domingo, 25 de março de 2012

Aula de 06 de janeiro de 1982, 2ª hora

Podemos chamar de filosofia uma forma de pensar que busca, sobretudo, determinar as condições, possibilidades e limites do sujeito em seu acesso ao que é verdadeiro. Podemos, também, nomear como espiritualidade todo um conjunto de exercícios e de práticas que transfiguram o sujeito, fazendo-o "pagar um preço" para ter acesso a esta verdade. Por toda a Antiguidade, o tema da filosofia ("como ter acesso à verdade?") e as questões espirituais ("quais são as transformações no ser mesmo do sujeito necessárias para ter acesso à verdade?") são duas problemáticas que nunca foram abordadas em separado (Aristóteles de Estagira é exceção). Houve um momento, no entanto, em que o "acesso à verdade", tornado desenvolvimento autônomo do conhecimento, desvinculou-se dessa exigência de transformação do sujeito. O rompimento entre os dois elementos, constantemente examinado pelo lado da ciência, examinado como um movimento de cientifização do saber, tem sua história investigada por M. Foucault pelo lado da teologia.

Ao adotar a fé como vocação universal do sujeito - isto, a partir do século V - o cristianismo funda um sujeito do conhecimento que tem em Deus seu ponto de saber e realização absolutos, seu modelo e seu criador; a correspondência Deus-Sujeito, aí gerada, desprende o pensamento das condições de espiritualidade que o acompanhavam, visto que ao cristão basta crer, e não mais transfigurar-se asceticamente para ser arrebatado pela verdade. O tal desprendimento não se deu, em abrupto, com o aparecimento da ciência moderna. Aqui, nota-se, não havia oposição entre ciência e espiritualidade (vide as práticas de conhecimento espiritual, os saberes esotéricos, a alquimia), mas entre pensamento teológico e exigência de espiritualidade, a grande tormenta pela qual o cristianismo teve de atravessar, tormenta que teve o seu ponto alto em Descartes. Muito da filosofia do século XIX  (Foucault cita Hegel, Schelling, Schopenhauer, Nietzsche, o Husserl da Krisis der europäischen Wissenschaften e Heidegger), inclusive, pode ser considerado como tentativas de se repensar a espiritualidade (no sentido exposto, de transformação do ser do sujeito em sua relação com a verdade) no interior da investigação filosófica que, desde Descartes, procurava expurgar essas mesmas estruturas do pensamento [aqui, eu coloco uma questão pra gente: não seria a dúvida metódica cartesiana, à sua maneira, uma ascese, já que o sujeito "entra de um jeito" (o René concreto, de robe de seda, com a pena nas mãos, sentado à beira do fogo...) e "sai doutro" (um sujeito do conhecimento impessoal, que é uma pura razão bem aplicada à realidade, ela mesma clara e distinta)?...].

O curioso é que essa estrutura de espiritualidade é usada pelo cientista para reconhecer as "falsas ciências" - que, para serem acessíveis, demandam uma "conversão" do sujeito, e prometem, ao cabo desta conversão, uma iluminação do mesmo - e, de imediato, nela Foucault reconhece formas de saber como a psicanálise e o marxismo, já que tanto o neurótico recalcado quanto o alienado em seu modo de produção precisam duma alteração no ser-mesmo para atingir o verdadeiro, o retorno do recalcado à consciência, a consciência de classe que levará à revolução, mas de maneira nenhuma as considera como práticas espirituais neste mesmo sentido especificado, já que fazem equivaler esse acesso à verdade a formas de organização social (a formação do analista, o pertencimento a um partido, um grupo sindical, uma escola teórica). Foucault diz de Lacan como o único psicanalista, pós-Freud, a querer recentralizar a questão da psicanálise nas relações entre sujeito e verdade, e pergunta, então:
"é possível, nos próprios termos da psicanálise, isto é, dos efeitos de conhecimento portanto, colocar a questão das relações do sujeito com a verdade, que - do ponto de vista, pelo menos, da espiritualidade e da epiméleia heautoû - não pode, por definição, ser recolocada nos próprios termos do conhecimento? (grifo meu)"

Não ousando responder a questão, Foucault dá continuidade à aula e traz, para análise, um  texto filosófico que constitui, a seu ver, a própria teoria do cuidado de si, do princípio "ocupar-se consigo", que não foi - faz notar - em sua origem uma recomendação para filósofos, mas um princípio corriqueiro da cultura grega antiga ligado a um privilégio político, econômico e social; esse tal texto é o Alcibíades, de Platão.

No início do diálogo, o jovem Alcibíades - reavivando a "antiga questão homérica", a questão de morrer hoje ou levar uma vida que não nos legue nada mais além do que já se tem - é abordado por Sócrates, que o faz reparar que, diferente dos seus outros enamorados, jamais o tinha abordado, e só hoje, com o moço envelhecendo e perdendo beleza, disto se decidiu. Além disto, ardia no espírito de Alcibíades a vontade de tirar algum tipo de proveito do seu status na cidade. Que queria Sócrates? Transformar os privilégios estatutários de Alcibíades (relações e contatos, família nobre, posses) em ação política, em governo de si  próprio que descamba em governo dos outros; o fato de Sócrates só agora ter decidido achegar-se a Alcíbiades, só agora que o jovem começava a perder sua beleza, diz de um amor e um cuidado pelo mancebo que não é o amor e o cuidado pelo corpo, mas pelo próprio Alcibíades, pelo próprio ser de Alcibíades. Foucault coloca como situação semelhante (mas ao contrário...) o que ocorre no relato de Xenofonte dum encontro entre Sócrates e um outro jovem, chamado Cármides: é preciso encorajar Cármides que, tímido, não ousa aplicar sua sabedoria na ação pública (é preciso noûn prósekhe); já no "Caso Alcibíades", trata-se de um jovem que planeja transformar suas vantagens na cidade em ação pública efetiva (é preciso epimélesthai heautoû).

Caso Alcibíades venha a governar (n)a cidade, deverá enfrentar dois tipos de adversários: os rivais internos, provenientes da mesma cidade (afinal, não se é o único a querer governar os outros); e os inimigos da cidade (em especial, os espartanos e os persas). Dadas as condições, Sócrates clama a Alcibíades que se averigue e se compare com tais adversários, a fim de saber se tem a mesma riqueza e educação que os tais (e, de fato, não têm; Alcibíades não pode comparar sua formação e suas posses a de toda a Esparta e de todo o Império Persa). Aparece, neste ponto do texto, uma referência explícita ao gnôthi seautôn, mas apenas como uma indireta, um conselho de prudência, e não uma abordagem do princípio délfico ele mesmo. No entanto, essa referência não consiste apenas em ser menos rico e educado que seus rivais e inimigos, mas em não ser capaz de compensar tais defeitos com um saber, uma tékhne. Sócrates, por meio duma longa sequência de interrogações (o velho, clássico e sufocante procedimento dos diálogos socráticos), demonstra a Alcibíades que lhe falta a tékhne que lhe permitiria bem governar a cidade e competir, de igual para igual, com os rivais (que é bem governar a cidade, que é essa concórdia que reina quando  a cidade é bem governada? Alcibíades não sabe responder...). É aqui que o "ocupar-se consigo" faz sua primeira aparição no discurso filosófico, com o destaque dos seguintes aspectos do diálogo:

  1. A necessidade de cuidar de si está vinculada ao exercício do poder (fórmula espartana de Alexândrides); não se pode bem governar os outros (transformar os próprios privilégios em ação política pública, em ação racional sobre os outros, como queria Alcibíades) se não se está ocupado consigo mesmo; a noção do cuidado de si emerge entre o privilégio e a ação política;
  2. A necessidade de cuidar de si mesmo está vinculada à insuficiência da educação de Alcibíades (melhor, à insuficiência da própria educação ateniense, sob dois aspectos: 2.1) o aspecto propriamente pedagógico, e 2.2) o aspecto erótico, já que o amor dos homens para com Alcibíades não teve a função que deveria ter, a de incitar os enamorados a "ocupar-se" do próprio Alcibíades, e não apenas de seu corpo);
  3. Na Apologia de Sócrates, vemos a epiméleia heautoû como uma função geral de toda a existência; mas no Alcibíades ela aparece como um momento necessário na formação da juventude;
  4. A necessidade de ocupar-se consigo é emergente, é urgente, não no momento em que Alcibíades mostra sua intenção de se projetar na política, mas quando percebe que ignora a natureza do objeto com que tem que ocupar-se (ignorava que ignorava);
 Neste momento, duas questões - vinculadas uma a outra - emergem. Quando se diz que é preciso cuidar de si mesmo, que si mesmo é esse de que é preciso cuidar? E mais, qual o si mesmo, qual o eu de que devemos nos ocupar para poder ocupar-me com os outros, a quem devo governar? É essa, repito com Foucault, a primeira emergência do cuidado de si como questão na filosofia antiga, emergência que será melhor tratada e retratada na aula seguinte...

Um comentário:

O Cercadinho disse...

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Iberê