terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Prezada Senhora Ana Cecília

Tenho, pois, de escrever uma correspondência e quis o destino, isto é, o sorteio que foste tu a minha destinatária. Na verdade, o que escreverei aqui certamente escreveria para quaisquer destinatários, porque o que importa é escrever, “expor-se, fazer aparecer seu próprio rosto perto do outro” (DE V, p. 156). Também importa ser lido, também importa saber quem vai ler, mas nesse caso o universo não se limita a ti. Quaisquer sujeitos presentes no dia 10 de novembro de 2010 na aula foucaultiana poderiam receber esta carta. Então, vamos lá.
Sobre o que escreverei? Sobre qualquer coisa, diriam alguns. Ora, mas não existem quaisquer coisas; todas as coisas têm a sua verdade, ainda que inconstante, que transitória. E atrás dela correram, por muitos séculos, diversos cientistas. Alguns deles sustentaram tê-la e morreram sem saber que “a própria verdade científica de hoje não passa de um episódio” (DE II, 1985, p. 361). Aliás, para construir a história dos viventes, foi preciso buscar estudar a morte, o feio e o erro; não para que a partir daí se chegasse à vida ou ao bonito ou ao certo. Mas para que a partir daí se percebessem as relações entre uma coisa e outra, se percebesse que no emaranhado em que elas estão não se fazem opostas, não se fazem melhores ou piores; o que importa é a relação que se estabelece entre as pessoas, entre elas e os objetos.
Toda relação é um entretenimento. Sem entretenimento não se vive. É um jogo de poder. Um jogo que não dispensa ninguém. Tão logo nascemos, entramos no mundo da linguagem e, então, começou a partida. Uma partida em que cada componente é singular; o contingente é a arena em que se joga e o que move o jogar, além da busca pela verdade, é saber que o tempo do jogo é o presente; não se joga para ganhar ou perder, joga-se para simplesmente viver. Isto pode parecer pouco, mas é o destino de quem mergulhou no mundo da linguagem e conseguiu emergir, ou seja, constituir-se como sujeito. O mundo é feito de “coisas ditas”. O sujeito é tecido no discurso, entrelaçado por ele, e se faz discurso, pois, efetivamente, o sujeito se pronunciará por meio das negações, das súplicas, das dúvidas, etc.
E o discurso de onde vem e para onde vai? Talvez, ele não vá nem venha, pois está aí por todo o sempre na história: “não se pode dissociar o mundo histórico em que vivemos de todos os elementos discursivos que habitaram esse mundo e ainda o habitam” (DE III, p. 404). Constituímo-nos de linguagem e por meio da apreensão que fazemos dela nos expressamos e nos inserimos nas centenas relações de poder; assim em meio a elas abriremos resistências. Nas relações de poder há submissão, entrega, mas há acima de tudo, na repetição dessas relações, resistências, escapes. Essa agitação leva o sujeito a emitir “enunciados que serão considerados verdadeiros” (DE IV, p. 233). Verdadeiros porque foram ditos, ainda que inventados. Afinal, o que conta é “saber o que somos nesse tempo que é o nosso” (DE V, p. 301).
O que somos?
Não somos substância. O sujeito “é uma forma, e essa forma nem sempre é, sobretudo, idêntica a si mesma” (DE V, p. 274). Somos sujeitos que entramos em um ou outro jogo de verdade. As relações que vivenciamos são diversas e distintas; “móveis, reversíveis e instáveis”, logo, fazem-nos sujeitos “com diferentes formas”, imbuídos de poder e de liberdade. Por meio da liberdade é que nos posicionamos diferentemente de acordo com o que exige a história que nos cerca, as contingências que nos surpreendem. Enfim, constituímo-nos plural. Se o mundo fosse um objeto estático, mesmo assim, o homem agiria em relação a ele de modo dinâmico pois o homem se deslocaria em torno desse objeto, olhando-o diversas vezes em circunstâncias completamente distintas. Imagina que o mundo gira, o homem gira, somos uma roda viva.
Veja o que ocorreu em nossas aulas foucaultianas. Quantas rodas de conversa foram feitas, quantas promessas de discutir o texto foram cumpridas e descumpridas, quantas divagações, quantas balas de banana, quantas revelações. Quem tinha o domínio da palavra? Quem direcionava as aulas? Quem se esquecia de ler o texto para a aula? Quem se calava?
Percebeu? Todos fizeram tudo, porque as aulas giravam. A depender da rotação você falava mais, falava menos, não falava. E daí? Numa relação de liberdade e ética, todos estavam construindo a longa escrita de si. A compreensão do Foucault, mas não a compreensão única de um mestre dotado do saber. Chegamos até a duvidar da verdade do Foucault!! Chegamos até a fingir ser o “filósofo mascarado” para que no fingimento escrevêssemos as nossas verdades e mentiras momentâneas!!
Por fim, Cecília, tenho de parar e contestando o início da carta, eis que escrevo algo que é exclusivamente para você, isto é, para mim e para você: “a vida só é possível reinventada”!

Até breve,

Quem assina a carta?


Por ora, sou Herculine Barbin. Por quê? Porque sou homem e sou mulher, verdadeiro e mentiroso, escritor e leitor, ateu e crente, político e nefelibata, rico e pobre, sadio e doente, bonito e feio, forte e fraco; enfim, sou Hércules Barbie.

Nenhum comentário: