas de matemática

com as urbanesas? Não!

Elas são problemas enverbados

por isso restauram o eterno inacabado.

Espalham fragrâncias do erro cometido

onde ainda há vida,

onde “o pulso ainda pulsa”

onde encontrar se faz acontecimento

o descaminho do presente

é o futuro do pretérito no prazer compartilhado,

é falar com você, tendo Heliana, Teresa e Marcelo do lado.

É ver tanta vente bonita

e a todos, especialmente a você,

dizer muito obrigado!







segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Resumo do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol

Deus e o Diabo na Terra do Sol

No primeiro do trecho filme temos o primeiro contato com os personagens que conduzirão todo o enredo do filme: Manoel, Rosa e o sertão. A primeira cena, uma tomada aérea sobre o sertão, conduz o espectador como um visitante, introduzindo ao cenário do semi-árido nordestino. Em meio a este cenário, encontra-se o vaqueiro Manoel a que o cordelista-narrador apresenta, justo no momento do primeiro encontro deste com o Santo Sebastião, um beato a conduzir um pequeno culto messiânico em procissão, em meio a cantorias religiosas. Manoel, montado em sua burra, rodeia o culto e observa admirado o beato, mas não pronuncia uma palavra. Ao chegar em casa, relata o encontro a sua esposa Rosa, ainda admirado, fala que o santo havia prometido um milagre que iria salvar todo mundo. Rosa ouve impassível enquanto continua socndo o pilão. Na cena seguinte, Rosa gira a roda da moenda, enquanto Manoel mói a mandioca, preparando a farinha. Enquanto comem, Manoel conta à esposa seus planos de vender duas vacas e comprar um terreno, fazer uma roça, para que possam ter a própria colheita no ano seguinte. Rosa desacredita, diz que não adianta ao que Manoel responde que apesar do tempo ruim poderia vir um milagre.

No dia seguinte, Manoel vai à feira ao encontro do Coronel Morais, a quem trabalha cuidando de vacas. Manoel diz ao coronel que quatro vacas do rebanho morreram e pergunta-lhe pela partilha das vacas, pelo serviço prestado ao que o Coronel responde que as vacas mortas pertenciam ao vaqueiro. Manoel protesta ao que o coronel responde que a lei está do seu lado. Manoel insiste e após uma discussão o Coronel sentindo-se ofendido chicoteia Manoel que se defende cortando o Coronel com seu facão. Manoel foge e é perseguido por dois jagunços até sua casa; enquanto enfrenta um jagunço, o outro chega até a mãe de Manoel e a mata. Manoel mata os dois jagunços salvando Rosa e depois enterra a mãe.

Após esse episódio, Manoel entende que é seu destino seguir o Santo Sebastião, que já devia ter ido antes da desgraça. Manoel então leva sua esposa a Monte Santo, lugar onde Sebastião e seu culto se encontram. Sebastião prega a seus fiéis, profetiza uma terra do lado de lá do Monte Santo, onde tudo é verde e farto e onde ao nascer do sol aparecem Jesus e Maria, São Jorge e o Santo Sebastião. No caminho de pedras para o Monte Santo, Manoel e Rosa discutem, ao que Manoel reage com um golpe que leva Rosa ao chão. Sebastião prega contra os donos das terras, conclama os fiéis a buscarem as terras do céu e anuncia que o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão. Manoel chegando aos pés de Sebastião entrega-lhe sua força para libertar seu povo. Os fiéis louvam a Jesus. A seguir, Sebastião, Manoel e o culto de fiéis em procissão, saqueiam vendas, aprisionam, e agridem pessoas nos povoados próximos. De volta a Monte Santo, os fiéis rezam ruidosamente, num transe coletivo, enquanto Rosa caminha entre eles, observando. Rosa pergunta a Manoel se esquecera dela diz que desde que chegaram ao Monte Santo Manoel foi a deixando, ao que Manoel responde que para se entregar a Sebastião ele tinha que ficar sozinho, se libertar de mulher e filho. Sebastião declara que Manoel fora mandado para ser a força do Santo e esbofeteia-o. Manoel reproduz as profecias do Santo, fala que vira uma ilha no meio do rio, onde tudo é verde. Rosa adverte-o, pede para irem embora antes que cheguem as tropas do governo e façam igual ao que fizeram em Canudos. Manoel responde que o destino é maior que a morte. Sebastião prega, Manoel reza convulsivamente, Rosa intervém, interrompendo Manoel e desdizendo Sebastião ao que Manoel a impede e prossegue sua oração.

Um coronel e um padre contratam Antônio-das-Mortes para matar Sebastião. Antônio recusa-se dizendo que já ouviu falar de milagres no Monte Santo, que Sebastião tinha parte com Deus. O padre convence-o oferecendo o dobro do pagamento e dizendo que esta é a penitência de Antônio, que só depois de um crime maior é que ele poderá ser perdoado pelos crimes que cometeu. Em sua doutrinação pelo Santo Sebastião, Manoel é levado a carregar uma rocha sobre a cabeça por todo o caminho de pedra que leva ao Monte Santo. O beato Sebastião exige a Manoel que traga sua mulher e uma criança que só depois de lavar a alma de Rosa é que Manoel estará limpo. Acreditando que a mulher está possuída pelo demônio, Manoel cumpre o que o beato lhe pedira e leva a Sebastião um bebê e sua esposa Rosa. É preciso lavar a alma dos pecadores com o sangue dos inocentes. Sebastião sacrifica o bebê perfurando-o com um punhal e com o sangue faz uma marca de cruz na testa de Rosa. Manoel cai em si, concluindo que não pode vingar a morte de Jesus Cristo com o sangue dos inocentes. Despertando do desmaio, Rosa pega o punhal e mata Sebastião sobre o altar da capela. Nesse mesmo momento, Antônio-das-Mortes chega atirando e matando todos os fiéis do culto de Sebastião. Entrando na capela, Antônio encontra Rosa ainda com o punhal e Manoel abraçado ao corpo de Sebastião. Antônio vai embora deixando Manoel e Rosa vivos. No caminho encontra um cego violeiro e conta a este o que ocorreu em Monte Santo.

Manoel, Rosa e o cego Júlio partem pelo sertão e acabam encontrando Corisco em uma colina, onde o cangaceiro executa algumas pessoas, dizendo estar cumprindo sua promessa ao Padre Cícero, de não deixar o pobre morrer de fome. Corisco diz estar continuando o trabalho de Lampião, que este não teria morrido, estaria vivo nele. Corisco declara-se contra o gigante da maldade que come o povo para alimentar a República. Manoel chega aos pés de Corisco, revelando-lhe a morte do beato Sebastião pelas mãos de Antônio-das-Mortes. Corisco revolta-se contra o governo que matou Virgulino e agora havia matado o beato. Lembra que havia sonhado com o ataque que os levaria à morte. Virgulino não acreditou em Corisco que decidiu ir embora com seus cabras. Depois da morte de Lampião, Corisco vingou-se, matando o coiteiro que os denunciou e mandando as cabeças para o delegado. Manoel oferece-se para ser cangaceiro a que Corisco aceita, batizando-o de Satanás. Manoel, Corisco e seus cangaceiros invadem a fazenda do Coronel Calazans, aliado do governo. Eles saqueiam, destroem e estupram a noiva do Coronel. Corisco ordena que Manoel castre o Coronel e em seguida, de volta à caatinga, Corisco o mata. Dadá, mulher de Corisco, apela para eles irem embora, mas Corisco discorda, diz que tem que cumprir seu destino, fazer justiça para aliviar seu sofrimento, tem que vingar-se. Manoel diz que vai matar Corisco e apanha da mulher, ficando no chão choramingando. Corisco o levanta chamando-o de cabra frouxo. Manoel diz que não se pode fazer justiça derramando sangue.

Antônio-das-Mortes encontra o cego Júlio e pergunta-lhe se o vaqueiro de Monte Santo era o cangaceiro Satanás e se seria o cego quem o entregara a Corisco. O cego confirmou, dizendo que tinha lhe dado um destino. O cego diz não entender Antônio a que Antônio esbraveja ser esse o destino a que foi condenado. O cego pergunta se é matando que Antônio ajuda seus irmãos, ao que Antônio responde que o beato o havia perguntado a mesma coisa e que ele só matou os fiéis de Sebastião porque não conseguia viver conformado com tanta miséria. O cego Júlio protesta, dizendo que a culpa não é do povo. Antônio diz que um dia haverá uma guerra entre Deus e o Diabo no sertão e que o que ele quer é apressar esse acontecimento, matando Corisco e depois morrendo de uma vez.

O cego Júlio avisa Corisco que Antônio está por perto. Dadá, apela mais uma vez para eles fugirem ao que Corisco responde que o Padre Cícero fechou seu corpo. Manoel diz que morre por Corisco, que Lampião e Sebastião eram a mesma coisa, ao que Corisco responde que o beato não valia nada, o que Manoel diz ser uma blasfêmia. Corisco e Manoel discutem, Corisco diz que o beato Sebastião uma vez quis que Lampião largasse as armas e o seguisse. Corisco acredita que não se faz justiça só com oração e rosário, o que Manoel diz ser uma mentira. Dadá diz que Virgulino era grande mas também ficava pequeno, Corisco protesta, mas depois admite ser uma verdade. Corisco manda Dadá ir com o cego Júlio buscar sua filha e manda Manoel ver com quantos macacos Antônio está vindo.

Sozinhos na colina, Rosa e Corisco se aproximam e se encaram. Rosa, usando ainda o véu de noiva que pegara na casa do Coronel, cheira os cabelos de Corisco, rodeia-o e para diante de seu rosto. Eles se beijam. O beijo parece estranho aos olhos do espectador, o encontro brutal entre dois desesperançados.

Manoel e Dadá retornam. Dadá revela que a filha foi morta. Manoel diz que todas as saídas estão bloqueadas pelos macacos. Corisco dispensa seus cangaceiros entregando-lhes todo o ouro que tinha, diz que enfrentará sozinho Antônio-das-Mortes e pergunta se Manoel ficará ou irá embora. Manoel pergunta a Rosa o que fazer, ao que Rosa responde que está com ele para viver.

Antônio encontra Corisco e o mata a tiros. Antes de morrer Corisco grita que mais fortes são os poderes do povo. Antônio corta a cabeça de Corisco. Manoel e Rosa correm pelo sertão. Rosa cai e Manoel segue correndo. O narrador-cordelista canta que o sertão vai virar mar e o mar virar sertão e que assim mal-dividida a terra há de errar que a terra é do homem não é de Deus nem do Diabo. A seguir, a cena corta para uma tomada aérea sobre o mar.

terça-feira, 14 de junho de 2011

A PESQUISA ETNOGRÁFICA EM PSICOLOGIA SOBRE A COMPLEXA REALIDADE DO COTIDIANO

Bibliografia: SATO, Leny; SOUZA,Marilene Proença Rebello de. Contribuindo para desvelar a complexidade do cotidiano através da pesquisa etnográfica em Psicologia. Psicol. USP. São Paulo, v. 12. N. 2., 2011.


Esse texto vem trazer algumas idéias a partir do artigo de Leny Sato em que trata da abordagem etnográfica em pesquisa nos locais de trabalho em contextos urbanos na sociedade ocidental. Enfatiza sobre dois aspectos: o estar no campo e a coleta de dados. Sato faz no final de seu artigo uma distinção de “dado” como “algo imediato e não construído”, por “fato”, que designa “coisa ou ação feita”, preferindo este seguindo uma concepção construtivista. Eu acredito na produção coletiva desses dados, já que etnografia afirma a convivência do pesquisador no campo, construindo uma experiência de onde se depreenderia tais “dados”.

Sato vem afirmar que a etnografia é um método de pesquisa que tem origem na Antropologia Social baseada em observação participante e/ou registros permanentes da vida diária no campo. Atenta-se para os vestígios e contradições dos múltiplos processos de construção histórica, contrapondo uma suposta coerência de um sistema social ou cultural, sendo interessante levar em consideração a história local do campo.

Algumas perguntas são levantadas por Sato no trabalho de campo e as coloco da seguinte forma: o que acontece naquele cenário particular?, Que significados têm tais ações para seus atores?, Como essas e outras pessoas se relacionam nesse local?. Essa autora traz ainda a partir de Rockwell algumas características das quais algumas dou destaque: permanecer longamente no campo (faz sentido já que deve passar bastante tempo no campo e com tudo que faz parte dele) e integrar conhecimentos locais a elaboração da descrição (compreendo que esses conhecimentos são obtidos no convívio com o campo ou com alguma leitura sobre o local).

Sato traz uma idéia de universalização do exótico e do diferente encontrado no campo de que não vejo porquê acontecer, qual seu objetivo, por acaso produzir um conhecimento generalizante das particularidades? Sato traz ainda uma afirmação em seu artigo que diz de uma postura em pesquisa que merece cuidado, sobre o fato de se querer produzir hipóteses, querer interpretar a realidade, enfim, concepções que não condizem com quem acredita numa construção e invenção do conhecimento e não descobrimento de uma verdade.

Por outro lado, concordo com Sato ao mencionar que tanto o pesquisador como as pessoas do local pesquisado são pesquisadores, pois ambos fazem parte do processo de pesquisa, da experiência no campo. É claro que cada qual tem suas questões específicas como no caso das pessoas do local se interessarem em saber quem é aquele que pesquisa, porque está ali, como se pesquisa, o assunto, etc. Mas quando se tem uma convivência com o campo e seus atores, é possível afirmar que essa separação vai se desfazendo. Ao mesmo tempo é possível afirmar que não existe neutralidade no campo, bem como no processo de conhecimento, pois há uma afetação mútua de que pesquisa e é pesquisado, co-produção e transformação de ambos.

A autora menciona a possibilidade de existirem no campo pessoas interessadas e colaboradoras privilegiadas da pesquisa, que buscam informações sobre esse pesquisar, sobre a vida acadêmica, querem ajudar e contribuir com o estudo. É possível que exista(m) esse(s) personagem(ns), mas não deve ser algo convocado, mas que surja espontaneamente.

Sato ressalta também o cuidado com a inserção no campo, devendo se informar de detalhes do campo que podem fazer a diferença, mas que a meu ver se trata de uma antecipação do campo que não faz sentido, pois cada pessoa ou pesquisador constrói seu modo de estar no campo a partir do que vivencia nele. É querer fazer do campo algo em si que não cabe, pois o campo é mutável tanto quanto as pessoas que o compõem.

De fato, na experiência no campo se enfrenta dificuldades, constrói-se estratégias para lidar com aquilo que surge no campo, situações e problemas diversos. Nem por isso a inquietação deve acabar, a experiência no campo não deve ser tranquila, deve-se promover a problematização daquilo que acontece no campo, mantendo uma atenção desfocada, observar e interagir com tudo que é possível, sem se ocupar apenas em “colher informações”.

A autora levanta a questão da não utilização de instrumentos pelo pesquisador, o que traz algumas questões quanto ao o que olhar, o que registrar, etc. Essas questões, de acordo com Sato, chama a uma disciplina e rigor metodológico, devendo se norteado pela delimitação do objetivo e objeto, atenção aos diálogos no campo e acontecimentos, percebendo as contradições e ambiguidades. Sato salienta um cuidado com a diversidade dos acontecimentos como algo que dificultasse as conclusões devessem ser feitas, que devesse ser apreendido e tivesse um significado a ser desvendado. A autora afirma ainda que “os ‘acontecimentos’ independem do pesquisador, se processam e conformam o dia-a-dia do local estudado”. Nesse sentido, os “dados” se transformariam em “fatos” a partir de um processo interpretativo para se produzir sínteses da realidade estudada.

Mas me pergunto diante dessas informações: é possível antecipar o objetivo ou qualquer coisa antes de vivenciar o campo? A diversidade do campo como empecilho ou potência quanto àquilo que deve estar sendo ressaltado nas descrições? Como assim interpretar o campo, produzir um significado, impor uma verdade àquilo que acontece? Acredito que estas são posturas que dizem de uma pretensa autoridade de produção de conhecimento generalizante e simplificadora de vida social que deve ser deixada de lado, e precisam ser trocadas a favor de uma simples e atenta descrição da experiência local e particular no campo, bem como dos seus múltiplos componentes heterogêneos.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

O Lugar Antropológico - Marc Auge

Qual é o lugar de pesquisa para o etnólogo? Auge vem afirmar que seria o mesmo lugar onde ocupam os indígenas, ou aqueles a quem estuda, onde eles trabalham e defendem contra ameaças externas. Esse autor vem trazer em sua obra “Não Lugares” uma compreensão quanto a pesquisa antropológica, remetendo a ideia das pesquisas pelos etnólogos sobre indígenas. Aqui nesse texto se tentará fazer um paralelo das explicações dadas por Auge com a pesquisa na feira.

Auge vem afirmar que o lugar comum tanto dos etnólogos quanto dos indígenas pode ser considerado invenções, já que a marca social do solo nem sempre é original. O etnólogo ao reencontrar essa marcação através de sua intervenção e curiosidade, devolve aos indígenas o gosto pelas origens que os fenômenos ligados à atualidade atenuaram como a migração de cidades, novos povoamentos e extensões das culturas industriais.

Pensando isso para o campo da feira, significaria dizer que a inserção do pesquisador no meio dos feirantes poderia estar estimulando ou motivando um certo orgulho ou interesse em continuar participando da feira. Ao mesmo tempo, não se pode afirmar que não exista uma valorização sendo criada não só pelos feirantes envolvidos na pesquisa, como pelo pesquisador.

De acordo com Auge, existe uma dupla invenção ou concepções criadas na pesquisa antropológica, uma refere-se ao pensamento dos indígenas diante do lugar e outra a dos pesquisadores ou etnólogo. A primeira invenção Auge chama de Fantasia indígena que remete aos tempos imemoriais de uma terra intocada, um mundo fechado, onde tudo já se conhece e se assegura a estabilidade através da legitimidade dos relatos de origem e o calendário de rituais.

Esses artifícios ou ideias propagadas pelos indígenas exprimem a identidade do grupo, defende uma tribo contra as ameaças externas e fissões internas, conservando um sentido da identidade da linguagem. Mas essa fantasia do lugar fundado, o qual é incessantemente refundado, é considerada uma semifantasia, visto que se deve aos dispositivos de adivinhação e prevenção. A partir destas estratégias é possível fazer com que ninguém duvide da realidade do lugar comum e dos poderes que o ameaçam ou o protegem, nem a realidade dos outros grupos. Nada permite duvidar desse mundo fechado e auto-suficiente com o qual se identificavam os mitos aproximados aos solo e que fundava uma singularidade.

A feira pode ser considerada um lugar onde se construiu uma história, costumes, modos de se portar na comunidade. Há a fantasia de que ser um lugar que nunca se acabará, já que muitas gerações já passaram por esse lugar. Porém essa fantasia não se sustenta diante das diversas ameaças de uma facção de pessoas que não toleram a feira, geralmente comerciantes locais que sentem ter suas vendas prejudicadas. Algumas feiras possuem sua associação de feirantes, mas nem todas se mantém e continuam na luta pelo bem comum, enfim, algo a se investigar caso a caso.

A segunda invenção nas pesquisas antropológicas Auge denominou de Ilusão do Etnólogo o qual remete a aquilo que se estuda, a uma sociedade transparente, que acaba encontrando a semifantasia dos indígenas, sendo considerada uma semi-ilusão. O etnólogo fica tentado a identificar aquele que estuda através da paisagem e espaço descoberto e que eles indicam. Mas os indígenas ignoram a história, sua mobilidade, a multiplicidade de espaços dos quais se referem e a flutuação de suas fronteiras, por sua vez de suas identidades. Tentam se apegar a uma estabilidade do passado.

A esse movimento de querer manter uma imagem identitária arraigada ao passado poderia se chamar de “tentação da totalidade”. Auge expõe duas ideias de totalidade do fato social: uma que se remete a Mauss e outra de Levi-Strauss. A primeira se ramifica em mais duas que acredita na totalidade ser a soma das diversas instituições ou também ao conjunto das diversas dimensões que compõem a individualidade de cada um. De acordo com Mauss, o homem médio na sociedade moderna seria qualquer um que não pertencesse a elite. Nesse sentido, a sociedade moderna possuiria um objeto etnológico dominável, localizado no tempo e espaço. Levi-Strauss vem afirmar que o fato social é algo totalmente percebido, cuja interpretação está integrada a visão que se tem de qualquer um, baseando-se na concepção do homem “médio” ou “total”, que é afetado por tudo e qualquer coisa. De qualquer forma, as ideias de totalidade e sociedade localizada remetem a uma transparência entre cultura, sociedade e indivíduo.

Uma função ideal para os etnólogos é caracterizar particularidades singulares, de forma que cada etnia fosse diferente da outra. Porém essa visão culturalista da sociedade tem limites, pois substantificando cada cultura singular se ignora tanto o caráter problemático (quando há reações ante às outras culturas e movimentos bruscos da história), quanto a complexidade da trama social e de posições individuais. Apesar das desvantagens em se afirmar uma postura identitária definitiva uma sociedade, não se deve ignorar a fantasia indígena e a ilusão etnológica que, na organização do espaço e constituição de lugares, compõe as motivações e uma das modalidades práticas coletivas e individuais no interior de um mesmo grupo social.

Voltando ao campo da feira como exemplo, a concepção que se construiu ao longo da história que se tem desse lugar já produz nos indivíduos algum afeto e os prepara para o que encontram nesse ambiente. Ao mesmo tempo, cada feira tem suas particularidades, seus modos de se organizar, as pessoas que a compõem, entre outras características que são compartilhadas numa comunidade. Essas características compartilhadas contribuem para se construir uma opinião generalizada sobre esse lugar, que ao mesmo tempo faz imaginar uma identidade contribui na união entre os que fazem parte, principalmente, os feirantes. Estes podem se sentir impelidos a organizar associações que os ajudem a manter esse lugar.

Auge vem afirmar que se constitui uma necessidade para as coletividades pensar a identidade e a relação, que para tanto deve simbolizar os constituintes da identidade partilhada (conjunto de um grupo), da identidade particular (determinado grupo ou indivíduo) e identidade singular (indivíduo ou grupo não semelhante a nenhum outro). Para fazer essa simbolização, um dos meios é o tratamento do espaço, que faz com que o etnólogo se sinta tentado a dar sentido do espaço ao social, como produzindo algo definitivamente. Esse é um percurso “cultural”, que se faz passar pelos signos mais visíveis, instituídos e reconhecidos da ordem social, o qual esboça um lugar comum.

A esse lugar comum Auge chama de Lugar Antropológico, que se caracteriza por uma construção concreta e simbólica do espaço, mas que não dá conta das contradições da vida social. Referir-se-ia a todos a quem designa naquele espaço. Este lugar seria um princípio de sentido para aqueles que habitam e um princípio de inteligibilidade para quem os observa, mas com uma escala variável. Auge acredita que existam pelo menos três características comuns que são identitárias, relacionais e históricas. A primeira pode ser representada como o lugar do nascimento como constitutivo da identidade individual, um lugar próprio, singular e exclusivo. A segunda característica diz do lugar que, para Michel de Certeau, tem seus elementos distribuídos em relações de coexistência, ao lado do outro, onde num mesmo lugar podem coexistir elementos distintos e singulares. Por último, o lugar histórico ao conjugar a identidade e a relação, definindo uma estabilidade mínima. “O habitante do lugar antropológico não faz história, vive na história” (AUGE, 1994, p.53).

Os percursos e recursos que desaparecem no lugar antropológico na realidade se transformam, pois já não falam mais de lembranças e recordações do tempo que passa ou o indivíduo que muda. Os habitantes se sentem turistas da intimidade desse lugar, espectadores de si a partir do momento que projetam os lugares que viveram através de celebrações, rituais e encenações. Essas transformações trazem uma série de consequências, como no fato do lugar antropológico ser ambíguo, uma ideia parcialmente materializada ou mitificada, quando varia a depender do lugar e do ponto de vista de quem ocupa. Além disso, uma série de marcas propostas e impostas pelo lugar quando desaparecem não voltam a ser preenchidas com facilidade. O etnólogo, sensível ao que observa, busca a proximidade do sentido, os signos.

A feira se encaixa e pode ser considerada um lugar antropológico, pois apesar das mudanças que carrega durante seu percurso histórico, diante das diversas gerações que passaram por ela, ainda se compõe um sentido, modos de experienciar a feira, um identidade que marca esse lugar. Aliado a essa construção identitária da feira, existem as contradições, as pesculiaridades de cada tipo de feira, a depender da localidade, dos habitantes que a compõem, dos feirantes que a organizam, de toda uma gama de fatores que não a tornam simples de se identificar, mas não deixa de promover uma ligação forte entre aqueles que fazem a feira.

Outra característica que pode ser constatada no lugar antropológico, de acordo com Auge, é o fato de ser geométrico. É possível percebê-lo em três formas espaciais simples que são aplicadas em dispositivos institucionais diferentes, que constituem as formas elementares do espaço social. Essas formas simples são a linha, a interseção de linha e o ponto de interseção que refletem nos dispositivos de itinerários, cruzamentos e centros os quais podem até coincidir parcialmente por não serem noções absolutamente independentes. Os itinerários são definidos como os locais de ajuntamento; já os mercados são pontos fixos que se encontram nos itinerários, funcionando como centro de atração. O centro de cidades são lugares ativos onde ficam espaços de maior movimentação como lojas, bares, hotéis, praça, sendo neste lugar que funciona a feira. O sistema rodoviário é que liga esses centros através de uma rede. Constrói-se dessa maneira uma complexidade institucional com esses vários espaços.

Já se sabe que a identidade e a relação estão no cerne de todos os dispositivos espaciais clássicos estudados pela antropologia. Auge vem afirmar que a história também faz parte dos espaços, pois também possuem duração. Além disso, as formas espaciais simples só se concretizam no e pelo tempo. Criam-se as condições de uma memória que se vincula a certos lugares e contribui para reforçar o caráter sagrado. Entende-se que a noção de sagrado está ligado ao caráter retrospectivo que decorre do caráter alternativo dos rituais.

Entre outros recursos que fazem menção a história do lugar existe o monumento que indica uma idéia de permanência, duração, continuidade das gerações. Cria-se uma ilusão monumental que permite a história não ser uma abstração. O espaço social possui muitos monumentos não diretamente funcionais que trazem a idéia de preexistência e que sobreviveram. Paradoxalmente, uma série de rupturas e descontinuidades no espaço representam a continuidade do tempo.

Pode-se considerar, de acordo com Auge, o corpo humano também uma porção do espaço, um espaço construído, hierarquizado, onde pode ser investido do exterior no plano da imaginação. O corpo seria então pensado como território, um lugar de culto. Nesse sentido o corpo centralizado se transforma em um monumento e dentro de um simbolismo político faz com que se expresse o poder da autoridade unificada. Este corpo simbolizado numa única figura soberana representaria as diversidades internas de uma coletividade social.

O soberano geralmente ocupa uma residência fixa, condenado a quase imobilidade, exposto no trono real, apresentado como objeto aos súditos. Percebe-se com isso uma passividade do corpo soberano. Mas existem outros corpos ou objetos, como o trono ou a coroa, que substituem o corpo do soberano para garantir o centro fixo do reino que o condena a longas horas de imobilidade. Interessante notar que justamente essa situação de imobilidade que reforça a perenidade da dinastia, que ordena e unifica a diversidade do corpo social. É através da identificação do poder num lugar fixo onde se abriga ou exerce como monumento ou representante que consta a regra do discurso político dos Estados modernos. A centralidade seria expressão mais aproximada para se pensar simultaneamente unidade e diversidade. Percebe-se que a metáfora geográfica perece dar conta da vida política que se quer centralizada.

Há nos espaços coletivos uma reinvindicação à profundidade histórica, bem como a abertura para o exterior, um equilibre o outro. Para tanto, vem-se colocando uma série de painéis que constituem uma espécie de cartão de visitas, que atraem o passante e turista, mas que só dá certo ao relacioná-los à história e a identidade arraigados na terra. Essa alusão ao passado torna mais complexo o presente. Entre os artifícios para acrescentar essa dimensão histórica tem-se os monumentos datados também se transformam em provas de autenticidade dessa história resgatada que provoca um interesse por si só. Além disso, tem os nomes de ruas, na maior parte das vezes são notabilidades da vida social e nacional ou grandes fatos históricos. Essa incessante referência a história provoca frequentes coincidências entre itinerários, cruzamentos e monumentos.

Mas a relação com a história está em vias de se artificializar, quando cidades se transformam em museus porque surgem desvios, rodovias e trens de alta velocidade que convidam a ignorar as marcas identitárias da terra e vestígios da história. Esse contraste ou paradoxo marcado por estradas de cidades, grandes conjuntos, zonas industrializadas e supermercados são locais onde existem os painéis que convidam a visitar monumentos antigos. Os locais de passagem ou grande aglomeração efêmera de sujeitos são usados a fazer referência a aquilo que dura, que possui história. Multiplicam-se as referências às curiosidades locais que deveriam nos reter, mas que na realidade só faz apenas alusão ao tempo e lugares antigos dizendo algo daquele espaço presente.

terça-feira, 5 de abril de 2011

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI: Livre adaptação de uma conferência sobre o cinema de Glauber Rocha

Acho que foi lá pelos idos dos anos 70 ou 80, quando Glauber Rocha esteve em Aracaju, no então Cine Vitória, no centro da cidade, mais ou menos onde é hoje a sede das Lojas Americanas. Casa lotada, o filme que o polêmico cineasta veio lançar em terras de Serigy era Terra em Transe. No elenco, só de Paulos tinham três de peso: o Gracindo, o Autran e o César Peréio. Ainda tinha Darlene Glória, Danuza Leão, Hugo Carvana e José Lewgoy, tudo para abrilhantar a mostra do filme e lotar ainda mais o Cine Vitória. Clima de entrega do Oscar!
O jornalista e crítico sergipano de cinema, Ivan Valença, era um dos que aguardavam a chegada de Glauber Rocha ao Cine Vitória, para iniciar a exibição do filme. Como o atraso foi ficando pra lá de qualquer tolerância (na época, o Cine Vitória não tinha ar condicionado, só ventiladores laterais!), Ivan Valença resolveu ir até a sala de projeção pra ver se estava tudo OK, para que, quando chegasse o Glauber, o evento começasse imediatamente. Para surpresa do Ivan, segundo seu próprio depoimento em uma conferência anos depois, a agonia era ainda maior na sala de projeção. É que os rolos (latas) dos filmes haviam chegado sem numeração – três ao todo. A dúvida atroz era: qual é o rolo número 1, o número 2 e o número três? Para que o filme fosse mostrado na “sequência lógica”, era preciso saber a ordem das latas, sem o que seria muito difícil “acertar” na projeção. Bem que tentaram colocar um pedacinho do filme de cada lata contra a luz, mas não adiantou muita coisa; o negócio, então, era esperar o Glauber chegar.
Agonias aumentando, a essa altura já além do limite, quando finalmente chega Glauber Rocha! Chega na tranqüilidade de sempre, aquele jeito meio zen, meio “acordei agora” ou “ainda estou pra lá de Bagdá”, e pergunta: Cadê o filme? Não chegou?
Todo mundo sobe correndo as escadas da sala de projeção e, na subida, vai o Ivan explicando:

- Glauber, é o seguinte... o pessoal tá aqui há mais de uma hora esperando, o calor tá insuportável, e a gente estava aflito pra você chegar, para nos dizer qual é a lata ou o rolo de filme que deve ser colocado primeiro na projeção.

- Então o filme chegou? Por que não começaram a projetar ainda? Estavam me esperando? Vocês não me conhecem mesmo, não é? Não é pra me esperar!

- Não, Glauber, não se trata disso. Estávamos esperando por você sim, mas não apenas pela sua presença. É que ninguém sabe qual rolo de filme colocar primeiro, só isso! Como é você o cineasta, estamos aguardando para você nos dizer; aí sim começamos a projeção.
Glauber Rocha, entre um sorriso e uma cara feia, completou:

- Gente, isso não tem a menor importância! Se estão esperando um filme com começo, meio e fim, e com uma história bonitinha para que o mocinho devore a mocinha, ou que o José Lewgoy mate o Paulo Gracindo a golpes de facão, desistam! Eu não faço cinema com enredo marcado, nem cinema por encomenda. Meu cinema é para sentir o que o cinema tem de sensação, de emocional, de som, de imagem sem foco, por aí vai. “Já vi que vocês não entendem porra nenhuma de cinema!”, no arremate típico de Glauber.
Diante da pequena platéia na sala de projeção, olhando para ele ainda sem entender direito, veio a finalização:

- Ah, querem mesmo saber qual é a ordem dos rolos de fita? É a seguinte: peguem a primeira que estiver à mão e coloquem para projetar. Depois uma outra qualquer e, por fim, a última. Se tiverem tempo, invertam a ordem e apresentem o filme de novo. Vocês vão ver que não faz a menor diferença!

Foi difícil entender de primeira. Mas algumas vezes depois de ver o filme em várias ordens, deu pra entender o que é que o cineasta estava mesmo querendo dizer. O cinema de Glauber Rocha não é o de Hollywood, nem é o cinema indiano, nem o francês. É o cinema de Glauber, talvez uma das maneiras mais próximas de entender, no mundo psíquico, o que quer dizer cinema! Não é para ter um enredo bonitinho; é para ter uma sensação direta e profunda.


Mário Celso N. Andrade - UFS/DPS

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Implicações na pesquisa antropológica por Auge

RESENHA Não Lugares – Marc Auge

O Próximo e o Distante

O estudo de espaços tem sempre uma gama de fatores relevantes e complexos que fazem jus a diversidade do que os constrói. Pensando na pesquisa de lugares, Auge afirma que a etnologia testemunha os fatos diretamente na atualidade, entrando em contato com a enunciação e o enunciante. De outro modo, o antropólogo recorre aos testemunhos dos etnólogos e apesar do interesse pela história não é um historiador.

Na inserção no campo da feira há o contato com uma diversidade de elementos do cotidiano desse lugar que não se refere a uma enunciação contínua, mas descontínua com múltiplos enunciantes, por isso a variabilidade de informações a serem captadas.

Existe para Auge a etnologia do próximo que guarda uma dupla questão: saber se tem a mesma sofisticação, complexidade, conceitualização que a das sociedades distantes; saber se os fatos, as instituições, os modos de reagrupamento e circulação específicos do mundo contemporâneo são passíveis de um olhar antropológico. Existem uma enorme quantidade de elementos de interação, além de todas as formas institucionais pelas quais é preciso passar para apreender a vida social. Realmente os desafios são muitos ao interagir com um espaço relativamente novo, estranho ao pesquisador, onde diversos fatores podem colaborar ou atrapalhar na investigação/observação do lugar, como fatores climáticos, emocional, relacional, entre outros.

No entanto, é essencial não confundir a questão do método com a do objeto (não entendi como se confundi e no que essa confusão repercute). A investigação etnológica envolve os aspectos do método (contato efetivo com interlocutores) e representatividade do grupo (falam de quem não vemos). O objeto da antropologia se refere a capacidade de generalização, elaborando hipóteses gerais a partir de inspirações particulares. Essa generalização diz respeito ao método, não ao objeto. Mas a questão do método não poderia ser confundida com a do objeto, pois o objeto da antropologia não faz descrição exaustiva.

Vale a pena distinguir método e objeto afim de se ter clareza ao o que se pretende estudar, o que ou quem se pretende entrar em contato, para finalmente saber “como abordar”, o que podemos afirmar sendo este “como abordar” o método. Poder distinguir método e objeto demonstre a riqueza do trabalho de pesquisa, a partir do momento que se descreve os desafios enfrentados, as dúvidas, percalços, questões, tudo que relate a autenticamente o estudo.

De acordo com Auge, o etnólogo de campo tem uma atividade de agrimensor social, pois trabalha sobre o presente e produz um universo significativo. Para tanto, a preocupação do etnólogo passa pela história, bem como pela antropologia ao situar o objeto de pesquisa e avaliar sua representatividade qualitativa. É uma preocupação diferente dos historiadores da micro-história que, além de questionar a representatividade dos casos que analisam, recorrem a pistas, indícios. O etnólogo tem a vantagem de trabalhar com o presente, pois parece ter mais meios de ver mais longe do que imagina. Por isso que ao estudar um campo como a feira, há o momento de observar os fatos que ocorrem no momento e situá-los como tal, mas o mesmo tempo investigar a história do lugar e a cultura que ele carrega.

Uma questão importante a respeito da contemporaneidade não é saber como se pesquisar um grande conjunto, mas saber se há aspectos da vida social contemporânea originado de uma investigação antropológica, mais especificamente que observam o distante. Nesse caso convém chamar a atenção para a precedência do objeto muitas vezes levantada por esse tipo de investigação, mas que não se encaixa com a atualidade. Isso porque são muitos os centros de interesse que surgem ou mudam, fazendo com que não seja possível um efeito cumulativo. Não se trata de evolução (interpretação minha da última frase).

Compara-se esse interesse em buscar novos objetos com as ciências da vida e ciências da vida social, que muitas vezes podem mudar os modos de agrupamento e hierarquização ou complicar os objetos que inicialmente trabalhavam. De qualquer forma, abordar novos campos reflete mais a uma curiosidade do que a uma necessidade.

Auge tentando compreender a complexidade que compõe os espaços explica que na pesquisa antropológica existem duas ocorrências que devem ser levadas em consideração. Uma é a Questão do Outro, que se refere a aquilo que se pesquisa, ao que aparece na história e se distingue do presente, tendo vários sentidos.

A antropologia aborda todo tipo de “outro” – outro exótico, outro dos outros, outro étnico ou cultural, outro social, outro interior, outro íntimo. Este outro íntimo corresponde a uma individualidade absoluta, onde se apreende a uma alteridade complementar. Demonstra-se, então, uma relação entre uma individualidade individual e coletiva. Pode-se afirmar, para o autor, que se a antropologia se interessa pela representação do indivíduo não é só por ser uma construção social, mas por ser uma representação do vínculo social. “O social começa com o indivíduo e o indivíduo depende do olhar etnológico”.

Então, ao tratar de um grupo de pessoas, estaria se estudando não só a vida individual desses personagens, como a história de vida de cada um e da coletividade. Junto a essa história coletiva se resgata também a modo como essas pessoas se relacionam, o que construíram juntas, o que existe entre elas, o que as faz continuarem juntas. Na feira é possível pensar porque feirantes e compradores continuam a se encontrar semanalmente, como convivem juntos, porque continuam ali naquele ambiente. Todo esse entendimento produz uma representação do modo de ser nesse lugar que é peculiar, individual.

Sobre individualidade, Marcel Mauss afirma que é representação da cultura ou padrão de uma sociedade. No estudo da totalidade, da análise do fato social total, esse autor acredita que a experiência é duplamente concreta, quando localizada no espaço-tempo, bem como num indivíduo qualquer, que ao mesmo tempo se identifica numa sociedade na qual ele expressa.

Nesse sentido, a concepção de cultura e individualidade são consideradas como expressões recíprocas, que aparentam uma trivialidade, um lugar comum. Porém, desconfia-se das individualidades demonstradas estatisticamente, absolutas, simples, substanciais. Nem culturas, nem identidades constituem totalidades acabadas, pois só se exprimem sua totalidade de certo ângulo.

No que tange os objetos de pesquisa, não precisa considerar todas as implicações lógicas que os constituem, mas há objetos que consideram as transformações, mudanças, distanciamentos, iniciativas e transgressões. No final faz contas, a pesquisa antropológica tem por objetivo interpretar a interpretação que outros fazem de outros nas diversas circunstancias.

Outro ponto ressaltado por Auge sobre a pesquisa antropológica é a questão do mundo contemporâneo a qual se refere às transformações aceleradas no mundo, o que repercute numa reflexão renovada e metódica sobre a categoria de alteridade, ou melhor dizendo, a diferença, a mudança. Essa visão difere de uma ideia comum da antropologia que parece se voltar a horizontes mais familiares. É possível chamar a esse conjunto de transformações de “supermodernidade”. Quanto a essas grandes transformações no mundo, observam-se três figuras de excesso.


A primeira se chama Superabundância Factual que trata da questão do tempo, o uso que se faz dele, de como a ideia de progresso parece defasada, afinal os fatos acontecem e quando menos se espera já passou. Esse movimento traz o fim das grandes narrativas, dos grandes sistemas de interpretação, o que coloca em dúvida o fato da história ser portadora de sentido.


Há, então, uma dificuldade de fazer do tempo um princípio de inteligibilidade e de identidade (dar alguma definição, fechamento). Demostra-se que vem ocorrendo o desaparecimento de referências, dos grandes temas, do que aparece publicamente, do que parece universal, mas que vem de uma verdade particular. Isso se deve a aceleração da história, da multiplicação de acontecimentos, a superabundância de informações. Os historiadores consideram os acontecimentos um problema e preferem a história como um pleonasmo entre um antes e um depois.


Essa nova dinâmica da história, de inúmeros acontecimentos, repercute em crises latentes que afetam na vida política, social e econômica que faz sentir a necessidade diária de dar sentido ao mundo, ao presente, ao excesso (superinvestimento de sentido). O tempo, que passa a estar sobrecarregado de acontecimentos, provoca uma necessidade maior de dar sentido. Percebe-se uma dificuldade de pensar sobre o tempo devido a essa superabundância factual, também de pensar o presente por não se compreender o passado próximo.


Outra figura de excesso é a Superabundância espacial que se caracteriza pelo excesso de espaço, “encolhimento do planeta”, resultado de mudanças de escala, pelas inovações tecnológicas que promoveram a conquista espacial, a invenção de meios de transporte rápidos. Tudo isso faz com que haja uma visão instantânea ou simultânea do acontecimento.


Esse excesso de espaço ou superabundância espacial faz com que se produza diversos universos simbólicos que se substituem, são parcialmente fictícios, fechados e trazem antes um meio de reconhecimento do que conhecimento. Cada universo constitui um signo composto por códigos que constroem espaços significantes, totalidades plenas, que constituem sociedades identificadas com culturas concebidas como universo de sentido dos quais indivíduos ou grupos são apenas expressões que se definem pelos mesmos processos de interpretação. Essa concepção ideológica é que existe entre a maioria dos etnólogos, mas que a supermodernidade desmancha.


Todas essas mudanças da modernidade – de mudanças de escala, multiplicação de referencias e aceleração dos meios de transportes – faz com que surjam, principalmente nas grandes concentrações urbanas, a multiplicação daquilo que Auge chama de “não-lugar” que se opõe a noção sociológica de lugar que está associada a uma cultura localizada no tempo/espaço. Os não-lugares são instalações necessárias a circulação acelerada de pessoas e bens, entre elas os meios de transporte e centros comerciais. Percebe-se um aspecto paradoxal da unidade do espaço terrestre e o clamor de particularismos.


Percebe-se os deslocamentos dos parâmetros provocados pelas superadundâncias factual e espacial trazem dificuldades da mesma ordem tanto para os historiadores como para a pesquisa antropológica. Tem que aproveitar da experiência distante de descentrar o olhar para melhor observar e compreender o mundo da supermodernidade que ainda não se conseguiu aprender a olhar.


Por fim, a figura da Individualização das referências que diz respeito de uma tendência da sociedade moderna da interpretação de por si e para si as informações que se apreende, produzir expressões particulares, uma individualização dos procedimentos.


As histórias individuais são mais explicitadas na história coletiva, ao mesmo tempo, há uma grande flutuação dos pontos de identificação coletiva. Auge afirma que a produção individual de sentido é mais do que necessária (Por que é necessária?), e que é transmitido por todo um aparelho publicitário e linhagem política, onde uma das ideias principais é das liberdades individuais. Poderia se caracterizar as antropologias como sistemas de representação nos quais são informadas as categorias da identidade e da alteridade.


Levanta-se a questão: como pensar em situar o indivíduo? Como pensar nisso diante de tantas opressões globais as quais o indivíduo sofre na sociedade moderna, principalmente na área urbana? Indaga-se, nesse sentido, ora a uma multiplicidade dos indivíduos médios, ora a média dos indivíduos.


Freud acreditava que era possível tornar a si mesmo como objeto de um processo reflexivo, de observar em si mesmo os mecanismos e efeitos da alienação. Essa é uma prática da auto-análise. Para os antropólogos, a questão remeteria a considerar a subjetividade daqueles que observam, daquele que se estuda, uma tentativa de etno-auto-análise. A individualização das referências leva a se prestar atenção nas singularidades de toda ordem, mas que se contrapõe paradoxalmente a aceleração e redução rápida processos de relacionamento a expressões homogêneas.



As condições de realização de uma antropologia contemporânea, para Auge, deve ser deslocada do método para o objeto (Não entendi porque essa afirmação). Deve-se estar atento às mudanças que afetaram as grandes categorias por meio dos quais os homens pensam a sua identidade e suas relações recíprocas. As três figuras de excesso pelas quais se tentou caracterizar a situação da supermodernidade (superabundância factual, superabundância espacial e individualização das referências) permitem apreender as mudanças sem ignorar as complexidades, as contradições e inultrapassável.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Carta Anônima

Faz tempo que não escrevo pra mim mesma como se fosse para alguém. Qualquer pessoa que possa ler nessa “mal traçadas palavras” algo de mim, meus pensamentos, angústias, enfim, um pouco de minha vida. Já foi um hábito para mim escrever quando passava por algum momento muito delicado meio como um modo de desabafar o que estava por dizer como se fosse para dizer a alguém específico o que queria.
Agora não penso em dizer nada de tão importante, ao mesmo tempo acaba tendo algo de mim, porque de algum modo escrever é expor algo de si, ao mesmo tempo também pode ter algo de outro ou qualquer pessoa. De você que está me lendo, quem sabe não se reconheça nas divagações que pretendo escrever. Aliás, perdoe a letra ilegível, porque é um risco de hoje em dia para quem está tão habituado a digitar, teclar, apertar letrinhas, organizar bonitinho seus textos e pensamentos. A gente ou eu mesma que muitas vezes só escrevo de vez em quando sinto minha mão doer com o mínimo esforço de querer escrever ininterruptamente.
É tão engraçado ver que os hábitos do mundo mudaram, as coisas se transformaram, os modos de fazer as coisas se reconfiguraram, mudam o jeito, mas continuam. Por exemplo, falar de si, falar dos outros, pensar no mundo, na vida. Nesses pontos nos encontramos, eu, você e todo mundo.
Falar de si quase todo mundo quer, gosta, precisa. Externar os sentimentos, aflições, dúvidas, alegrias, tristezas. Essa extrema necessidade de falar de si requer confiança e intimidade como antigas cartas entre amigos e amantes do séc. XVIII. As vezes nem tanto de intimidade, quando contamos algo de alguém circunstancialmente, que estava junto.
Ou nos blogs onde se fala de um tudo de si e de qualquer coisa e todo mundo vê. Os blogs meio que substituíram os antigos diários onde se guardavam os segredos mais escondidos. Não sei se nos blogs as pessoas contam seus segredos... acho que não. Apesar de que o lema da contemporaneidade é a exposição de si nos orkuts, twitters, fotologs, etc, me parece que os segredos ainda irão existir e ainda serão escondidos como algo que só fica para si ou alguém que se confia muito.
Aliás, talvez por isso mesmo exista aquele a quem possamos contar tudo graças a uma relação contratual e ética de profissão: o Psicólogo. Profissãozinha muito doida se for pensar que aquele que depositamos nossa confiança e nos abrimos não é o nosso amigo, não passa de um contrato! Vai nos tratar, nos ajudar a pensar, cutucar feridas, consolar as tristezas, enfim, um depositário de emoções que não pode ser seu amigo, caso contrário, não pode ser seu psicólogo.
Essa idéia que recorremos ao psicólogos para trocar idéias sobre si me faz pensar no quanto parece ser raro encontrar amigos, confiar nas pessoas. O amigo poderia até assumir essa função do psicólogo, em certa medida, mas claro que em nem todos os casos. Casos patológicos nem pensar. (amigo não é especialista, mas ajuda um bocado).
Ainda divago muito quanto a saber a quem podemos considerar amigo. Amigo virou palavra banal, mas as relações se tornaram cada vez mais esporádicas, casuais, superficiais. Não gosto de generalizar, longe de mim. Poderia afirmar que essas relações rasas sejam um tendência. As pessoas tem se tornado cada vez mais desconfiadas, principalmente com o capitalismo, em que a vontade de sair no lucro, o interesse nas relações, enfim...Pode ser que esteja expondo aqui meu ressentimento com minhas amizades frustradas.
Nunca entendi muito em que medida as pessoas preferem ficar mais com umas do que com outras. Formação de grupos, afinidades, proximidade, faz com que excluam os outros sem quê nem pra quê. Hoje até compreendo que tudo isso seja resultado de todo um encadeamento de fatos historicamente construídos que de alguma forma influenciaram o fazer humano. Mesmo assim a dor permanece.
Mas não podemos achar que somos vítimas da história, que não temos condições de mudar alguma coisa, se não no macro, no micro, se não no micro, em si e ao redor de si, o que já é muito. Ser co-responsável pelas coisas que nos acontecem... muitas coisas são pelo acaso, outras são consequências de nossos atos, nossas decisões. Como é difícil decidir coisas, tomar decisões, fazer planos, traçar metas, se definir. Saber que algo que se decidi vai acarretar algo, mesmo que depois se mude de idéia, não é a mesma coisa caso tivesse tomado aquela decisão antes. O tempo passou... Queremos recuperar o tempo perdido de uma decisão mal tomada, mas isso não existe. (O tempo não para, já dizia Cazuza).
E o pior, saber que nossas decisões afetam outros, mesmo que não queira, mesmo indiretamente. Já pensei até que o melhor seria viver sozinho, não se relacionar com ninguém, não viver obrigação com ninguém. Mas isso seria impossível, afinal só se vive em relação, com tudo e com todos. Assim, devo ser responsável com aquilo que faço, ter cuidado comigo e com os outros ao meu redor. Porque o que eu faço comigo interfere nos outros. Então, o que faço de mim?
Nossa, as vezes me dou conta de quanta coisa tenho que pensar, em mim, na minha família, nos amigos ou colegas, no namorado, no animal de estimação, no animal de rua, no mendigo, nos necessitados, na rua, na universidade, no mundo, na vida. Pensar em tudo não como algo qualquer, mas entender o que passa, porque acontece, estranhar o cotidiano, problematizar as coisas mais simples, se libertar do estado de “menoridade” que faz aceitar a “autoridade”, buscar a diferença.
Mas todo esse movimento de pensar fora do automático, de problematizar e estranhar as coisas requer um esforço, cansa. Imagine então estranhar tudo o tempo todo? Olhar ao redor todo dia e se questionar de tudo e de todos, em qualquer lugar, quando então descansar? Será que devemos nos dar descanso? Descansar é o mesmo que se deixar iludir, se conformar? Afinal viver é se cansar, não é? Porém, tem vezes que sinto vontade de parar, parar de pensar, não pensar em nada.
Nossa, agora mesmo percebo o quanto divaguei, o quanto escrevi, o quanto oscilei em meus pensamentos, que podem ser de outros também, que podem ser seus. Aqui nessa carta troco com você um pouco de mim, que tem um pouco dos outros. Poderia divagar sobre tantos outros temas, mas já estou um pouco cansada. Quem sabe num outro momento, numa outra oportunidade. Mas obrigada por me ler, obrigada por chegar até aqui na carta e compartilhar de um pouco de mim. Acredito que tudo que lemos, escrevemos, trocamos, reverbera em nós, nos outros.
“A carta torna o escritor “presente para aquele que envia”...”Escrever é, portanto, ‘se mostrar’, se expor, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro” (Foucault, p.156, 2004).
Até breve! Inté!
Ass.: Alguém...Ninguém... Quem sabe?!