domingo, 30 de agosto de 2009

Parte I. Da Imagem em Bergson

Fundamental para entendermos o pensamento deleuziano é a filosofia do menino Bergson: cérebro/consciência, matéria/memória, corpo/espírito. Dualismos que não são idealismos. A metafísica da duração bergsoniana é fonte de inspiração - de intercessão, melhor dizendo - à ontologia do virtual de Deleuze. A filosofia da diferença deleuziana é descendente direta da distinção grau/natureza feita por Bergon. No plano da matéria, temos as diferenças de grau; no plano do espírito, as diferenças de natureza.
A diferença, então, relaciona-se a um e a outro destes planos. Na matéria, como metodológica, diferença entre coisas; e no espírito, como ontológica, a diferença mesma, "em si". O que Bergson critica na filosofia que o antecede é o fato da mesma ter visto simples diferenças de grau onde se davam diferenças de natureza: as diferenças entre a faculdade perceptiva cerebral e as funções reflexas medulares, em exemplo. Como corolário, interroga-se o próprio papel da filosofia em sua relação com as coisas, filosofia como acesso direto às coisas, buscando nas mesmas um conceito apropriado ao problema colocado. Conceito, este, que não existe por si, mas apenas enquanto subserviente ao problema. É pelo pensamento - o espírito, em Bergson - que reconhece-se as diferenças de natureza da realidade, recortando - como o bom cozinheiro - o que é da matéria e o que é do espírito.
O rigor metodológico da filosofia bergsoniana identifica-se não a caminhos e técnicas, mas à distinção precisa operada entre grau e natureza pelo bergsonismo. Sua ontologia, igualmente, não se dá por platonismos, mas pela compreensão da diferença nela mesma, cuja trilha de acesso chamamos de intuição. Vasconcellos desdobra a intuição em três movimentos, seguindo as indicações de Deleuze no Bergsonismo: a distinção entre verdadeiros e falsos problemas, colocando, ao nível dos problemas, a verdade no mesmo plano da criação; a articulação das diferenças de natureza com o real; e a colocação de problemas em termos temporais, não espaciais. Uma filosofia problematizante, diferenciante e temporalizante!
Em seguida, é apresentada uma dupla tipologia das multiplicidades, o que - embora possa facilitar o saborear da cozinha bergsoniana - soa-me como retórica desnecessária. Cozinha à base de linguiça! Enfim! Uma é espacial, exterior, simultânea, justaposta, quantitativa, numérica: diferença de grau. A outra é duração pura, interna, sucessiva, fusionada, virtual, contínua: diferença de natureza. Aqui, multiplicidade não se opõe à unidade. Não há o Uno! Distingue-se, ao contrário, duas multiplicidades: uma discreta e uma virtual. E aqui o Vasconcellos faz bonito quando, ao sair da já maçante distinção entre objetividade-atual e subjetividade-virtual, fala sobre o processo de diferenciação. Diz ele que, em Bergson, não deve se opor possibilidade à atualidade. O possível, visto que externo e espacial, é do plano da matéria e do real. É o virtual - e sua atualização - que são do plano do espírito e da memória.
Esta memória - duração! - não equivale a uma sucessão de instantes idênticos a se repetirem. O tempo não é uma sucessão de presentes! O momento seguinte ao presente momento prolonga-se a este, atualizado como memória-lembrança, ao mesmo tempo em que ambos se condensam um sobre o outro, enquanto memória-contração. Não duas memórias, é bom frisar, mas dois aspectos duma única e mesma memória.
Deleuze-leitor-de-Bergson, ao colocar a questão da conservação das lembranças, afirma que esta é um falso problema. O bergsonismo trabalha com um registro do inconsciente diferente do freudiano, visto que a lembrança pura, virtual, não "habita" - ótimo termo - um inconsciente. O inconsciente, em Bergson, é virtual. É o virtual! Logo, não psicológico! O psicológico só se constitui no presente, enquanto o passado-memória-duração é lembrança. Não a imagem-lembrança, mas a lembrança pura, imemorial, ontológica. Destarte, não há diferença de grau entre percepção e lembrança, mas diferença de natureza. Ao vermos diferença de grau entre ambos, instalamos um misto mal-analisado e caimos na "imagem" como uma realidade psicológica!
Chegamos, aqui, no "paradoxo mais profundo da memória". Palavras do Vasconcellos. O passado é contemporâneo do presente que ele, um dia, já foi. Passado e presente não como dois movimentos a se sucederem, mas como elementos coexistentes: o presente, que não para de passar, e o passado, que não para de ser. O tempo-linha cede passagem ao tempo-fluxo. Fluxo do passado, da memória, com sua virtualidade a atualizar em imagens; imagens, estas, que não se reduzem a meros dados psicológicos, adquirindo estatuto de Ser. A consciência, assim, deixa de ser uma fonte produtora de imagens para se tornar um ecrã de projeção das mesmas. Diz o livro que seu papel não é gerar imagens, mas fazer aparecê-las. Prefiro pensar a consciência - e agora dou uma de ousado - não como ecrã-condição-de-possibilidade (o papel de ecrã, deixo ao corpo), mas sim como o aparecimento mesmo da imagem na tela. Consciência-filme! Imagem e lembrança! Somos o fluxo do devir! A consciência é muito bem representada pelo cinematógrafo no tocante aos mecanismos de funcionamento do nosso conhecimento vulgar. Em vez de nos lançarmos ao fluxo das e nas coisas, pomo-nos de fora das coisas mesmas e recompomos o seu devir em termos de inteligência e linguagem. Tempo em termos de Espaço!
[Confesso aos senhores que, agora, dei um salto considerável no texto - quatro ou cinco páginas - pois, embora contribuam para uma compreensão intelectiva da imagem em Bergson, constituem onanismo filosófico, a meu ver. David Hume, sínteses temporais e visões caleidoscópicas serão deixados de lado desta vez...]
Sabemos nós que um filme é uma série de fotografias em sequência, embora enxerguemos tais imagens em movimento, visto que não conseguimos apreender as "imobilidades". Esta impressão de movimento é uma impressão de realidade. O cinema é arte ancorada em imagens, uma imagem que - lembremos - não é psicológica, visto que desligada da percepção voltada à sobrevivência. A imagem em Bergson habita o percepto, percepção "inumana", possuindo caráter ontológico, não psicológico. Imagem virtual, temporal, pura...

Um comentário:

Kleber disse...

Desse texto, uma questão: Você diz que somos o fluxo do devir. Como isso seria possível. O devir pode ser uma coisa?