quinta-feira, 12 de novembro de 2009

A Intuição como Método

Lembro duma agonia que me trespassava o espírito - sim, era mais inquietante do que consigo relatar, mas menos dramática do que estão a imaginar - durante os períodos iniciais do curso de psi. Estudava práticas experimentais e estatística, naquele momento. Daí, encontro o mesmo pensamento, dia desses, ressoando nos versos iniciais duma poesia do Bergson. O menino, inclusive, tomou conta de meu vocabulário, tal qual aquele amigo com quem trocamos trovas, provas e prosas diárias. Canta o filósofo que nossas reflexões brincam com termos e conceitos que não correspondem às articulações do real. Sujeitamo-nos a problemas tais como são formulados pela linguagem. Corolário: dentro da própria pergunta que - previamente - formulamos, já se encontram as possíveis respostas que podem saná-la, respostas coexistentes ao problema colocado. Seja na filosofia especulativa, seja na ciência empírica, sejam em nossas práticas do cotidiano, trata-se mais de encontrar um verdadeiro problema que de resolvê-lo. O conjunto-solução é irmão gêmeo da função-problema e encontra-se coberto, em toda a sua simplicidade, pela complexidade de termos e conceitos da questão. Trocadilha o menino, então, que - posto o problema - resta des-cobrir a resposta.
Coisa bonita de se ver na obra de Bergson é a sua crítica aos falsos problemas. Lembrem de nossa conversa sobre o Zenão. Mudança, movimento e tempo postos em termos de imutabilidade, imobilidade e espacialidade. Zenão põe problemas que emperram, travam, dãobug. Melodia que cai no ritornelo, igual àquelas sonatas do Beethoven "executadas" num celular. Problemas que não levam à lugar algum, visto estarem bem fixados em espaços mal definidos. Igualmente mal colocado é o problema da origem do Ser. Quer o chamemos de matéria original, de razão espiritual, de princípio motor, de Deus ou de qualquer outra palavreta, caímos numa mesma querela. Para esta causa primeira, deve - seguindo a mesma lógica que rege seus consequentes - ter havido uma causa a lhe servir de antecedente. E uma causa da causa. E uma causa da causa da causa. E assim vamos desenrolando o novelho, como um gatinho brincante, até ficarmos totalmente paralisados numa rede caótica de pontos a nos emaranhar. Implícito a este problema está a seguinte crença: o Ser veio preencher um vazio, um nada que preexistia à existência deste Ser mesmo. Antes do Ser, não tinha nada. Ou, dito doutra maneira, antes do ser não tinha "coisa alguma"; ou, refinando ainda mais nosso pensamento, tinha o Nada!
O Nada, neste esquema, preexistia ao Ser como que de direito, sem exigir explicação. A superioridade de Bergson não está na sua inteligência. Ele não resolve o problema! Mas - garoto esperto - ele não o coloca. Sabe que quando se fala em Nada, caminhamos no terreno da pura especulação; lidamos, assim, com uma idéia pura feita para fazer funcionar o problema anteriormente posto. O Nada é só uma miragem, uma idéia, uma palavra. Pensar nestes termos vazios, nos quais o Ser brinda o Nada com a sua chegada seria - usando uma metáfora do próprio - supor que há mais numa garrafa bebida pela metade que numa garrafa cheia, pois nesta última há apenas vinho e, na primeira, vinho e vazio! Outra querela muito semelhante - e igualmente falsa - é a batalha dialógica em cima da Ordem universal e do Caos que o precede. A mesmíssima peça que, embora contracenada com atores outros, mantém os mesmos personagens.
Ambas as ilusões - tanto o Nada quanto o Caos - velam um mesmo erro. O erro de que há menos no vazio e na desordem que no Ser e na Ordem. Se forçarmos a vista só um pouquinho, veremos que há mais "idéias" no vazio que no Ser, na desordem que na Ordem, quando os primeiros representam algum conteúdo intelectual. Dois exemplos podem elucidar tal assertiva: um clássico, do Bergson; e outro meu, vividamente meu. Primeiro, o do menino. Se eu levo um brother para um cômodo de minha casa que ainda não mobiliei, direi a ele que no quarto não tem nada, mesmo sabendo que o ambiente está cheio de ar. E de poeira. E de teias de aranha. E de micróbios. Mas como não é sobre nada disso que sentamos nem é nenhuma dessas coisas que estamos a esperar ou precisar, nada disso conta. Tanto pra ele, quanto pra mim. Agora o meu exemplo, o qual já vivenciei pelos seus dois gumes. O professor que formula uma questão para seus alunos! Ao colocar um problema a ser resolvido pela classe, o docente espera uma determinada solução, aguardando que determinados pontos sejam cobertos pela escrita do alunado. Caso um respondente entenda a pergunta duma maneira inesperada ao professor, sua resposta será totalmente vazia de sentido a este. Será o mesmo que Nada! E é aí que caímos num outro termo mal-analisado: o possível. Com o desenrolar imprevisível da realidade, tendemos a projetar para o passado - retrospectivamente - aspectos que consideramos no presente. O possível é a miragem do presente no passado!
As questões, para Bergson, devem - antes de qualquer coisa - ser postas em termos temporais, não espaciais. Os conceitos e termos devem colar no objeto, respeitando a sua duração mesma. No entanto, se quisermos analisar a duração, seremos obrigados a entrar no jogo programático da inteligência e a seguir sua natureza. Devemos tentar recompo-la numa multiplicidade de estados de consciência sucessivos. Infelizmente! Sucedâneo de instantes, assim como a flecha de Zenão! Esta sequência de pontos - tão numerosos quanto mais obsessivo for nosso esforço intelectual - forma uma trajetória unitária. É o colar de contas bergsoniano! Essa multiplicidade abstrata e essa unidade abstrata, combinadas, não devem pretender sintetizar a duração num conceito, mas sim nos causar uma tensão bem determinada, nos instalar no ponto exato onde uma intuição pode ser apreendida. Intuição, esta, que é o "de-fora" da inteligência, visão sintética que, para ser objetivada, deve passar pelas analíticas conceituais - ponto por ponto - da linguagem intelectiva.
Se a linguagem, típica da inteligência, reúne todas as diversidades num único pacote conceitual pelas suas similitudes, a intuição tem, como objeto, a diferença. E aqui utilizo - Oh, menino que gosta duma poesia! - mais uma metáfora do Bergson (que ele pede emprestada de Ravaisson, na verdade) para nos indicar a clareira desta floresta negra. Pensemos nas cores do arco-íris, do vermelho ao violeta. Há duas maneiras de se fazer filosofia em cima delas. A primeira - inteligente - é dizer que todas são cores! Laranja, amarelo, verde, azul, anil. Mas faz-se notável que, para obtermos esta idéia geral - o conceito de cor - apagamos do laranja o que faz dele laranja, do anil o que faz dele anil, do verde o que faz dele verde. "Cor" é uma definição negativa, visto que representa o vazio. O trabalho deste filósofo é unificar o plural, extinguindo a luz que diferencia as diferentes nuances e confundindo-as todas na treva do universal. A unificação segunda - intuitiva - lida com os infinitos matizes e os faz convergirem, através duma lente, a um mesmo ponto. Este filósofo busca a luz branca, pura, do qual todos os raios multicolores provêm! Enquanto o primeiro pensa "o que é isto?", o segundo se questiona "o que faz com que isto seja isto e não aquilo?", "de onde provém isto?" ou "como isto é possível?". Bergson, figurado como anti-intelectualista, não nos convida a abandonar nossas razões, mas a abrir os nossos olhos para uma casualidade para além do causal, do fixo e do determinado. Um convite que, embora ainda receoso e deslocado, eu já aceitei. Grita o menino em meus ouvidos: menos conceitos e mais vida!...