quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Carta a uma amiga que inventa

Crônicas de um trabalho docente: A invenção como imanente a vida (Título da tese de Ana Paula)

A escrita da Paula me coloca uma questão, antes mesmo que ela comece a colocar as questões que envolvem a sua discussão, naquilo que é formal na organização de uma tese. Paula se nega a fazer uma introdução do seu trabalho. Traz para si uma vontade de autonomia para quem escreve e para quem vai ler. Daí, rapidamente, diz de uma política de estabelecer protocolos para produção de textos acadêmicos, a qual ela não quer se inserir. Diz que sua tese é uma quebra de protocolo e que seu texto fora escrito com uma vontade de ser útil, de modo não protocolar.
É daí que estabeleço uma questão desde já. Melhor, estabeleço uma problematização que vai nortear a minha fala aqui; hoje. Como ler algo que se quer útil e não diz de um modo de otimizar essa utilidade? Parece algo muito estranho, se constratado como os modos de escrever no contemporâneo.
É raro, hoje em dia, se deparar com uma escrita, seja ela acadêmica, literária ou técnica, onde não exista um modo de decodificação posto aos olhos dispostos à leitura. Aprendemos isso na escola, em casa e na rua. Aprendemos isso com a supervalorização que a imagem possui na atualidade. Paul Virilio denuncia essa situação onde um modo de viver acelerado induz um consumo instantâneo das imagens. Consumo instantâneo das coisas, só é possível quando pre-existe uma codificação que relaciona um ponto ao outro, que serializa cadeias de relação entre as coisas, antes mesmo que essas coisas se façam, aconteçam.
Paula, na política de escrita que utiliza para falar do trabalho docente, encontra um modo de resistir a esses modos seriais de dizer e de viver. Faz uma aposta no jogo jogado e denuncia o jogo arrumado.
Daí, Paula diz que seu trabalho de produção de tese se faz como uma cartografia, e de como essa experiência se dava e que ganhava linhas. São variadas as experiências que confirmam essa decisão metodológica no seu texto, no desenho que foi ela procedendo, sem que houvesse antes uma imagem que pudesse refletir ou ter por referência.
Paula assim, nas suas crônicas, perforre movimentos, percepções, sensibilidades, relacionamentos que se fazem palavras na produção de sua carta; de seu texto. Dispõe uma heterogenese em folhas a serem impressas em papel A4, e agora, ali sentada, aguarda a leitura institucional daquilo que fez. É impotante lembrar que ela, ainda no texto, diz também que não o fez sozinha. Muitos, uma multidão lhe acompanhava na produção das páginas.
Mas isso que foi cartografia para a Paula-hifem-multidão (explicar se for o caso), merece ser lido, pensado e vivido agora apenas como um mapa, que é a coisa mais objetiva que se pode falar de uma tese? Ou é possível um outro modo de leitura para essa escrita?
Bom, minha experiência é pouca no ramo de falar de teses. Assim, como um noviço nesse tipo de demanda, posso confessar aqui, que ainda não aprendi a ler teses como teses. Por isso, peço licença aos companheiros de banca, para não ler a tese da Paula, como uma tese, no sentido mais estrito que essa palavra possa ter. Digo que esse pedido não trata de um desejo do meu eu. Trata-se antes de uma impossibilidade minha, que diante desse texto não ver como ser um EU que sabe ler teses. Principalmente quando a tese, já desde a sua não-introdução, sugere ser outra coisa além de tese.
Assim sendo, vou buscar a melhor coisa que creio ser possível, para percorrer esse texto e depois falar dele. Vou buscar uma intangível alteridade de ser Multidão-hifem-Paula-Simone, Nice, Virginia, Adriano-Teresa-Lia-Rosana-Roberta-Lidia-João-Beth-Povo-da-Beth-Instituições de ensino privadas e públicas, bergon, foucault, deleuze, pássaro azul e mais um bocado de outras possibilidades não nomeadas. Assim quem sabe, possa encontrar a cadência de escrita para dizer dessa leitura. Assim quem sabe, possa fazer parte dessa diferença, que grita ao ouvir a ordem de silêncio. Assim, quem sabe, possa utilizar a precariedade do ser professor, não apenas como um estado de falta, mas como uma condição de insuficiência. Retirei essas duas possibilidades de leitura do dicionário do Houaiss.
Olhando lá o termo e fazendo dele uma leitura um tanto quanto intuitiva, pensei que a condição de precariedade só é falta, quando o sujeito se quer absoluto, melhor resoluto em seus propósitos. Se o sujeito se diz insuficiente, ele não se torna refém daquilo que se mostra precário, pois ele já assumiu essa condição para si. Condição de passagem. Condição de não se querer perpétuo. Uma política de estar na multidão. Uma ética de ser apenas depois da experiência. Uma estética de não instrumentalizar as cores que usa para pintar. Eis em mim, a condição de insuficiência. Uma insuficiência que não se representa. Que não se quer entre o mais e o menos. Uma insuficiência sem relógio de pulso. Uma insuficiência da utilidade no mundo do descartável.
Assim, aqui vou por atalhos. Passo pela página, melhor pela latitude 141 de sua carta, quando ao entrar para dar uma aula numa instituição privada de ensino, um professor ao fechar a porta, imaginava a sala num outro espaço institucional em busca de fazer o insuficiente num espaço que se queria suficiente. Lembro que vivi e sobrevivi por quase seis anos trabalhando no ensino privado, utilizando dessa tática. Quase sempre. Muitas vezes a utilizava de modo solitário para fazer passar o tempo da obrigação do fazer, noutras de modo compartilhado, pois pesava também para os alunos a condição de suficiência, de vigilância da manutenção dos níveis de comportamento previamente estabelecidos. Acontecimentos alegres e tristes, como os que você relata em suas crônicas.
Bom, agora estou há três anos no ensino superior público e semana passada, quase entrei em pânico, quando por pouco não reviveu em mim a tática disposta na latitude 141, já experimentada por mim em outros territórios.
Em alguma outra latitude de sua carta, você diz que é frágil a fronteira entre as instituições de ensino público e privado. Relia sua carta, quando passei por essa experiência que vou dizer aqui de modo breve. Experiência que articula as cidades de aracaju e vitória, que relaciona a possibilidade de ser um eu com a possibilidade de estar na multidão.
A universidade federal de sergipe, onde trabalho, vive um violento processo de expansão. Nesse tempo que estou lá, dobraram número de alunos, de cursos de graduação, de professores. Triplicaram os cursos de pós-graduação, de alunos vinculados ao pibic e por aí vai. Uma revolução se fez na cultura do Campus. Prédios se edificam a todo momento e os espaços para estacionamento de carros estão esgotados. Entretanto, as marcas desse processo se estabelecem essencialmente na política do mais e do menos. Na contabilidade gerencial que busca anular a paixão, a autonomia e a singularidade que emergem nos movimentos da multidão.
Veja só, semana passada, eu fui ao encontro de uma turma de Psicologia Geral, com 55 alunos, de pelo menos oito cursos diferentes. Íamos lá falar de William Wundt e a experiência imediata. Cumprimento os alunos, faço a verificação de frequência e pergunto quem leu o texto. Cinco levantam a mão. Após essa resposta, algo passa a se movimentar em mim. Eu não sei o que é, mas sei do que se trata.
Percorre-me uma força estranha. Algo que naquele momento não me fazia bem e punha em questão o sentido do trabalho que deveria ser feito. Silenciei, mas via um transtorno se encaminhar em meu corpo. Bom, mas se uma força estranha leva Caetano Veloso, Roberto Carlos e uma multidão a cantar a plenos pulmões, desde o começo dos anos oitenta do século passado,não poderia essa força estranha me fazer calar naquele momento. Entre nós, aqui, eu já não sou muito de calar.
Voltando. Não poderia deixar retornar a condição de um silêncio que adoece, mas que me permitia fazer do sulficiente, insuficiente na UVV. Era uma tática de sobrevida e também de vida importante, mas lá havia um patrão e um salário que ele pagava. Nas instiuições públicas de ensino superior, o patrão não fala, não manda calar, não manda trabalhar. Enfim o patrão não manda.
Nessa turma, quantitativamente falando, frequentam as aulas, 44 alunos. Uma entrou há poucos dias em licença maternidade. Inventou um filho para deixar de assistir as aulas. Eis uma latitude interessante. Eis um atalho. Pensei com meus botões; esse povo precisa engravidar.
Perguntei quem estava com o texto. Quase todos.
Então pedi que o lessem por meia hora. Após esse tempo pedi que produzissem uma pergunta sobre o que leram, que necessariamente começasse por O QUE, ou QUEM, ou POR QUE, ou COMO. Cinco minutos para realizar a tarefa. Devo dizer que pedi também que colocassem o nome abaixo da questão produzida, dando assim um tom de avaliação ao procedimento.
Passados os cinco minutos, fui ter com eles. Todos haviam feito a tal questão. Disse eu então: Quem fez a questão começando com O QUE? Resposta: tantos de braços levantados. Quem fez a questão começando com Por que? Outros tantos. Quem fez a questão começado com a palavra quem? Menos, mas ainda alguns tantos.
Daí perguntei. Quem fez a questão começado com a palavra COMO? Um braço se levanta no meio da sala. Um braço, apenas um braço.
Daí fui conversar com eles sobre o que querem essas palavras quando perguntam. Para onde elas apontam. Que tipo de saber elas edificam e sustentam. Engraçado que o texto de trabalho anterior havia sido um que organiza a história da psicologia como campo de práticas e saberes, dispondo tanto lógicas e procedimentos hermenêuticas como também daquilo que Foucault, ao olhar pros inventos vivos dos gregos, deu o nome de estética da existência.
O texto não havia ainda reverberado nos estudantes e eu ali, buscando lidar com a tal força estranha. Buscado percorrê-la, antes que ela me percorresse.
Propus então a condição de gravidez aos alunos. Quem quizesse poderia ir embora e ficar em casa até o momento da avaliação. O tal do REUNI já fez isso antes de mim. Reprovado por falta e com média, toca adiante a vida na grade curricular.
Quem não quizesse engravidar, ficaria ali comigo. Por vontade, lendo os textos e participando das aulas. Dei 48 horas para decidirem, afinal engravidar não é coisa sem consequência. Na quinta-feira, voltaram todos. Perguntei quem estava preparado para engravidar. Ninguém levanta o braço e eu ainda estava a percorre a força. Não havia ainda a insuficiência necessária para a vocalização de um canto.
Insuflei a moçada. Aliviei os riscos. Disse que seria feito o mesmo trabalho da aluna gestante e que ela ainda não sabia que trabalho seria esse. Um aluno quis que adiantasse o ter do tal trabalho. Disse que não poderia fazer isso. Uma gravidez leva tempo e o trabalho seria o momento do parto. Não poderia ali me fazer parteiro ou anestesista. Também não era possível admitir que dava para ficar grávido e ter o filho no mesmo dia. Então ele desistiu. Continuamos a nossa negociação e encontramos um bom termo para os nossos encontros.
Não vou continuar nessa história, pois preciso voltar para esta, que fala mais alto em nosso presente. Voltar para esse momento em que escrevo para a Paula.
Paula, minha amiga. Creio que esses alunos que encontramos em qualquer lugar, denunciam tão bem como você, essa condição de precisar ser suficiente, quando o viver, o brincar de viver, demanda insuficiência.
Não vejo então outra possibilidade, que não levar a cadência que você traz para as nossas aulas. Para mim com eles. Quando você decide por um texto não providencial, de um modo muito aberto você me diz como não deixar que os alunos engravidem antes do tempo, antes que uma vontade potende articule tal decisão.
Fosse apostar, diria que esse alunos, que são pra mim, a melhor expressão dessa fronteira que instala indiferença na vida, quando muito, passaram seu tempo lendo textos da suficiência. Textos da sufuciência que os percorriam no ensino fudamental e médio. Aprendendo durante esse tempo a transformar a insuficiência que bem traziam em suficiência. Isso em qualquer disciplina. História, geografia, matemática, ciências, língua portuiguesa e literatura. Algo tipo assim. Aulas de literatura e interpretação do texto. Quem é o protagonista? Quem é o antagonista? Do que trata o texto? Não se pergunta que atalhos o texto produz em seus leitores.
A única aluna que fez uma questão com a palavra COMO, foi sem saber um atalho para que eu invertesse em mim, a relação com a tal força estranha. Entretanto, ela não sabia dizer bem o que lhe levou a fazer tal formulação. Disse que queria saber do processo. Só isso. Pode parecer muito. Pode parecer pouco. Mas pode também não se tratar disso. Melhor, assim como o seu texto, a questão dela, em mim, precisa não se tratar disso.
Desse modo a questão dela se fez rara, assim como é rara a sua tese. Sua carta-tese é rara em muitos sentidos. É rara em sua singularidade que expressa paixão, cuidado e compromisso. Isso é bom. Muito bom e bonito. Mas ela é rara também em frequência. Quando estava em formação acadêmica, não me foram disponibilizados textos como o seu. Textos-atalhos. Minto. As vezes apareciam, mas eram raros, escassos e distantes enquanto possibilidade de existência e utilidade. A arte lá, a gente cá.
Seu texto me trouxe aqui. Me trouxe até a UFES. A UFES onde cursamos psicologia.
Seu texto agora, carrego para a minha UFS, para que meus alunos, amigos e outros, possam saber da sua força e da sua escrita-multidão. Para que possam também saber que não é preciso saber tanto quanto diz uma condição de suficiência e que os protocolos podem existir. Devem existir. Mas eles não são condição para o belo, para o diferente, para a invenção. Eles são condição para a repetição. São condição para a necessidade. Para uma ordenação de crises que a própria ideologia da ordem ajudou a forjar.
Sua carta é outra coisa. Ele é o texto que precisa estar presente em todo dia. Precisamos perserverar no trabalho pela condição de insuficiência. Sabemos bem disso. Não sabemos bem como fazer isso, pois isso só se faz em ato.
Mas preciso dizer que sua carta me foi útil e que acredito que ela vai continuar sendo, pois é um belo invento e como bem diz você, a invenção é imanente a vida!
Agradeço a você e a Beth Barros pela leitura do texto e por estar aqui com vocês, tecendo esse acontecimento. É isso. Tenha meu abraço!

PS: Essa foi a minha fala ao participar da banca de doutoramento de Ana Paula Figueredo Louzada, junto ao PPGE/UFES

4 comentários:

Mairla disse...

poxa... tão bonita sua carta que deu uma vontade tremenda de ler a escrita da Paula!
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:)

Kleber disse...

Oi Mairla, pedi a Paula uma versão em PDF. Chegando eu encaminho. Abraço.

J. Thiago disse...

Confesso que só fui ler hoje tal carta. Há um casamento feliz entre ela e algumas impressões que ando tendo... Também queria, muito, ter acesso à tese da Paula...

Juaum disse...

é uma lufada de ar fresco.
li metade já e agora lembro das últimas linhas do guattari nas três ecologias...
são palavras que tolhem a passividade do ambiente..