segunda-feira, 25 de abril de 2011

O Lugar Antropológico - Marc Auge

Qual é o lugar de pesquisa para o etnólogo? Auge vem afirmar que seria o mesmo lugar onde ocupam os indígenas, ou aqueles a quem estuda, onde eles trabalham e defendem contra ameaças externas. Esse autor vem trazer em sua obra “Não Lugares” uma compreensão quanto a pesquisa antropológica, remetendo a ideia das pesquisas pelos etnólogos sobre indígenas. Aqui nesse texto se tentará fazer um paralelo das explicações dadas por Auge com a pesquisa na feira.

Auge vem afirmar que o lugar comum tanto dos etnólogos quanto dos indígenas pode ser considerado invenções, já que a marca social do solo nem sempre é original. O etnólogo ao reencontrar essa marcação através de sua intervenção e curiosidade, devolve aos indígenas o gosto pelas origens que os fenômenos ligados à atualidade atenuaram como a migração de cidades, novos povoamentos e extensões das culturas industriais.

Pensando isso para o campo da feira, significaria dizer que a inserção do pesquisador no meio dos feirantes poderia estar estimulando ou motivando um certo orgulho ou interesse em continuar participando da feira. Ao mesmo tempo, não se pode afirmar que não exista uma valorização sendo criada não só pelos feirantes envolvidos na pesquisa, como pelo pesquisador.

De acordo com Auge, existe uma dupla invenção ou concepções criadas na pesquisa antropológica, uma refere-se ao pensamento dos indígenas diante do lugar e outra a dos pesquisadores ou etnólogo. A primeira invenção Auge chama de Fantasia indígena que remete aos tempos imemoriais de uma terra intocada, um mundo fechado, onde tudo já se conhece e se assegura a estabilidade através da legitimidade dos relatos de origem e o calendário de rituais.

Esses artifícios ou ideias propagadas pelos indígenas exprimem a identidade do grupo, defende uma tribo contra as ameaças externas e fissões internas, conservando um sentido da identidade da linguagem. Mas essa fantasia do lugar fundado, o qual é incessantemente refundado, é considerada uma semifantasia, visto que se deve aos dispositivos de adivinhação e prevenção. A partir destas estratégias é possível fazer com que ninguém duvide da realidade do lugar comum e dos poderes que o ameaçam ou o protegem, nem a realidade dos outros grupos. Nada permite duvidar desse mundo fechado e auto-suficiente com o qual se identificavam os mitos aproximados aos solo e que fundava uma singularidade.

A feira pode ser considerada um lugar onde se construiu uma história, costumes, modos de se portar na comunidade. Há a fantasia de que ser um lugar que nunca se acabará, já que muitas gerações já passaram por esse lugar. Porém essa fantasia não se sustenta diante das diversas ameaças de uma facção de pessoas que não toleram a feira, geralmente comerciantes locais que sentem ter suas vendas prejudicadas. Algumas feiras possuem sua associação de feirantes, mas nem todas se mantém e continuam na luta pelo bem comum, enfim, algo a se investigar caso a caso.

A segunda invenção nas pesquisas antropológicas Auge denominou de Ilusão do Etnólogo o qual remete a aquilo que se estuda, a uma sociedade transparente, que acaba encontrando a semifantasia dos indígenas, sendo considerada uma semi-ilusão. O etnólogo fica tentado a identificar aquele que estuda através da paisagem e espaço descoberto e que eles indicam. Mas os indígenas ignoram a história, sua mobilidade, a multiplicidade de espaços dos quais se referem e a flutuação de suas fronteiras, por sua vez de suas identidades. Tentam se apegar a uma estabilidade do passado.

A esse movimento de querer manter uma imagem identitária arraigada ao passado poderia se chamar de “tentação da totalidade”. Auge expõe duas ideias de totalidade do fato social: uma que se remete a Mauss e outra de Levi-Strauss. A primeira se ramifica em mais duas que acredita na totalidade ser a soma das diversas instituições ou também ao conjunto das diversas dimensões que compõem a individualidade de cada um. De acordo com Mauss, o homem médio na sociedade moderna seria qualquer um que não pertencesse a elite. Nesse sentido, a sociedade moderna possuiria um objeto etnológico dominável, localizado no tempo e espaço. Levi-Strauss vem afirmar que o fato social é algo totalmente percebido, cuja interpretação está integrada a visão que se tem de qualquer um, baseando-se na concepção do homem “médio” ou “total”, que é afetado por tudo e qualquer coisa. De qualquer forma, as ideias de totalidade e sociedade localizada remetem a uma transparência entre cultura, sociedade e indivíduo.

Uma função ideal para os etnólogos é caracterizar particularidades singulares, de forma que cada etnia fosse diferente da outra. Porém essa visão culturalista da sociedade tem limites, pois substantificando cada cultura singular se ignora tanto o caráter problemático (quando há reações ante às outras culturas e movimentos bruscos da história), quanto a complexidade da trama social e de posições individuais. Apesar das desvantagens em se afirmar uma postura identitária definitiva uma sociedade, não se deve ignorar a fantasia indígena e a ilusão etnológica que, na organização do espaço e constituição de lugares, compõe as motivações e uma das modalidades práticas coletivas e individuais no interior de um mesmo grupo social.

Voltando ao campo da feira como exemplo, a concepção que se construiu ao longo da história que se tem desse lugar já produz nos indivíduos algum afeto e os prepara para o que encontram nesse ambiente. Ao mesmo tempo, cada feira tem suas particularidades, seus modos de se organizar, as pessoas que a compõem, entre outras características que são compartilhadas numa comunidade. Essas características compartilhadas contribuem para se construir uma opinião generalizada sobre esse lugar, que ao mesmo tempo faz imaginar uma identidade contribui na união entre os que fazem parte, principalmente, os feirantes. Estes podem se sentir impelidos a organizar associações que os ajudem a manter esse lugar.

Auge vem afirmar que se constitui uma necessidade para as coletividades pensar a identidade e a relação, que para tanto deve simbolizar os constituintes da identidade partilhada (conjunto de um grupo), da identidade particular (determinado grupo ou indivíduo) e identidade singular (indivíduo ou grupo não semelhante a nenhum outro). Para fazer essa simbolização, um dos meios é o tratamento do espaço, que faz com que o etnólogo se sinta tentado a dar sentido do espaço ao social, como produzindo algo definitivamente. Esse é um percurso “cultural”, que se faz passar pelos signos mais visíveis, instituídos e reconhecidos da ordem social, o qual esboça um lugar comum.

A esse lugar comum Auge chama de Lugar Antropológico, que se caracteriza por uma construção concreta e simbólica do espaço, mas que não dá conta das contradições da vida social. Referir-se-ia a todos a quem designa naquele espaço. Este lugar seria um princípio de sentido para aqueles que habitam e um princípio de inteligibilidade para quem os observa, mas com uma escala variável. Auge acredita que existam pelo menos três características comuns que são identitárias, relacionais e históricas. A primeira pode ser representada como o lugar do nascimento como constitutivo da identidade individual, um lugar próprio, singular e exclusivo. A segunda característica diz do lugar que, para Michel de Certeau, tem seus elementos distribuídos em relações de coexistência, ao lado do outro, onde num mesmo lugar podem coexistir elementos distintos e singulares. Por último, o lugar histórico ao conjugar a identidade e a relação, definindo uma estabilidade mínima. “O habitante do lugar antropológico não faz história, vive na história” (AUGE, 1994, p.53).

Os percursos e recursos que desaparecem no lugar antropológico na realidade se transformam, pois já não falam mais de lembranças e recordações do tempo que passa ou o indivíduo que muda. Os habitantes se sentem turistas da intimidade desse lugar, espectadores de si a partir do momento que projetam os lugares que viveram através de celebrações, rituais e encenações. Essas transformações trazem uma série de consequências, como no fato do lugar antropológico ser ambíguo, uma ideia parcialmente materializada ou mitificada, quando varia a depender do lugar e do ponto de vista de quem ocupa. Além disso, uma série de marcas propostas e impostas pelo lugar quando desaparecem não voltam a ser preenchidas com facilidade. O etnólogo, sensível ao que observa, busca a proximidade do sentido, os signos.

A feira se encaixa e pode ser considerada um lugar antropológico, pois apesar das mudanças que carrega durante seu percurso histórico, diante das diversas gerações que passaram por ela, ainda se compõe um sentido, modos de experienciar a feira, um identidade que marca esse lugar. Aliado a essa construção identitária da feira, existem as contradições, as pesculiaridades de cada tipo de feira, a depender da localidade, dos habitantes que a compõem, dos feirantes que a organizam, de toda uma gama de fatores que não a tornam simples de se identificar, mas não deixa de promover uma ligação forte entre aqueles que fazem a feira.

Outra característica que pode ser constatada no lugar antropológico, de acordo com Auge, é o fato de ser geométrico. É possível percebê-lo em três formas espaciais simples que são aplicadas em dispositivos institucionais diferentes, que constituem as formas elementares do espaço social. Essas formas simples são a linha, a interseção de linha e o ponto de interseção que refletem nos dispositivos de itinerários, cruzamentos e centros os quais podem até coincidir parcialmente por não serem noções absolutamente independentes. Os itinerários são definidos como os locais de ajuntamento; já os mercados são pontos fixos que se encontram nos itinerários, funcionando como centro de atração. O centro de cidades são lugares ativos onde ficam espaços de maior movimentação como lojas, bares, hotéis, praça, sendo neste lugar que funciona a feira. O sistema rodoviário é que liga esses centros através de uma rede. Constrói-se dessa maneira uma complexidade institucional com esses vários espaços.

Já se sabe que a identidade e a relação estão no cerne de todos os dispositivos espaciais clássicos estudados pela antropologia. Auge vem afirmar que a história também faz parte dos espaços, pois também possuem duração. Além disso, as formas espaciais simples só se concretizam no e pelo tempo. Criam-se as condições de uma memória que se vincula a certos lugares e contribui para reforçar o caráter sagrado. Entende-se que a noção de sagrado está ligado ao caráter retrospectivo que decorre do caráter alternativo dos rituais.

Entre outros recursos que fazem menção a história do lugar existe o monumento que indica uma idéia de permanência, duração, continuidade das gerações. Cria-se uma ilusão monumental que permite a história não ser uma abstração. O espaço social possui muitos monumentos não diretamente funcionais que trazem a idéia de preexistência e que sobreviveram. Paradoxalmente, uma série de rupturas e descontinuidades no espaço representam a continuidade do tempo.

Pode-se considerar, de acordo com Auge, o corpo humano também uma porção do espaço, um espaço construído, hierarquizado, onde pode ser investido do exterior no plano da imaginação. O corpo seria então pensado como território, um lugar de culto. Nesse sentido o corpo centralizado se transforma em um monumento e dentro de um simbolismo político faz com que se expresse o poder da autoridade unificada. Este corpo simbolizado numa única figura soberana representaria as diversidades internas de uma coletividade social.

O soberano geralmente ocupa uma residência fixa, condenado a quase imobilidade, exposto no trono real, apresentado como objeto aos súditos. Percebe-se com isso uma passividade do corpo soberano. Mas existem outros corpos ou objetos, como o trono ou a coroa, que substituem o corpo do soberano para garantir o centro fixo do reino que o condena a longas horas de imobilidade. Interessante notar que justamente essa situação de imobilidade que reforça a perenidade da dinastia, que ordena e unifica a diversidade do corpo social. É através da identificação do poder num lugar fixo onde se abriga ou exerce como monumento ou representante que consta a regra do discurso político dos Estados modernos. A centralidade seria expressão mais aproximada para se pensar simultaneamente unidade e diversidade. Percebe-se que a metáfora geográfica perece dar conta da vida política que se quer centralizada.

Há nos espaços coletivos uma reinvindicação à profundidade histórica, bem como a abertura para o exterior, um equilibre o outro. Para tanto, vem-se colocando uma série de painéis que constituem uma espécie de cartão de visitas, que atraem o passante e turista, mas que só dá certo ao relacioná-los à história e a identidade arraigados na terra. Essa alusão ao passado torna mais complexo o presente. Entre os artifícios para acrescentar essa dimensão histórica tem-se os monumentos datados também se transformam em provas de autenticidade dessa história resgatada que provoca um interesse por si só. Além disso, tem os nomes de ruas, na maior parte das vezes são notabilidades da vida social e nacional ou grandes fatos históricos. Essa incessante referência a história provoca frequentes coincidências entre itinerários, cruzamentos e monumentos.

Mas a relação com a história está em vias de se artificializar, quando cidades se transformam em museus porque surgem desvios, rodovias e trens de alta velocidade que convidam a ignorar as marcas identitárias da terra e vestígios da história. Esse contraste ou paradoxo marcado por estradas de cidades, grandes conjuntos, zonas industrializadas e supermercados são locais onde existem os painéis que convidam a visitar monumentos antigos. Os locais de passagem ou grande aglomeração efêmera de sujeitos são usados a fazer referência a aquilo que dura, que possui história. Multiplicam-se as referências às curiosidades locais que deveriam nos reter, mas que na realidade só faz apenas alusão ao tempo e lugares antigos dizendo algo daquele espaço presente.

terça-feira, 5 de abril de 2011

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI: Livre adaptação de uma conferência sobre o cinema de Glauber Rocha

Acho que foi lá pelos idos dos anos 70 ou 80, quando Glauber Rocha esteve em Aracaju, no então Cine Vitória, no centro da cidade, mais ou menos onde é hoje a sede das Lojas Americanas. Casa lotada, o filme que o polêmico cineasta veio lançar em terras de Serigy era Terra em Transe. No elenco, só de Paulos tinham três de peso: o Gracindo, o Autran e o César Peréio. Ainda tinha Darlene Glória, Danuza Leão, Hugo Carvana e José Lewgoy, tudo para abrilhantar a mostra do filme e lotar ainda mais o Cine Vitória. Clima de entrega do Oscar!
O jornalista e crítico sergipano de cinema, Ivan Valença, era um dos que aguardavam a chegada de Glauber Rocha ao Cine Vitória, para iniciar a exibição do filme. Como o atraso foi ficando pra lá de qualquer tolerância (na época, o Cine Vitória não tinha ar condicionado, só ventiladores laterais!), Ivan Valença resolveu ir até a sala de projeção pra ver se estava tudo OK, para que, quando chegasse o Glauber, o evento começasse imediatamente. Para surpresa do Ivan, segundo seu próprio depoimento em uma conferência anos depois, a agonia era ainda maior na sala de projeção. É que os rolos (latas) dos filmes haviam chegado sem numeração – três ao todo. A dúvida atroz era: qual é o rolo número 1, o número 2 e o número três? Para que o filme fosse mostrado na “sequência lógica”, era preciso saber a ordem das latas, sem o que seria muito difícil “acertar” na projeção. Bem que tentaram colocar um pedacinho do filme de cada lata contra a luz, mas não adiantou muita coisa; o negócio, então, era esperar o Glauber chegar.
Agonias aumentando, a essa altura já além do limite, quando finalmente chega Glauber Rocha! Chega na tranqüilidade de sempre, aquele jeito meio zen, meio “acordei agora” ou “ainda estou pra lá de Bagdá”, e pergunta: Cadê o filme? Não chegou?
Todo mundo sobe correndo as escadas da sala de projeção e, na subida, vai o Ivan explicando:

- Glauber, é o seguinte... o pessoal tá aqui há mais de uma hora esperando, o calor tá insuportável, e a gente estava aflito pra você chegar, para nos dizer qual é a lata ou o rolo de filme que deve ser colocado primeiro na projeção.

- Então o filme chegou? Por que não começaram a projetar ainda? Estavam me esperando? Vocês não me conhecem mesmo, não é? Não é pra me esperar!

- Não, Glauber, não se trata disso. Estávamos esperando por você sim, mas não apenas pela sua presença. É que ninguém sabe qual rolo de filme colocar primeiro, só isso! Como é você o cineasta, estamos aguardando para você nos dizer; aí sim começamos a projeção.
Glauber Rocha, entre um sorriso e uma cara feia, completou:

- Gente, isso não tem a menor importância! Se estão esperando um filme com começo, meio e fim, e com uma história bonitinha para que o mocinho devore a mocinha, ou que o José Lewgoy mate o Paulo Gracindo a golpes de facão, desistam! Eu não faço cinema com enredo marcado, nem cinema por encomenda. Meu cinema é para sentir o que o cinema tem de sensação, de emocional, de som, de imagem sem foco, por aí vai. “Já vi que vocês não entendem porra nenhuma de cinema!”, no arremate típico de Glauber.
Diante da pequena platéia na sala de projeção, olhando para ele ainda sem entender direito, veio a finalização:

- Ah, querem mesmo saber qual é a ordem dos rolos de fita? É a seguinte: peguem a primeira que estiver à mão e coloquem para projetar. Depois uma outra qualquer e, por fim, a última. Se tiverem tempo, invertam a ordem e apresentem o filme de novo. Vocês vão ver que não faz a menor diferença!

Foi difícil entender de primeira. Mas algumas vezes depois de ver o filme em várias ordens, deu pra entender o que é que o cineasta estava mesmo querendo dizer. O cinema de Glauber Rocha não é o de Hollywood, nem é o cinema indiano, nem o francês. É o cinema de Glauber, talvez uma das maneiras mais próximas de entender, no mundo psíquico, o que quer dizer cinema! Não é para ter um enredo bonitinho; é para ter uma sensação direta e profunda.


Mário Celso N. Andrade - UFS/DPS