sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Foucault revoluciona a História (Paul Veyne) parte I

Antes de começar digo que este texto do Paul Veyne é um achado. Não no sentido em que foi perdido e, devido ao acaso ou mediante busca árdua, aparece novamente, visto que é então um texto considerado célebre quando se fala em comentário sobre Michel Foucault. No entanto, é justamente aí que se inscreve como um achado, uma raridade: em meio à insegurança que circula pela leitura de comentadores, estas linhas trazem novo ar à leitura dos textos foucaultianos. Explico, como disse o próprio Veyne, o texto tenciona apresentar a utilidade prática do método de Foucault e o faz belamente através de mostras de seu funcionamento, ou seja, para além das linhas carrancudas - redundantes nos ditos sobre a obra do filósofo-historiador -, Paul Veyne trata sim do método, mas o faz passar antes pela experiência. Ele diz então que são dois os seus deveres (p. 151): 1. falar antes como historiador que como filósofo; 2. falar mediante exemplos.

O exemplo do qual extrai raciocínios, nem ao menos é seu. Trata-se da explicação da suspensão dos combates de gladiadores trabalhada por Georges Ville em livro póstumo sobre a gladiatura romana. Para iniciar, uma intuição: “os fatos humanos são raros, não estão instalados na plenitude da razão, há um vazio em torno deles para outros fatos que nosso saber nem imagina” (p.151). Esta é a “intuição inicial de Foucault”, “não é a estrutura, nem o corte, nem o discurso”, é a raridade. Esta indicação possibilita uma leitura diferenciada dos acontecimentos como veremos seguindo a lógica do fim da gladiatura.

Uma resposta fácil se coloca frente à pergunta sobre o porquê da suspensão pouco a pouco dos combates durante o século IV de nossa era, quando imperavam reis cristãos: “essas atrocidades cessaram devido ao cristianismo” (p.152). Pois bem, Paul Veyne diz que os cristãos só reprovavam a gladiatura dentro dum quadro geral de condenação a todos os espetáculos. Dentre estes, pior era o teatro! Suas indecências e prazeres levavam o público a cometer pecados da carne, enquanto que o sangue que corria dos gladiadores conhecia um fim em si mesmo. Morre aqui esta resposta. Então será a resposta encontrada no humanitarismo, condição amplamente humana? “Também não é isso; o humanitarismo só existe em uma pequena minoria de pessoas com nervos fracos” (p.152); este é facilmente confundido com o sentimento de prudência onde se teme principalmente o risco da crueldade habitar as populações e levá-las a violência. Não é exatamente o mesmo que lamentar a vida humana dos gladiadores.

Na grande maioria da população, os gladiadores provocavam sentimentos ambivalentes de atração e repulsa, pois por um lado exercia o fascínio da morte, o gosto em ver sofrer, por outro havia a angustia de ver a paz pública agredida em seu seio por assassínios legais de não inimigos nem criminosos. Em Roma, ao contrário de muitas civilizações onde o medo político prevaleceu, a atração que as vedetes de arena exercia se sobrepôs e então instituiu-se a gladiatura. “A mistura de horror e de atração acabou por levar à solução de injuriar esses mesmos gladiadores que eram acamados como vedetes e de considerá-los impuros como o sangue, o esperma e os cadáveres” (p.153). Esta solução permitia que os combates fossem assistidos na mais completa paz de consciência. Porém o que espanta é que “essa inocência na atrocidade era legítima, e até legal, e até mesmo organizada pelos poderes públicos (...) o horror está em que esse horror público não é encoberto por nenhum pretexto” (p.153).

Se não foi causado pelo cristianismo, nem pelo humanitarismo, nem pela sabedoria pagã, o que então causou esta mudança de sensibilidade e mentalidade, onde o horror passa a dominar a situação frente à atração provocando, assim, a suspensão definitiva das gladiaturas? Solução provisória: “é no poder político que se oculta a explicação para a gladiatura e para sua supressão, e não no humanitarismo ou na religião. Entretanto, é preciso buscá-la na parte imersa do iceberg ‘político’, pois foi lá que algo mudou, que tornou inimaginável a gladiatura em Bizâncio ou na Idade Média. É preciso desviar-se de ‘a’ política, para distinguir uma forma rara, um bibelô político de época cujos arabescos inesperados constituem a chave do enigma. Dito de outra maneira, é preciso desviar os olhos dos objetos naturais para perceber uma certa prática, muito bem datada, que os objetivou sob um aspecto datado como ela; pois é por isso que existe o que chamei acima, usando uma expressão popular, de ‘parte oculta do iceberg’: porque esquecemos a prática para não mais ver senão os objetos que a reificam aos nossos olhos” (p.154).

Seguindo esta proposta inversiva, somos tentados a pensar na relação travada entre dois grandes objetos naturais a-históricos: os governantes e os governados. “Em vez de acreditar que existe uma coisa chamada ‘os governantes’ relativamente à qual os governados se comportam, consideremos que os ‘governados’ podem ser tratados seguindo práticas tão diferentes, de acordo com as épocas, que os ditos governados não têm senão o nome em comum” (p.154). É este o exercício de funcionamento do método foucaultiano o qual Paul Veyne propõe ao tratar seus exemplos. Neste caso os nomes governantes e governados são antes abstrações que em nada expressam as práticas singulares de época. Em um momento estes nomes podem estar relacionados tanto a práticas disciplinares que despolitizam os corpos e prescreve-lhes o que fazer; em outro pode representar a relação onde certas coisas são proibidas, mas sem seus limites interiores podem movimentar se livremente; em mais outro pode expressar o poder do soberano de explorar a fauna humana habitante de seu principado. Deste modo percebe-se que os nomes são insuficientes, ou melhor, aparam as arestas das práticas singulares para que estas caibam dentro de seus padrões de suficiência.

Outras tantas práticas são possíveis quando deixados de lado os nomes-suficientes e observamos o que as pessoas realmente fazem. Este exercício coloca em termos de descontinuidades os acontecimentos humanos, situa-os no vazio, limitando-os. Os objetos naturais “governados” e “governantes” não resistem a tal análise, pois pretendem colocar-se fora da história, quando tudo se relaciona com tudo e tudo é histórico. As diferentes práticas objetivam, ou seja, produzem “objetos naturais” que em uma dada época é população, em outra uma fauna e em outra uma horda; aqui os objetos naturais através da história perdem totalmente o sentido prático e torna-se uma operação racional teórica. Então uma revolução científica se efetiva onde as aparências são invertidas para que apareçam claramente as prática raras, os bibelôs de época, tal qual uma roupa que do lado avesso mostra suas costuras.

Então, novamente desloca-se a questão. A pergunta feita inscreve-se em um como isto aconteceu? Quais práticas produziram objetos históricos que antes ansiavam pelo sangue das vedetes de arena e quais outras práticas tão divergentes o repudiava com veemência? Imagina que em uma dada situação, as pessoas fossem realmente como animais, como um rebanho a ser guiado em sua marcha histórica, o pastor não é o seu dono, porém tem o direito de tosquiá-las para seu proveito; cabe a ele garantir a sobrevivência enquanto rebanho frente aos perigos, fraquezas e covardias dos maus instintos animais, à pauladas se necessário. A política do pastor “limita-se a conservar o rebanho em sua marcha histórica; quanto ao resto, sabemos muito bem que os animais são animais. Tentamos não abandonar pelo caminho muitos animais famintos, pois isso desfalcaria o rebanho: se preciso, lhes damos de comer. Damo-lhes, também, o Circo e os gladiadores, de que tanto gostam, pois os animais não são nem morais, nem imorais (...) Num único ponto, que não é a moralidade dos animais, somos impiedosos: em sua energia. Não queremos que o rebanho enfraqueça, pois seria a sua perda e a nossa” (p.156). Este povo-rebanho são os romanos e os pastores são os senadores, assim, a gladiatura funciona como uma “escola para enrijecer os telespectadores”; alguns não a suportam, fraquejam, mas instintivamente os pastores simpatizam com os animais brutos, duros e insensíveis, pois é através deles que o rebanho sobrevive.

Mas “se em vez de carneiros, nos tivessem confiado crianças, se nossa prática tivesse objetivado um povo-criança e nos tivesse objetivado, nós próprios, como reis paternais, nosso comportamento teria sido inteiramente outro: teríamos levado em consideração esse pobre povo e dado razão à medrosa recusa à gladiatura” (p.156). Aqui, os fracos e frágeis ganham a simpatia do rei-pai, afinal as crianças precisam de cuidados e a gladiatura, visto então como assassinato gratuito, foi suspendida, pois é o que de mais grave existia. Mas então por que a prática “guia de rebanho” foi substituída pela prática “mimar crianças”? “Uma dessas razões, no caso, foi que no século IV, em que se tornaram cristãos, os imperadores deixaram, também, de governar por meio da classe senatorial (...) Livre do Senado, administrando por meio dum corpo de simples funcionários, o imperador deixa de exercer o papel de chefe dos guias do rebanho: assume um dos papéis que se oferecem aos verdadeiros monarcas, pais, sacerdotes, etc. E é também por isso que se faz cristão” (p.157).

Foi então o conjunto da história que levou a uma mudança na prática política, nada aqui de racionalizações, muito mais de acasos e contingências. O método então funciona na descrição positiva do que um imperador paternal faz e o que faz um guia de rebanho; então as práticas aparecem não como obscuro subsolo da história, porém muito simplesmente o que fazem as pessoas. “Que derrocada da filosofia política racionalizadora! Quanto vazio ao redor desses bibelôs raros e de época, quanto espaço entre eles para outras objetivações ainda não imaginadas! Pois a lista de objetivações permanece aberta, diferentemente dos objetos naturais” (p.157).

5 comentários:

Juaum disse...

Vou postando os pedaços, pois ficou grande o texto, então vamos conversando..

Kleber disse...

Bela arrumação João. Bom que seja aos pedaços, pois os espaços entre seus textos,podem, por acaso, fazer misturar mesmo aquilo que se quer objeto. Assim como na feira. Melhor, nas feiras que andamos por Aracaju. Abraço!

Diego disse...

Tal qual um incipiente, falo aqui, utilizando-se de algumas palavras de João: não só o texto do Veyne é um achado - aliás, nem o havia encarado dessa forma -, mas ter o primeiro contato com algo que se refira ao pensamento de Foucault, proporcionado pelo Veyne, pra mim é um achado. Sim, achado. Mas no sentido mesmo de descoberta de algo, de expansão do campo de conhecimento.
Como qualquer outra descoberta, no entanto, é preciso ter cautela. Não digo que a uma primeira leitura, meio cambaleante nesse novo terreno, tenha se apreendido a essência do texto. Pensando bem, depois de ter lido "Foucault Revoluciona a História", tenho motivos para reavaliar essas "essências" do que tenho lido.
Sem querer alongar-me nos comentários: sensata foi a decisão de pôr o resumo do texto em pedaços, assim aproveitamos melhor. É o tempo de conhecer mais alguns territórios explorados pelo Veyne.

Lívia disse...

Bom, levando-se em conta q foi uma leitura de iniciante, e q foi a primeira leitura, acho difícil fazer alguma consideração importante. Mas acho q deu pra extrair alguma coisa legal e tb o comentário de João ajudou muito.
Pelo que entendi, Foucault vai ser um divisor de águas no método revolucionário de análise histórica. O paradigma dominante nos traz uma idéia dos fatos congelados no espaço, e assim podemos analisá-los apenas sob uma perspectiva: a que foi dita.
Foucault vai desvendar o todo, ou como Veyne disse, deixa à mostra não uma ponta do iceberg, mas o bloco de gelo completo.
Assim, podemos olhá-lo de vários ângulos, vários olhares, revelando inclusive o meio em que se encontra ( o contexto histórico).
Enfim, para uma iniciante, foi muito bom ler Veyne e ter uma idéia sobre o trabalho de Foucault. Não conhecia muito, ou melhor, praticamente nada do trabalho dele e fiquei muito feliz de ter esse contato através do livro "Como se escreve a história". Nascida a curiosidade, abrem-se as portas para as descobertas e o conhecimento.
Valeu! =)

J. Thiago disse...

Li o texto - assim diria o João - com esses meus olhos de bergsoniano. E falando no menino, lembro duma poesia dele que fala sobre o passado - sobre nossa leitura do passado! - enquanto miragem da realidade presente, enquanto possibilidade não realizada do atual. O tempo e a história, aqui, não são uma sucessão de instantes ou de "presentes", mas sim a substância que subjaz e, até mesmo, possibilita essas nossas formas. Substância e forma. A teoria representativa e a historiografia devem ceder lugar a uma prática que respeite o tempo mesmo. Duração, memória, vida...