quarta-feira, 22 de julho de 2009

sobre os encontros de Julho

E assim se deu a falta. Naquela esquina onde comumente sentava meio que escondido a conversar com pessoas simpaticíssimas, por entre cestos de mangas, as quais tentara vender algum dia lá atrás, e grandes jacas expostas – é seis mais faz por cinco – estava um armado de alumínio e um cheiro de óleo fumegante tostando pastel e moendo de cana. Estranho. O senhor com saco plástico na cabeça, dono da pastelaria improvisada na feira, costumava ficar de frente para mim do outro lado da rua quando eu costumava sentar nas escadas da sorveteria conversando com seu Juscelino, dona Finha e Nininha, ou às vezes calado só observando as gentes, os ditos e os gestos.

Mas talvez durante o tempo que passei ausente houvesse se efetivado uma inversão, um salto de lado. Nada. Na outra margem outros rostos, nenhum dos usuais amigos da feira. Tinha trabalho a fazer, fotografias a fazer, produzir imagens da feira que serviriam para o trabalho este e um outro de fim de período. Então segui o caminho das imagens congeladas pelo aparelho digital, mas sempre de olhos abertos e orelhas em pé a procura das pessoas conhecidas e sumidas. Nada, mesmo após percorrer a feira por duas ou três vezes. Talvez estivessem doentes, mas como disse Nininha uma vez “feirante não pode ficar doente” ou algo assim. Nem mesmo ela encontrei percorrendo os corredores junto ao seu mostruário de bugigangas vendidas à fiado aos próprios feirantes.

Resolvi então arriscar e entre uma foto e outra - e foram mais de cem - perguntei à senhora que estava ali vizinha ao pastel com caldo de cana, que sempre ficara ali vendendo roupas, se a dona Finha estava doente. Ela me disse que não sabia, mas que já de muito tempo não a via mais por ali. Fiquei preocupado. Será que havia acontecido algo sério com algum deles, ou somente deixaram de ir à feira? Perguntei então ao pasteleiro de plástico na cabeça que agora ocupava o espaço se sabia de dona Finha e seu Juscelino. Ele demorou a entender a pergunta depois lembrou “ahhh a senhora que ficava aqui e o marido dela, um moreno, né? tem muito tempo que não vêm, por isso estou aqui, mas não sei dela não. ela deve ter mudado de feira. os fregueses dela sempre param aqui e perguntam por ela” ou algo assim. Mais estranho ainda, quase um ano tenho de feira e o pasteleiro sempre em frente à banca de dona Finha, mas parecia nunca terem se tocado.

Subi as escadas e fiquei parado olhando o movimento. Um rapaz com seu carrinho de mão estava do meu lado sentado, perguntei a mesma pergunta, ele disse “rapaz não sei quem é não”. Perguntei se era novo aqui, ele disse com voz sotaqueando “não, trabalhei aqui cinco anos atrás, só que me mudei para Santos, agora tou aqui de novo” ou algo assim. Ao me ver com a câmera tirando fotos perguntou “ta fazendo trabalho?”, disse-lhe que era uma pesquisa e já tava lá a quase um ano e perguntei seu nome, disse “Julio, então a gente ainda vai se encontrar mais por aqui, tchau.”. Andei, sentei, fiz fotos e com dona Rosália, senhora vendedora de biscoitos, bejus e tapiocas parei para conversar depois de tanto tempo ausente. Perguntei como estava, como ia a feira e tal. Ela questionou minha ausência, reclamou do tempo que passei fora e ofereceu como de costume três saquinhos de biscoitos. Fiz a mesma pergunta sobre dona Finha, ela disse “aquela que morreu de queda?”. Me assustei ainda mais e expliquei quem era, ela disse “ahhh então não é não, essa é outra que vendia coco” e essa história eu já também conhecia. Ela continuou “meu fiu, sei quem é essa mulher não, eu fico aqui [na parte mais central da feira], meus amigos são esses aqui [apontando para as bancas mais próximas em volta], não conheço mais ninguém de lá de longe não [indicando as duas extremidades]”.

Saí um tanto desapontado por não ter conseguido notícias e por ter ficado tanto tempo longe e ter perdido uma história para a ausência. Dona Rosália, sorridente e por vezes cansada vendedora de feituras de tapioca, disparara uma análise, uma história se fazendo ali, fragmentando algo dado como natural. Tinha claramente a idéia que os feirantes se conheciam minimamente, que formavam uma comunidade entre laços de amizade e ofício, mas agora a história se configurava de outro modo, formavam-se micro tessituras relacionais, feiras dentro da feira. Rachado. As fissuras mostravam outra coisa à qual a percepção foi se transformando para dar conta. As pessoas não sabiam de dona Finha, mesmo as mais próximas espacialmente. Findava ali uma percepção para abrir espaço para uma outra.

A única notícia concreta que tive, descobri depois que estava errada. Um garoto do carrego que já vira algumas vezes pela banca de dona Finha, e que me cumprimentava sempre, quando perguntei pela senhora, puxou pela memória, titubeou e disse “ahhh... lembro dela, ela não ta mais vindo aqui não. não é a esposa dum veio de óculos? é... ta mais vindo aqui não, mas ta trabalhando na feira do Santo Antônio dia de sábado que já vi por lá. passe lá que você encontra”. Vão rastro. Na sexta feira seguinte, em uma passagem bem mais rápida pela feira, encontrei Nininha andando por ali. Entre abraços e reclamações por causa da prolongada ausência fiz novamente a fatídica pergunta. Sua expressão nublou, com um tom de voz entristecido me disse “é... ela foi embora, se mudou para São Paulo, foi a família toda, talvez volte no fim do ano. tavam roubando de mais o sítio deles, muito perigoso... aí resolveram ir pra lá e ficar com uns parentes longe por um tempo” abaixou mais ainda o tom de voz e o olhar “agora eu tou aqui na luta sozinha, ta me fazendo uma falta a minha amiga, tou sozinha” ou algo assim.

2 comentários:

Kleber disse...

Quando mudam os santos, mudam as distâncias. Santo Antonio-São Paulo. A esperança na feira tem uma materialidade religiosa e mercantil do que sejam as amizades, o tempo e as distâncias. Nunca conversei com Dona Finha. Falando sobre ela, trocava seu nome por Quinha. Agora, como Nininha, fico a espera desse retorno para saber de suas histórias, mesmo que seja nas suas linha, João.

Mairla disse...

nossa... fiquei triste. esperava por uma mudança de dona Finha, mas não uma pra tão longe. no máximo, uma feira em outrro bairro...