terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Você acredita na realidade?

Esse questionamento, aparentemente absurdo, dá nome ao primeiro capítulo dum livro elaborado para dar conta da querela – A Esperança de Pandora – tratando de maneira original a já gasta discussão sujeito-objeto, inserindo nela a conceituação de humano e não-humano. Latour, recomodando suas interpretações iniciais ante semelhante pergunta, e ao perceber a desconcertante diferença apregoada entre cientistas e “estudiosos da ciência” pelos organizadores da Wenner-Grenn Foundation, coloca que o fato de estudar um assunto não significa que se o esteja atacando. Astrônomos não desprezam as estrelas, imunologistas não se opõem aos anticorpos e biólogos não odeiam a vida.
Se seus estudos científicos vingaram em algo, pensava ele, seria justamente em ter trazido realidade à ciência, não o oposto. Ao invés duma objetividade pálida, Latour demonstrava que a prática de laboratório tinha história, cultura, vida, sangue! Mas percebeu sua ingenuidade pouco depois. O que chamava de “acréscimo de realismo à ciência” era chamado, pelos cientistas, de “ameaça ao apelo da ciência, um modo de reduzir-lhe o grau de verdade e as pretensões à certeza". Não há, no mundo inteiro, uma única situação na qual alguém possa ouvir, normalmente, a nossa pergunta inicial, a mais estranha das perguntas. “Você acredita na realidade?”. Perguntar se alguém crê na realidade só se dá no caso de alguém que se distancia a tal ponto do real que o medo de perdê-lo se torne justificável. E é a história intelectual desse medo que Latour esboça no desenrolar de sua escrita.
Essa pergunta esquisita já fora, de certa forma, posta por Descartes, ao inquirir como a mente podia estar “absolutamente” segura de um objeto do mundo exterior. Ao formular o problema, Cartesius inviabilizou a única resposta razoável: estamos “relativamente” seguros dos objetos com a nossa lida cotidiana dentro da prática laboratorial. O caminho traçado pelo francês – a título de curiosidade, Deus – para restabelecer o contato de sua mente sem corpo com o mundo exterior era um tanto longínquo. Em busca dum atalho, algumas pessoas se perguntavam se o mundo não poderia nos enviar, diretamente, informações capazes de gerar imagens estáveis do mundo em nossas mentes.
Entretanto, com este aparentemente novo problema colocado, os empiristas seguiram pela mesma estrada. A tábula rasa dos empiristas é tão desconectada quanto a mente cartesiana. O cérebro extirpado, exigindo equipamentos para a manutenção de sua vida artificial, troca um kit de sobrevivência por outro. Se antes tínhamos Deus, agora temos uma mente bombardeada por um mundo reduzido a estímulos sem sentido, mente que extrai destes mesmos estímulos todo o necessário para formar e reformar o mundo!
Os filósofos, para não voltarem atrás e tomarem um outro caminho até abandonam a exigência de certeza absoluta e improvisam uma solução para salvaguardar um pequeno pedaço da realidade exterior. Essa rede neural de associações dos empiristas mostra-se incapaz de fornecer, por si mesma, uma imagem do mundo exterior. Isso provava, para eles, filósofos, que a mente (ainda extirpada e separada da realidade, vale salientar), tira “de si mesma” tudo o de que necessita para construir suas histórias. O a priori kantiano, vendido como a revolução copernicana no pensamento, é uma ficção científica bizarra que nem Descartes, Hume ou Deus poderiam imaginar. Para Kant, é o mundo (exterior) que gira ao redor da mente (extirpada), sendo esta que dita as leis universais, mas leis que tirou de si mesma e sem a ajuda de ninguém!
As pessoas, não muito mais tarde, perceberam que esse tal sujeito transcendental – como Kant o chamava – era, tão somente, uma ficção explanatória, uma posição de compromisso num acordo para evitar a perda do mundo ou o abandono pela busca da verdade absoluta. Sai o planetóide kantiano e, em seu lugar, entra a “sociedade”. A mente escultora da realidade cede passagem às categorias e representações sociais. Latour, porém, faz quatro adendos quanto à substituição doEgo pelo Socius.
Em primeiro, tal substituição não refez a caminhada trôpega realizada até aqui e distanciou ainda mais o sujeito de seu mundo exterior; se antes as pessoas ficavam isoladas em suas próprias categorias, agora estão trancafiadas dentro de seus próprios grupos sociais. Segundo, esta mesma sociedade não passa dum agregado em série de mentes extirpadas; muitas e muitas mentes, mas todas funcionando isoladamente na contemplação do tal mundo exterior. Em terceiro, Latour pontua o comprometimento do que Kant propôs de melhor, a saber a universalidade de suas categorias a priori; as mentes individuais, desvinculadas umas das outras e do mundo, cedem às mentes coletivas e à cultura, tal qual prisioneiros que, antes separados uns dos outros por celas individuais, isolam-se cada vez mais em prisões diferentes e desconexas. Por fim, a razão quarta: o medo da tirania da massa! Em resumo, “é a ressonância desses dois medos, a perda de um acesso certo à realidade e a invasão da massa, que tornou a pergunta ao mesmo tempo tão injusta e tão séria”. Sobre o medo do governo da massa, discorreremos pouco mais adiante.
Um dos engodos em forma de solução tão comumente assumidos diante dessa trama é aceitarmos com prazer a perda das certezas. Possuímos uma velha posição e todo defeito dela é visto como qualidade. Perdemos o mundo, ficamos presos à linguagem, foi-nos tomada toda a certeza absoluta. E bate-se palmas à isso! Não avançamos um milímetro desde Descartes: a mente continua em sua cuba, desvinculada do resto e a contemplar o mundo através da parede de vidro de seu receptáculo. Há aqueles que gargalham gostosamente da situação toda, felizes pela sua livre construção de narrativas e histórias, mas continuam prisioneiros acorrentados a descer, jubilosamente, as escadas de sua danação.
Uma segunda solução, brilhante, foi proposta. Ei-la: retiramos apenas parte da mente de sua cuba, colocamo-a num corpo e lançamos este corpo no mundo que – coisa boa! – já não é mais uma realidade a ser contemplada, mas uma extensão viva de nós mesmos. Já não dispomos de uma mente em contato com o exterior mas sim de um mundo vivo ligado a um corpo intencional. Infelizmente... essa operação divide a mente em pedaços ainda menores. A fenomenologia, por tratar apenas do “mundo-para-uma-consciência-humana”, nos dá uma nova separação: de um lado, o frio e inumano mundo da ciência; doutro, o mundo humano das instâncias intencionais, rico e dinâmico, mas separado e ignorante ao que as coisas são em si e para si mesmas.
Caso a fenomenologia deixasse a ciência correr em sua própria trilha, o sentido oposto, seria ainda pior. A mente feita cérebro, o homem feito fenômeno natural e a filosofia feita neurologia. Trocaríamos a história humana por uma luta darwiniana pela adaptação a uma realidade que – vejam só! – nem conhecemos. Regressar o caminho tomado soa-nos perigoso por causa do medo do governo da massa já mencionado. Retomemos este ponto.
Como disse Latour, dois medos inspiraram seu amigo a fazer aquela estranha pergunta. O primeiro é o medo do cérebro extirpado em perder contato com o mundo exterior, cuja história acabamos de delinear. O outro, o medo da massa, tem uma história mais antiga, originada no velho “se a razão não governar, a força prevalecerá”. De onde se originou este debate pouco importa, mas no Górgias, de Platão, ele é apresentado com muita clareza. O que se afigura não é a simples oposição entre razão e força, o direito e o poder, filosofia e retórica, Sócrates e Cálicles, mas o poder de um, o patrício, contra a força de muitos, a massa. Sócrates é irônico quanto ao poder de Cálicles, mas ele mesmo defende e tenta manejar um poder maior, capaz de controlar os “dez mil papalvos”: o poder da igualdade geométrica, o poder da razão, ignorado por Cálicles e pelos atenienses. Latour, desconfortável no tocante à idéia dum mundo exterior, pergunta: “por que gravar essa mente solitária com a tarefa impossível de descobrir certeza absoluta ao invés de conectá-la a circuitos que lhe forneceriam todas as certezas relativas de que ela necessita para conhecer e agir?”. E aponta sua resposta: “é para evitar a multidão desumana que temos de confiar em outro recurso não-humano, o objeto objetivo intocado por mão de homem”.
Nem a massa lá embaixo, nem o mundo lá fora. Não se deve temer perder o acesso ao mundo ou uma força superior contra a massa. Não se deve sentir falta da certeza, a menos que queiramos dominar o povo. Quando nos recusamos a pôr as disciplinas científicas nessa querela sobre quem deve dominar o povo, o realismo retorna, mas um “realismo mais realista”, de um mundo híbrido de humanos e não-humanos, pessoas e deuses, estrelas e elétrons, usinas nucleares e políticas de mercado.
No entanto, a sensação de que uma guerra científica está em movimento é inegável. Os cientistas estão sempre atentando sobre a necessidade de lançar ponte entre essas duas culturas, debate este que tem sua origem numa divisão de trabalho entre os dois lados de uma trincheira bordeada no próprio Campus. A originalidade dos estudos científicos, propostos por Latour, é combater ao mesmo tempo estas duas purificações. Aos cientistas, afirma que quanto mais conectada ao coletivo uma ciência estiver, mais precisa, verificável e sólida tornar-se-á. Aos humanistas, diz que quanto mais não-humanos partilharem existência com humanos, mais humano um coletivo será. Indo de um partido a outro, e traindo a ambos, Latour insiste tanto na “história social das coisas” quanto na “história coisificada dos humanos”, contrariando as crenças e reflexos condicionados a que tanto epistemologistas e humanistas cultivaram em seus anos de adestramento.
Latour, incisivamente, fala da passagem da Ciência para o que chama de Pesquisa (ou Ciência Nº 2). A Ciência é fria, distante, objetiva e pretensamente necessária. A Pesquisa, sua irmã mais nova, é incerta, aberta e está sempre às voltas com coisas insignificantes para a Ciência, como dinheiro, condições de trabalho e reconhecimento entre pares, sendo indistinto a ela tanto o humano quanto o não-humano. Quando fala, no entanto, de híbridos e miscelâneas afins, Latour parece seguir o mesmo caminho daqueles prisioneiros acorrentados a empreender uma descida ao inferno e a não ligar muito se as palavras referem-se ou não às coisas. O mesmo, no entanto, coloca: assim como há uma batalha travada entre os resmungões de guerra fria da Ciência e o modelo da Pesquisa, há uma outra luta se desenrolando nas chamadas humanidades: o que, frouxamente, é chamado de pós-moderno versus aquilo que o Latour chama de não-moderno. Se o primeiro preza por uma “desconstrução”, a ordem do segundo é desenvolver, afirmar e construir.
A luta pró ou contra a verdade absoluta, o relativismo ou a construção social não é o importante. Não é a relação palavras-mundo que aqui interessa, mas a política de coisas decorrente da tarefa de extrair o “cosmo” de uma “desordem”. Latour não pretende reduzir a ciência à “mera construção social pela massa convulsa”, mas aposta neste seu meio de libertar as ciências da política ou, ao menos, dessa política apolítica da razão, acordo entre epistemologia, moralidade, psicologia e teologia que, em seus esforços para estabelecer fatos, refinavam a antiga questão de como controlar melhor as pessoas...

LATOUR, Bruno; “Você acredita na realidade?”; In: A Esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos; trad. Gilson C. C. de Souza; Bauru, SP: EDUSC, 2001; pp. 13-37.