segunda-feira, 10 de maio de 2010

Da Fabricação à Realidade (II)

Um livro em meu colo; um computador pessoal em minha frente; uma cadeira a me sustentar; uma mesa, ao longe, sob uma pilha de textos que - preguiça dantesca! - tenho de ler ainda hoje. Todos estes objetos que me cercam são, ao mesmo tempo, "fabricados" e "reais". Fácil entender isso. Mas o problema que o Latour nos apresenta, no tocante aos objetos científicos, não se nos afigura tão simples assim. Sua tese paradoxal: é, justamente, por serem artificiais e fabricados que tais objetos científicos adiquirem uma existência autônoma independente desta mesma artificialidade e fabricação!
A aparente viagem na maionese empreendida por Latour torna-se ainda mais paradoxa quando percebemos duas epistemologias contraditórias se justapondo no enunciado acima; a saber, um Construtivismo e um Realismo. Pra melhor preparar nossa salada, uma pitadinha a mais de Pasteur e de seu ácido lático não nos fará mal. Um experimento, como já coloquei em postagem anterior, é um ato - metáforas teatrais e musicais são válidas, aqui - montado pelo cientista/diretor/humano/Pasteur para fazer o objeto/atuante/não-humano/fermento aparecer por si mesmo. O labor e a oração do cientista fazem com que um outro plano de referência - uma transcendência absoluta, derivada dessa imanência relacional - se desenvolva. A referência do cientista-diretor delega, através de sua atividade, existência à referência do objeto-ator.
Esse é o momento em que invocamos nossos palavrões mais escabrosos diante de tão confusa explicação! É aqui que nos perguntamos: qual o problema da distinção sociedade-natureza, epistemologia-ontologia, palavras-coisas? Pra que precisamos dispender tanta energia intelectual nessa colcha de retalhos filosófica que o Latour nos traz se, ao que parece, o acordo moderno que distingue história de realidade é bem sucedido em trazer felicidade a todos nós? Por que não nos damos por satisfeitos com a clássica solução do paralelogramo, que considera o experimento científico como a resultante de dois eixos, o dos estados de coisas e o das tendências e teorias?
Segundo esse modelo, se nenhuma força for exercida pelo eixo das humanidades, teremos acesso ao estado primeiro das coisas. Se os cientistas acreditam nisso não sei, mas o seu Luís - afirma Latour - certamente não cairia nessa, pois sabe a trabalheira que deu tornar visível seu fermento e fazê-lo circular entre seus colegas da Academia. O contrário, caso a força exercida pelo eixo das coisicidades fosse nula, resultaria em que nossas sentenças sobre o mundo seriam configuradas unicamente por nossas teorias e paradigmas legadas pelo social. Pasteur, mais uma vez, não daria muita bola para essa assertiva. Como tão lindamente formulou o Latour, Pasteur autoriza o fermento a autorizá-lo a falar em nome dele. Nossa dificuldade em entender o encaminhamento de Pasteur está na relação de identidade que o próprio estabelece entre duas sentenças que consideramos contraditórias: "o fermento foi fabricado em meu laboratório" e "o fermento independe de minha fabricação" são sinônimas para o nosso amigo Luís! Um realismo construtivista nasce aqui!
Deixamos escapulir, uma vez mais, aquele palavrão inicial. Confusão dos diabos esse Latour causa com seus jogos de linguagem! Uma confusão esclarecedora, no entanto, assim como aqueles aforismos incompreensíveis que um sensei lança ao seu neófito gafanhoto, na esperança de que a flecha atinja seu espírito. Para melhor se fazer entender, Latour utiliza de metáforas outras, para além do paralelogramo. Fala do teatro, para mostrar os dois eixos operando ao mesmo tempo; mostra a metáfora do fetiche, que explica o porquê de esquecermos o trabalho que realizamos para completar a obra e de cedermos à sua autonomia; constrói um modelo ótico, visto fixarmos o olhar em coisas independentes; discorre sobre indústria, para falar da realidade como transformação; apresenta o modelo da trilha, colocando toda mediação em termos daquilo que torna possível o acesso às coisas; e, finalmente, apresenta a articulação - sua melhor metáfora - que enfatiza a independência da coisa, revela os dois eixos ao mesmo tempo, toca no experimento como acontecimento histórico e liga a realidade à quantidade de trabalho!
Não obstante, todas estas analogias bonitas estão erigidas no modelo linguístico das assertivas, no qual há o mundo mudo dum lado e o humano falador doutro. O que o Latour propõe não é mais uma engenharia ou metáfora para suprir o vazio existente entre estes dois mundos, mas um chamado "modelo de proposições", proposições estas que não são nem palavras nem coisas, nem um intermediário das duas. Proposições são atuantes (em exemplo, Pasteur ou seu fermento ou seu laboratório ou a Academia...)! Não são substâncias mudas com uma natureza, mas "ocasiões" de contato entre diferentes entidades, que permitem às mesmas modificar suas definições no curso dum evento (em exemplo, um experimento).
No modelo canônico das assertivas, referenciar é fazer a assertiva corresponder a um estado de coisas, embora criar uma tal semelhança seja impossível. A palavra "fermento" não fermenta! Já no modelo de proposições, não se trata de criar uma ponte por sobre o abismo sujeito-objeto, mas de articular (e aqui nos reapropriamos da metáfora da articulação, mas posta sobre um novo terreno). Aqui - espero que já tenham percebido - o Latour apresenta uma lida totalmente diferente para com a linguagem. Se nos aparatos linguísticos tradicionais a mente humana está cercada de coisas mudas, no novo modelo a articulação se torna não uma função humana, mas uma propriedade das entidades e coisas mesmas, ou melhor, das proposições! Quando Pasteur fala, ele não enuncia em palavras a natureza ontológica do fermento, mas "propõe" que consideremos aquele subproduto duma reação puramente química uma entidade viva e autônoma.
Os termos que o Latour utiliza - ação, testes, evento, articulação - ganham nova significância com o modelo das proposições. É graças à artificialidade do laboratório que o fermento de ácido lático se torna articulado, ganhando estatuto próprio devido à Pasteur, seus experimentos, alguns artigos seus, artigos de outros acadêmicos, ações e reações mil. Articular proposições, aqui, não é simplesmente falar. Nós falamos justamente porque as proposições do mundo são, em si mesmas, articuladas! Confuso? Não mais! Complexo? Talvez! Tal modelo coloca uma relação inteiramente diferente da visão tradicional do homem com o mundo; modelo este que, embora de difícil digestão, é muito mais exato no tocante a capturar a atividade científica que a simples correspondência estéril entre um discurso e um estado de coisas de um mundo "lá fora"...
LATOUR, Bruno; “Da Fabricação à Realidade";
In: A Esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos; trad. Gilson C. C. de Souza; Bauru, SP: EDUSC, 2001; pp. 148-167.

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