sábado, 8 de agosto de 2009

Da Imagem do Pensamento e dos Intercessores

A obra de Deleuze constitui-se como uma "filosofia da diferença", visto que faz movimentos críticos frente a todo pensamento "representativo". E por movimento crítico não devemos assumir um esculhambar sem sentido, desprovido de rigor e estudo - puro oba-oba! - mas a distinção mesma entre dois "pensamentos": um pensamento moral/representativo/dogmático e um pensamento sem imagem (ou, até melhor, uma nova imagem do pensamento)! Destaquemos, destarte, três obras deleuzianas em que tal problemática é bem colocada: Nietzsche e a filosofia; Proust e os signos; e Diferença e Repetição.
Vemos, em Nietzsche e a filosofia, três caracteres que constituem o pensamento dogmático. Primeiro: o pensador, enquanto pensador, quer e deseja a verdade; e o pensamento, enquanto faculdade, é naturalmente e universalmente reto. Segundo: o nosso pensamento é desviado do verdadeiro devido às forças estranhas ao mesmo - malditas sejam as paixões da carne e os erros dos sentidos! - que nos fazem cair no erro, tomando uma coisa falsa por verdadeira. E terceiro: Para pensar retamente, precisamos apenas dum método que nos coloque no caminho do bom, do belo, do justo e do verdadeiro. Vasconcellos diz de Deleuze que diz de Nietzsche: a tarefa da filosofia é, justamente - termo infeliz! - reverter esta imagem dogmática do pensamento, que não pensa sozinho e por si mesmo, assim como também não é turbado e perturbado por forças exteriores. O pensamento depende, necessariamente - outra palavrinha infeliz! - dessas forças mesmas que o arrebatam e o possuem.
Em Proust e os signos, Deleuze faz dessa imagem dogmática do pensamento uma imagem racionalista da filosofia - moral e representativa - visto que constituída de pressupostos, analisando a temática do tempo em Recherche du temps perdu. Prost, pela leitura de Deleuze, contrapõe este pensamento dogmático a uma nova imagem do pensamento, que enfatiza a relação entre as chamadas "forças externas", fazendo o pensamento sair de sua imobilidade e lhe provocando encontros. Intercessões!
Já em Diferença e Repetição, Deleuze apresenta quatro postulados sobre a imagem dogmática do pensamento. Vamos lá! O primeiro postulado é o Cogitatio natura universalis; o pensamento possui formalmente o verdadeiro e o busca materialmente. O segundo diz que tal pensamento é potencialmente compartilhado por todos os homens. Terceiro: o modelo da recognição, exercício concordante das faculdades sobre um objeto suposto como sendo o mesmo. E, por fim, o quarto postulado, que garante a unidade de todas as faculdades no príncipio geral do "Eu penso"! Deleuze nos fala de possibilidades para o exercício do pensar. A filosofia, para ele, é aquele movimento mesmo que se dá no pensamento, um rompimento das amarras da representação. Pensar é radicalizar. Pensar é criar conceitos!
Além da imagem do pensamento, Vasconcelos nos propõe, como eixo outro para interpretarmos Deleuze, a idéia de intercessor, encontro que faz o pensamento sair de sua inércia habitual e o mobiliza à criação. O intercessor é a condição mesma para que o pensamento se dê. Não se trata, no entanto, de lidar com os intercessores como simples alianças, apesar de se nos apresentarem como tal. Os intercessores atuam, na filosofia deleuziana, como um conceito, como o que propicia a resolução dum novo problema colocado. E o conceito, em Deleuze, pode ser definido nas seguintes cinco características. Tomemos fôlego e mergulhemos!
Primeiro! Não há conceito simples! Todo conceito possui componentes, visto que formado por uma multiplicidade complexa de elementos. Segundo! No plano de imanência - o habitat conceitual - o conceito desenvolve uma vizinhança necessária com conceitos outros, numa composição em rede! Terceiro! Cada conceito é um ponto de coincidência/condensação/acumulação de seus componentes! Uma organização espacial e visível dum fluxo temporal e incorpóreo. Quarto! O conceito opera sobre o plano de imanência a partir do problema que lhe propiciou a gênese! Finalmente, o último! O conceito, mesmo utilizando do linguajar cotidiano, mesmo cavalgando em sujeitos e predicados, mesmo preso numa gaiola de palavras, não é discursivo, visto que não encadeia proposições!
O conceito, em síntese, é a ferramenta mesma do filosofar. O seu instrumento! Quando Deleuze se propõe a discutir com saberes não-filosóficos (como a literatura, o teatro, a pintura e - vejam só - o cinema), ele coloca em jogo questões e problemas da ordem da filosofia. Seus livros sobre cinema, em exemplo, fazem pulular conceitos para se pensar o cinema. O que importa nessas intercessões não são as análises empreendidas sobre tal e qual obra, mas os conceitos que estas liberam à filosofia. Galileu, Descartes, Newton, Leibniz, Einstein, Gödel. Estes matemáticos não recorreram à filosofia para problematizar questões que são próprias da matemática. Eles pensam os problemas colocados por seus próprios domínios.
O papel do filósofo, entretanto, é de outra natureza. Neste perspecto, filosofar não é contemplação do mundo ou das idéias, nem dialéticas intersubjetivas ou mesmo reflexões metódicas sobre istos e aquilos. Filosofar é criar conceitos. É produzir idéias! Não a idéia do platônico, do pensamento representativo e da verdade dada, mas a diferença mesma produzida pelas intercessões. O cinema, como um "de-fora", força Deleuze a pensar contra a imagem moral e dogmática do pensamento. Sirvamo-nos, também, desse intercessor para construírmos nossa própria filosofia...

Da Imagem do Pensamento e dos Intercessores; In: VASCONCELLOS, Jorge; Deleuze e o Cinema; Rio de Janeiro; Editora Ciência Moderna Ltda.; 2006; pp.1-11.

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