quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Cidades de mil olhos

Em: http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2009/12/23/ult5772u6705.jhtm


23/12/2009 - 07h02
Um milhão de câmeras de segurança gravam São Paulo em reality show às avessas
Rodrigo BertolottoDo UOL NotíciasEm São Paulo

Quem transita pela capital paulista é gravado por mais de 100 câmeras diferentes, desde o elevador de seu prédio, aos cruzamentos de avenidas, à lojinha da esquina, à plataforma do metrô e até à mesa de trabalho. É tanta filmagem que daria para montar um longa-metragem diário e individual, tão arrastado como um filme iraniano e tão previsível como um blockbuster norte-americano.
Um reality show às avessas: 41 milhões de protagonistas e só poucas centenas de espectadores. Essa pode ser a definição do monitoramento eletrônico no Estado de São Paulo, que deve chegar até o final do ano com um milhão de câmeras de segurança (50% está na região metropolitana). A grande maioria está em mãos privadas.
Esse número foi projetado pela Abese (Associação Brasileira das Empresas de Sistemas Eletrônicos de Segurança), com base nas vendas em 2009. E deve causar arrepio em quem tem mania de perseguição, mas a polícia prefere não pensar nisso."No começo, achei que poderia provocar uma paranoia, mas na verdade houve muita aceitação e poucas críticas", comenta Dalmo Álamo, superintendente de operações da Guarda Civil Metropolitana, que aponta 83 câmeras para vigiar o centro de São Paulo.Suas lentes têm capacidade de zoom de um quilômetro para afastar ladrões, traficantes e camelôs. "Com essa capacidade poderíamos entrar pela janela dos apartamentos particulares, mas cada operador tem uma senha e um supervisor, para evitar qualquer desvio na função e quebra de privacidade", completa Álamo, que aponta a redução em 50% nos locais filmados.
Ele chama de hot spot (pontos quentes) os cenários gravados. Em 2010, mais 135 deles entraram no sistema, que deve ser integrado com o da Polícia Militar e CET (Companhia de Engenharia de Tráfego). E a tendência é migrar das objetivas para a periferia da cidade. "O videomonitoramento cria ilhas de segurança. O delito muda para outro lugar. E é para lá que mandamos nossos policiais", explica o superintendente.É obrigatório o paralelo com o livro "1984", do escritor britânico George Orwell, que relata uma sociedade totalitária controlada pelo Big Brother (líder fictício cujo nome batizou o programa mundial de TV) por meio de "teletelas". O personagem principal escreve seu diário no único quarto que escapou do monitoramento estatal.O próprio sistema de circuito interno de vídeo foi criado em 1942 na Alemanha nazista, desenvolvido em parte pela empresa Siemens e usado durante a Segunda Guerra Mundial para observar o lançamento dos foguetes V-2. "Em um Estado brando como o nosso, as câmeras servem para segurança, mas em um governo policialesco poderiam servir para o controle político, assim como outras tecnologias", analisa Renato Janine Ribeiro, professor de filosofia da USP (Universidade de São Paulo) conhecido por suas opiniões sobre temas sobre violência.O parâmetro de Estado policial também é germânico: a Stasi, polícia política da Alemanha Oriental, com 90 mil agentes infiltrados plantando câmeras e microfones nas casas e minutando o dia-a-dia dos potenciais opositores. Segundo Mário Louzã, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, a combinação de tecnologias pode aumentar a sensação persecutória. "Colocar CPF nas notas fiscais ou rastreadores em carros geram mais informação sobre as pessoas do que as câmeras de segurança", afirma.
Já para Janine, a tecnologia é um instrumento que não gera poder, mas aumenta o poder de quem maneja esses vídeos - a maioria em mãos privadas. "A sociedade aceita porque essas câmeras criam uma sensação de segurança, mas é preciso estabelecer limites. Acho que as filmagens por celular podem ser perigosas, afinal, na maioria das vezes é difícil saber quem é o autor", opina o filósofo.De acordo com o advogado especialista em direito público Carlos Ari Sundfeld, ainda é necessária uma regulamentação para as empresas de segurança, as grandes detentoras de tantas imagens. "São verdadeiras guardas privadas que cresceram muito nos últimos anos. É preciso criar regras para a gravação, armazenamento e apagamento dessas imagens."Um exemplo disso é a empresa de segurança privada Haganá, que monitora 800 condomínios e 300 indústrias em São Paulo - chega a ter 100 câmeras em um único prédio. "Adotamos o conceito israelense de defesa: a guerra é da fronteira para fora. Por isso, as imagens têm que se concentrar na calçada do prédio, onde está nosso inimigo", define José Antonio Caetano, diretor comercial da empresa. Haganá, que significa "proteção" em hebraico, tem como diretor operacional José Bernardes Markuz, que serviu no exército de Israel.

O procedimento padrão, tanto em órgãos públicos quanto em empresas privadas, é apagar automaticamente as imagens armazenadas após um período que vai de uma semana a um mês. Em geral, apenas um encarregado tem acesso a esse conteúdo durante esse tempo.Contudo, o ponto mais frágil do processo e que pode gerar o vazamento de imagens por parte de hackers é a conexão das câmeras para as centrais de monitoramento. Em geral, é feita por banda larga. No caso do Metrô é diferente: como a companhia de transporte tem uma rede física, utiliza fibra ótica para a transmissão de vídeos.

A guarita blindada é o QG do prédio. O porteiro (ou controlador de acesso, como eles preferem chamar) é funcionário deles e não pode ser visto nem pelos moradores. Se deixa aberta a porta da guarita ou permite a entrada de alguém, é repreendido via rádio pelos operadores de monitoramento a quilômetros de distância. "Outro dia, um rapaz estranho entrou na guarita do prédio do [piloto de F-1] Felipe Massa. Acionamos nossas viaturas, mas depois descobrimos que era um pedreiro", conta Caetano. Para Janine, essa vasta profusão de câmeras atualmente causou o surgimento das "imagens-lixo". "São vídeos sem informação, sem interesse. É impossível ver tudo isso tamanha a profusão de imagens." Richard Pereira comprova diariamente isso. Ele é supervisor do Centro de Controle da Segurança do Metrô e comanda três operadores. O quarteto é encarregado de monitorar 948 câmeras, número que vai chegar a 1.400 no ano que vem. Um volume de pessoas entre catracas, corredores, vagões e plataformas desfilam diante deles durante as oito horas de expediente, acionando via rádio quando algum imprevisto acontece. "Os trens e os passageiros seguem linhas retas. Qualquer movimentação diferente chama a atenção. Dessa forma podemos controlar tantas câmeras", passa a receita Pereira, que trabalha há 21 anos no metrô, que desde a inauguração em 1974 tem um sistema de TV interno. Só na estação Sé, há 35 lentes para acompanhar 750 mil pessoas que passam diariamente por lá.Muitas dessas imagens, porém, acabam nos telejornais, como parte dos "giros de reportagem" e "show de imagens", como a do bebê que caiu nos trilhos na Austrália ou a bêbada que quase foi atropelada nos EUA. "Antes as câmeras eram caras e estavam na mão de poucos. Hoje, a mídia tem que lidar com essas imagens que não são produzidas por ela", afirma Laurindo Leal Filho, professor aposentado da Escola de Comunicações e Artes da USP. Para Leal, um dos reflexos da enxurrada dessas imagens no noticiário é as pessoas se acostumaram com a estética desbotada e desenquadrada dessas câmeras. "Durante 30 anos o brasileiro foi condicionado com o tal padrão Globo de qualidade, mas essa profusão de câmeras e a internet derrubaram isso. As pessoas querem o conteúdo desses flagrantes. Acho que até por isso a TV digital não emplacou por aqui. As pessoas não querem ver o fio da bolinha de tênis, querem ver imagens que tragam informação, mesmo com a baixa qualidade dessas câmeras de segurança", analisa.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

As cidades invisíveis dos fragmentos narrativos

“A oitenta milhas de distância contra o vento noroeste, atingi-se a cidade de Eufêmia, onde os mercadores de sete nações convergem em todos os solstícios e equinócios. O barco que ali atraca com uma carga de gengibre e algodão zarpará com a estiva cheia de pistaches e sementes de papoula, e a caravana que acabou de descarregar sacas de noz-moscada e uvas passas agora enfeixa as albardas para o retorno com rolos de musselina dourada. Mas o que leva a subir os rios e atravessar os desertos para vir até aqui não é apenas o comércio das mesmas mercadorias que se encontram em todos os bazares dentro e fora do império do Grande Khan, espalhadas pelo chão nas mesmas esteiras amarelas, à sombra dos mesmos mosqueteiros, oferecidas com os mesmos descontos enganosos. Não é apenas para comprar e vender que se vem a Eufêmia, mas também porque à noite, ao redor das fogueiras em torno do mercado, sentados em sacos ou em barris ou deitados em montes de tapetes, para cada palavra que se diz – como ‘lobo’, ‘irmã’, ‘tesouro escondido’, ‘batalha’, ‘sarna’, ‘amantes’ – os outros contam uma história de lobos, de irmãs, de tesouros, de sarna, de amantes, de batalhas. E sabem que na longa viagem de retorno, quando, para permanecerem acordados bambaleando no camelo ou no junco, puserem-se a pensar nas próprias recordações, o lobo terá se transformado num outro lobo, a irmã numa irmã diferente, a batalha em outras batalhas, ao retornar de Eufêmia, a cidade em que se troca de memória em todos os solstícios e equinócios.” (As Cidades Invisíveis, Italo Calvino)

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Eufêmia, cidade invisível descrita pelo escritor italiano Ítalo Calvino, habita o tecido urbano de Aracaju. Nas manhãs de sexta feira na rua Coronel João Gonçalves do Bairro Castelo Branco (rua da famosa sorveteria Castelo Branco que dá na praça da Caixa d’água), acontece uma feira livre. Lá encontramos variados tipos de mercadorias oferecidas: vendem-se desde frutas, verduras, carnes, peixes, aves, arroz, feijão, farinha, ervas e laticínios até utensílios de casa, roupas, DVDs, relógios, cadeados, produtos de limpeza e mesmo filhotes de cães à R$ 5,00. No entanto, são coisas possíveis de serem encontradas em outras feiras ou supermercados. Seus produtos de comércio, como em Eufêmia, não dizem da sua singularidade.

Este mercado a céu aberto é organizado em três fileiras de bancas metálicas cobertas por lonas de cores opacas, criando, assim, dois corredores estreitos para o fluxo de pessoas, carrinhos-de-mão para transporte de compras, bicicletas e para a realização do negócio. Este comércio não está somente preso à disponibilidade das mesas, realiza-se também no chão e em suportes improvisados, além de alguns negociantes que vendem suas mercadorias transitando pelo local.

A feira livre do Bairro Castelo Branco constitui na rua um espaço de acontecimentos. Porém, sua geografia diz de um espaço esquadrinhado para melhor eficiência do controle e organização dos corpos. Suas bancas sugerem um ordenamento preocupado com a higiene pública que atravessa as práticas do planejamento urbano. Bancas de carnes, aves e peixes não podem existir frente aos estabelecimentos de comércio e às habitações - são então alocadas nas praças onde o odor de seus restos orgânicos pode ser melhor sanado.

Não abandonando a mesma lógica de racionalização do espaço, é importante observar as praticas de vigilância. É comum ver policiais transitando pela feira, pois existe um posto policial na praça da caixa d’água. Eles tencionam evitar o distúrbio, os furtos, as brigas e garantir um funcionamento ordeiro da vida. Com efeito, fiscais da Empresa Municipal de Serviços Urbanos verificam se as leis que regulamentam a feira livre estão sendo cumpridas. É interessante atentar, pois ele não está lá para realizar cobranças, porém exerce função exclusiva de policiamento extensivo através da organização da feira. Os negociantes o chamam de “o rapa”, pois guarda o poder de apreender os produtos e equipamentos quando não normatizados.

Estes movimentos trabalham segundo uma mesma lógica de gerência da vida que apareceu a partir do século XVI na problemática do governo - o que Michel Foucault chama de artes de governar. Ela aparece com relação a questões bastante diferentes e com dimensões múltiplas como, por exemplo, problema do governo de si; problema do governo das almas; problema do governo das crianças; problema do governo do Estado. As artes de governar, se infiltraram no aparelho estatal produzindo novas práticas que substituem as do poder soberano ao tempo que cristalizam o que se chama de razões de Estado

Então, é a lógica racionalista do Estado liberal que possibilita a instauração, na tessitura do espaço urbano, de técnicas e procedimentos para o governo dos vivos, ao que se chamou biopolítica: entendam isto como a maneira pela qual se tentou, desde o século XVIII, racionalizar os problemas propostos à prática governamental, pelos fenômenos próprios a um conjunto de seres vivos constituídos em população. Partilhando este quadro de práticas biopolíticas, foi em determinado momento de nossa história que nasceu um tipo específico de medicina que pode ser chamada de medicina social pela maneira como tematizou a questão da saúde da população e procurou intervir sistematicamente na cidade de maneira geral, objeto privilegiado de suas práticas. O urbano é visto pelos fazeres higienistas como lugar da desordem, do amontoado de corpos que se encontram e transmitem entre si males diversos. O que é então efetivado é a própria transformação da cidade; é sua adequação a um plano geral de funcionamento e evolução; é a abolição de todo acúmulo e a ordenação de todo contato. Em suma, com a medicina social do século XIX, nasce o planejamento urbano.

Na feira do Castelo Branco, as gerências da vida visam ordenar as práticas infames que permeiam o cotidiano. A cidade é então um espaço tenso entre as tecnologias de higiene para controle das populações e as difusas artimanhas das gentes inventando espaços efêmeros e precários para que a vida escape. Sobre isto se abre passagem para a potência das artes cotidianas de fazer, microfísica das resistências que se efetuam no dia a dia frente às limitações verticalmente colocadas. Como disse Michel de Certeau “No limite, esta ordem seria o equivalente daquilo que as regras de metro e rima eram antigamente para os poetas: um conjunto de imposições estimuladoras da invenção, uma regulamentação para facilitar as improvisações”.

Com um certo olhar mais demorado é possível ver nas fissuras das forças gerenciáis cidades invisíveis dentro da cidade, suas singularidades. Ali se produzem fragmentos de Eufêmia no Castelo Branco, possíveis não através de uma naturalização da feira-livre como isto ou aquilo, mas pela observância de suas práticas. Como na cidade dos solstícios e equinócios, um espaço de encontros possíveis e de histórias possíveis. Aqui habita o interesse em iluminar as vidas obscuras, existências anônimas deixadas às sombras do poder sem maiores importâncias: ou seja, produzir e fazer aparecer aos olhos, narrativas da vida dos homens infames. Objetos raros que brotam do asfalto cotidiano.

E são tantos estes infames da vida ordinária. Vidas que pertencem a essas milhares de existências destinadas a passar sem deixar rastros, não fossem os microscópicos combates urbanos, as pelejas cotidianas, as práticas efêmeras que não objetivam glorias e somem na velocidade do acaso quando do encontro com o poder coercitivo que se exerce nos meandros da vida cotidiana onde o banal é analisado segundo a fina rede cinza da administração, da mídia e da ciência. Como diria Foucault: “Assim é a infâmia estrita, aquela que, não sendo misturada nem de escândalo ambíguo nem de surda admiração, não compõe com nenhuma espécie de glória”.

São mulheres que penduram panos e lençóis por trás das bancas para protegerem-se do sol e narram histórias da vida na feira e na cidade, enquanto descarnam pés e mãos de boi ou vendem meio quilo de fígado ao freguês que para, compra, às vezes conversa e se vai. Homens que enraivecidos esbravejam contra as últimas sugestões dadas pelos órgãos públicos para regulação e progressiva higienização da feira como a possível implantação de refrigeradores que impossibilitariam financeiramente o trabalho de muitos feirantes. Jovens que trabalham indo e vindo carregando compras de outrem e fazem também a comunicação da feira com outros espaços da cidade ou simplesmente tomam, ou fingem tomar, conta dos carros em troca de algumas moedas.

As gerências da vida investem justamente no empobrecimento da experiência que é de cunho coletivo. Assim dificultam a atividade narrativa da vida infame já que apregoam um modo individualizante e disciplinado de existir. Porém é neste processo que esta pesquisa se inscreve e toma uma dimensão política. Disse Walter Benjamin que a narração é um processo artesanal e tem como matéria prima a experiência. É justamente a partir desta experiência urbana que são potencializadas essas histórias que contam miudíces dos combates inglórios, cidades invisíveis então.

Potencializar histórias do homem comum abre espaço para que a vida passe e efetue a implosão de alguns “universos carcerários” que nos atam a engessamentos do real. “Dessa implosão, pedaços de histórias incompletas, fragmentos de narrativas seriam montados pelas urgências políticas do agora, atentas às que ficaram no passado na metade do caminho, inacabadas, interrompidas pela força da barbárie ou pelo esquecimento ávido de futuro”, diria Luis Antônio Baptista. E neste sentido se intenta produzir condições para que, partindo de seus limites, efetuem-se ultrapassamentos dessas histórias esquecidas, histórias indecisas que podem funcionar como minúsculos artefatos bélicos na guerra política da vida.