sábado, 10 de março de 2012

Aula de 06 de janeiro de 1982:


Primeira hora:

Foucault inicia a aula relembrando que no curso anterior, Subjetividade e verdade (1981), destinara muita atenção ao regime dos aphrodísia, o qual se apresenta para este pensador como um “arcabouço fundamental da moral sexual européia moderna”. O curso de 1982 objetiva um desprendimento do exemplo do regime dos aphrodísia, embora destaque uma preocupação discursiva em torno - e nas relações - dos termos “sujeito” e “verdade”: “Em que forma de história foram tramadas no Ocidente, as relações que não estão suscitadas pela prática ou pela análise histórica habitual, entre estes dois elementos, o sujeito e a verdade”.

O ponto de partida dessa discussão é a noção de “cuidado de si mesmo” (epiméleia heautoû): noção grega recheada de denotações complexas e, ao mesmo tempo, ricas que giravam ao redor do fato de ocupar-se consigo, preocupar-se consigo. Foucault ressalta ser ousado (paradoxal e sofisticado) um estudo das relações entre sujeito e verdade que tenha como princípio a noção de epiméleia heautoû, uma vez que a esta noção não foi destinada uma significativa importância por parte da historiografia tradicional do pensamento ocidental. Dito de outra forma, a noção de epiméleia heautoû teria sido sobrepujada pela prescrição délfica do “conhece-te a ti mesmo” (gnôthi seautón), entendida como fundadora das relações entre sujeito e verdade.

Fazendo jus ao método genealógico utilizado, o autor apresenta algumas interpretações históricas e arqueológicas do sentido atribuído ao “conhece-te a ti mesmo” com o intuito de revelar que o gnôthi seautón não tinha, no momento em que fora inscrito no templo de Apolo, a mesma significação do “conhece-te a ti mesmo” empregado na filosofia tradicional. A primeira interpretação é a de Roscher (1901): três preceitos ao “conhece-te a ti mesmo” a serem memorados no ato da consulta ao Delfos (no templo de Apolo): 1) nada em demasia: tu que vens consultar não coloques questões demais, reduzi ao necessário as questões que queres colocar; 2) as cauções: quando vens consultar os deuses não faças promessas que não poderás honrar; 3) gnôthi seautón: no momento em que vens consultar o oráculo olha bem pra ti mesmo, examina em ti mesmo as questões que queres colocar, reduza ao máximo aquilo que queres saber. A segunda interpretação é de Defradas (1954) em seu livro Os temas da propaganda délfica: também mostra que de modo algum o gnôthi seautón é um princípio de conhecimento de si, mas que os três preceitos délficos nada mais são do que preparativos de prudência. Destarte, o que impera nesse período é a busca de constituição de uma vida calcada no autogoverno e na justa medida. Não há na Antiguidade pagã uma busca de conhecimento de si mesmo, uma hermenêutica de si, mas sim a busca de uma vida tão bela quanto uma obra de arte, uma estética da existência.

É importante ressaltarmos que as interpretações de Roscher e Defradas preenchem e atravessam o texto foucaultiano não simplesmente a título de exemplo, mas para apresentar ao seu leitor (ou ouvinte, em suas aulas) que tais “exemplos” lhes são custosos na medida em que sinalizam o fato de que as coisas, nunca foram necessariamente da mesma forma que nos são apresentadas pela história tradicional do pensamento ocidental; sinalizam o fato de que em um determinado momento histórico, um jogo de forças, um campo de tensões ofereceram-lhe circunstâncias para sua emersão.

Ainda com relação ao gnôthi seautón, Foucault pontua que esta noção aparece na filosofia com o personagem Sócrates, e de forma atrelada (subordinada) ao “cuidado de si mesmo” em três trechos da Apologia de Sócrates (Platão): 1) Momento do julgamento de Sócrates em que este expõe a tarefa que lhe foi imputada pelos deuses: Sócrates deveria interpelar as pessoas, fazer com que elas se ocupassem contigo mesmas; 2) Se Sócrates morresse os atenienses não terão ninguém mais que pudesse incitar a busca de suas virtudes: a menos que os deuses lhe enviassem outro substituto; 3) Sócrates interpela no seu julgamento: que punição devo ter se renunciei a tudo para incitar os outros a ocupar-se consigo? Nenhuma punição, talvez um bom tratamento. Diante dessas passagens, Foucault tece algumas observações: Sócrates como aquele que obedece aos deuses, mas ao mesmo tempo não se ocupa consigo mesmo, renunciando sua própria carreira política para incitar os outros a cuidarem de si mesmos; Sócrates como aquele que desperta: o cuidado de si como um despertar; analogia de Sócrates à figura de um tavão: o cuidado de si como um princípio permanente de inquietude da existência.

Outro ponto concernente a noção de epiméleia heautoû e suas relações com a noção de gnôthi seautón consiste numa aposta foucaultiana de que a noção de epiméleia heautoû acompanhou, enquadrou, fundou a necessidade de conhecer-se a si mesmo não apenas no momento de seu surgimento no pensamento, na existência, no personagem de Sócrates; mas que a epiméleia heautoû não cessou de constituir um princípio fundamental para caracterizar a atitude filosófica ao longo de quase toda a cultura grega, helenística e romana. Nesse sentido, tem-se do séc. V a.C ao séc. IV-V d.C a cultura do “cuidado de si mesmo” como uma atitude (não apenas restrita aos filósofos), como um acontecimento no pensamento – entende-se o termo acontecimento como uma experiência, um algo pelo qual se sai transformado, e não como uma simples demarcação histórico-temporal.

Em meio a esse percurso histórico atravessado pela cultura do “cuidado de si mesmo”, desde o personagem Sócrates interpelando as pessoas para que se ocupem consigo mesmas, percebe-se que esta noção de epiméleia heautoû também foi interpretada, utilizada pelo cristianismo, pelo ascetismo cristão. É nesse momento do texto que Foucault apresenta o entendimento da epiméleia heautoû como certo modo de estar no mundo; uma conversão do olhar do exterior para si mesmo (entende-se que esse si mesmo não denota relações com um eu interior); ações de si para consigo: como nos transformamos, nos modificamos, nos transfiguramos.

Enfim, com a noção de epiméleia heautoû, temos todo um corpus definindo uma maneira de ser, uma atitude, formas de reflexão, práticas que constituem uma espécie de fenômeno extremamente importante, não somente na história das representações, nem somente na história das noções ou das teorias, mas na própria história da subjetividade ou, se quisermos, na história das práticas de subjetividade. (FOUCAULT, 2010, p. 12).



Mas o que ocorreu para que a noção do cuidado de si passasse a ser menos privilegiada em relação à noção do “conhece-te a ti mesmo”? O que o “ti” tem que o “si” não tem? Foucault pontua aquilo que define por paradoxos: Primeiro paradoxo: em meio a um sentido positivo de “sentir prazer em si mesmo”, “permanecer em companhia de si mesmo”, “respeitar-se”, “ter cuidados consigo”, o ocupar-se consigo mesmo foi desenvolvido diante das mais austeras morais (estóica, cínica e epicurista). Temos pois o paradoxo de um preceito do cuidado de si que, para nós, mais significa egoísmo ou volta sobre si e que, durante tantos séculos, foi, ao contrário, um princípio positivo, princípio positivo matricial relativamente a morais extremamente rigorosas. Segundo paradoxo: eram regras austeras foram transpostas para o interior de um contexto que é o de uma ética geral do não egoísmo, seja sob a forma cristã de uma obrigação a renunciar a si mesmo, seja sob a forma “moderna” de uma obrigação para com os outros. No interior daquela paisagem tão fortemente marcada pela obrigação de ocupar-se consigo mesmo, vieram a ser assentados pelo cristianismo e pelo mundo moderno numa moral do não egoísmo.

Além dessas questões há o que Foucault chamou de “momento cartesiano”: tornou o gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo) um acesso fundamental à verdade; este momento cartesiano teria desqualificado a epiméleia heautoû. Foucault apresenta uma formulação de relações entre a filosofia (forma de pensamento que interroga sobre o que permite ao sujeito ter acesso à verdade) e a espiritualidade (conjunto de buscas, experiências que constituem para o sujeito o preço que se paga para se ter acesso à verdade). Para a espiritualidade a verdade jamais é dada de pleno direito ao sujeito, por um simples ato de conhecimento; a espiritualidade postula a necessidade de que o sujeito se transforme, se modifique, torne-se até certo ponto, outro que não ele mesmo, para que tenha acesso à verdade; esta, só é dada ao sujeito por um certo preço que põe em jogo o ser mesmo do sujeito. Consequentemente, se entende que não se pode haver verdade sem uma conversão ou transformação do sujeito. A esse movimento de conversão, Foucault destaca duas direções: a primeira seria um movimento de éros (amor), no qual a verdade viria até o sujeito e o iluminaria; e a segunda estaria pautada num movimento de áskesis, entendido como um labor, um trabalho de si para consigo em que se é o próprio responsável. A verdade é o que ilumina o sujeito, dá-lhe beatitude e tranquiliza a alma (aqui, não se trata da alma de alguém, mas uma alma universal – na Antiguidade clássica não havia uma noção de interioridade individualizada).

Durante a Antiguidade o acesso à verdade e a prática de Espiritualidade (transformação do sujeito para ter acesso à verdade) nunca esteve dissociado. Entramos na Idade Moderna quando que o que dá acesso à verdade no sujeito é o conhecimento. A verdade passa a ser obtida sem a necessidade de uma mudança, sem uma transformação no ser do sujeito. O ser do sujeito deixa de ser posto em questão.

“Se definirmos a espiritualidade como o gênero de práticas que postulam que o sujeito, tal como ele é, não é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, é capaz de transfigurar e salvar o sujeito, diremos então que a idade moderna das relações entre sujeito e verdade começa no dia em que postulamos que o sujeito, tal como ele é, é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, não é capaz de salvar o sujeito.” (FOUCAULT, 2010, p.19).



Marcel Maia

4 comentários:

Kleber disse...

Bacana seu texto Marcel. A citação do Foucault no final faz querer pensar essa condição da verdade no presente de cada dia. A verdade que somos não necessariamente nos salva, mas me parece que acreditamos que ela nos guarda. Adiante na conversa, que se não nos guarda, pode nos salvar de nós mesmos. Abraço!

Marcel Maia disse...

Pois é, essa conversa nos convoca para um constante questionar-se nas nossas práticas, nossas ações, nossos pensamentos construídos [ou capturados] diariamente - o que estamos fazendo de nós mesmos?

J. Thiago disse...

"Foucault inicia a aula relembrando que no curso anterior, Subjetividade e verdade (1981), destinara muita atenção ao regime dos aphrodísia, o qual se apresenta para este pensador como um “arcabouço fundamental da moral sexual européia moderna”.

É do terceiro "História da Sexualidade" que se fala, aí?


"Fazendo jus ao método genealógico utilizado, o autor apresenta algumas interpretações históricas e arqueológicas do sentido atribuído ao “conhece-te a ti mesmo” com o intuito de revelar que o gnôthi seautón não tinha, no momento em que fora inscrito no templo de Apolo, a mesma significação do “conhece-te a ti mesmo” empregado na filosofia tradicional."

Qual a distinção entre a Arqueologia e a Genealogia, metodologicamente, para o Foucault? Nunca consegui entender isso...


"...entende-se o termo acontecimento como uma experiência, um algo pelo qual se sai transformado, e não como uma simples demarcação histórico-temporal."

Quem - ou o quê - sai transformado de um acontecimento? A expressão "passar por um acontecimento" não o psicologiza ou, então, o transforma num "instante", um "aqui-e-agora"?


"A verdade é o que ilumina o sujeito, dá-lhe beatitude e tranquiliza a alma (aqui, não se trata da alma de alguém, mas uma alma universal – na Antiguidade clássica não havia uma noção de interioridade individualizada).

Como assim, uma "alma universal"? Isso não seria tornar o mundo, ele mesmo, um sujeito!? O sujeito não era uma interioridade psicológica na grécia socrática, verdade, mas transformá-la numa anima mundi não parece ser o mais indicado. O sujeito espiritual grego não equivaler ao sujeito do pensamento na modernidade não nos leva, necessariamente, a dizer que inexistem sujeitos na Grécia, a menos que...


"Durante a Antiguidade o acesso à verdade e a prática de Espiritualidade (transformação do sujeito para ter acesso à verdade) nunca esteve dissociado. Entramos na Idade Moderna quando que o que dá acesso à verdade no sujeito é o conhecimento."

... a menos que você faça equivaler o sujeito da espiritualidade socrático ao sujeito do conhecimento de Descartes. O procedimento da dúvida, nota-se, é como uma ascese que purga do sujeito concreto toda e qualquer possibilidade de conceber algo ambíguo e contraditório como verdadeiro. Esse sujeito, conquanto, não é uma pessoa, mas a própria razão bem aplicada num mundo que, ele mesmo, é apenas um "estado de coisas". O procedimento cartesiano, logo, transforma a pessoa na própria luz do mundo, na própria verdade ela mesma. Daí, o meu estranhamento em relação ao comentado.


"...a idade moderna das relações entre sujeito e verdade começa no dia em que postulamos que o sujeito, tal como ele é, é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, não é capaz de salvar o sujeito (FOUCAULT, 2010, p.19)."

Este, inclusive, é um dos meus pontos de maior interesse, com o Hermenêutica : como "buscar a verdade", outrora entendido como um exercício de cuidado para com a existência, tornou-se a simples procura e pesquisa duma informação verdadeira sobre um objeto qualquer?...

Kleber disse...

Recorte:
"
"...a idade moderna das relações entre sujeito e verdade começa no dia em que postulamos que o sujeito, tal como ele é, é capaz de verdade, mas que a verdade, tal como ela é, não é capaz de salvar o sujeito (FOUCAULT, 2010, p.19)."

Este, inclusive, é um dos meus pontos de maior interesse, com o Hermenêutica : como "buscar a verdade", outrora entendido como um exercício de cuidado para com a existência, tornou-se a simples procura e pesquisa duma informação verdadeira sobre um objeto qualquer?...
".
O James tece muitas questões, as quais não me arvoro em encaminhar. Algumas delas como a distinção entre genealogia e arqueologia, a gente pode retomar em nossos encontros as terças. Outras nessa primeira leitura do comentário, não entendi bem ou não li direito. A que transcrevi aqui, foi um sobressalto, uma provocação que me faz escrever. Vejo idade moderna, sujeito e verdade como chaves para essa a citação ao Foucault e talvez ele esteja a se referir ao momento cartesiano, onde a reflexão constituia uma verdade para si. O pensamento operava em nome do saber objetivo, mas essa objetividade construída não refletia para o sujeito uma condição de plenitude. O que se fazia virtude quando se estava a pensar, desvirtuava o sujeito no momento de distribuição (generalização) desse bem. E aí James?