quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Prosações, suplementos e como nomadar

Hoje, ao acordar, o meu corpo doía um pouco. Exercícios físicos e falta de preparo. Fui iniciar outra tentativa de pedaladas ao amanhecer. Saí do condomínio onde moro em busca de uma ciclovia, numa avenida lateral. O corpo latejava a cada pedalada, ainda frio e preguiçoso. Escutava rádio num dos ouvidos e o outro era antena para o que se passava ao redor. Uma bizarra e provavelmente perigosa experiência que durou aproximadamente 30 minutos ou alguns poucos mil-metros.
Ao retornar a minha casa, o corpo ainda doía, mas algo em mim latejava ainda mais. Algo que queria dizer de uma vontade de conexões que precisavam aparecer, um modo em busca de uma forma. Daí me veio a expressão de um encontro que se deu ontem com Elen-Deleuze, Thiago-Deleuze, João-Deleuze, Diego-Deleuze, Andressa-Deleuze e eu-Deleuze. Isso para ficar nessas conexões. Nominações dessa natureza, aqui, tenderiam a exaustão. Como não se trata de cansar o corpo, vamos ao que lhe faz vivo.
A conversa se dava em torno de textos (entrevistas) de Gilles Deleuze, dispostas no livro Conversações (1992), que versam sobre Cinema. Discute-se lá a inovação de Godard, a imagem-tempo, a imagem-movimento, o imaginário nisso tudo e por fim, pondera o filósofo o que se mostra no livro de Serge Daney (para os mais chegados Serginho Danado) que recebe o nome de Ciné-Journal.
Dividimos esses cinco apontamentos em duas tardes de prosa. Havia a recomendação da leitura e do horário do encontro. Lemos, fomos e a coisa se deu. Dessa coisa, necessito dizer de intensidades de ontem, quando diante de leituras e não leituras, resolvemos afrouxar o nexo do encontro em nome do que composição ali poderia se dar. Cada um puxava uma linha do lido, para fazer da lida algo coletivo, um outro encontro no encontro.
Eu vinha contaminado pela Carta a Serge Daney. Havia percorrido passagens da Carta, quase sempre saindo dela e era esse o fio a se entrelaçar em mim e no novelo daquele encontro. Não quero aqui ser repórter ou relator dessa reunião. Minha intenção é permanecer provocando o que ainda me acontece, aquilo que reverbera, em experiência se quer beleza, havendo ou não um motivo para tal.
A leveza do vivo talvez seja como pedalar, mesmo quando o vivo vai mal das pernas. Um motor, um moto-contínuo que tende ao descontínuo, que se enseja num passeio. Pulmões e musculatura gritam pelo esforço, mas esse som é interrompido por outros. Há o som da avenida também despertando para a terça-feira, 10 de fevereiro que invade o ouvido direito. Há o som da rádio Universitária pulsando no ouvido esquerdo. Há ainda o som suplementar, daquilo que na minha cabeça não calava, que envolvia a sonoridade do passeio-encontro do grupo de estudos de ontem. Outros sons se davam, sem que se estabelecesse uma frequência de encontro comigo. Não interessa saber deles. Interessa, pois vivos, saber daqueles que se fizeram sentir e permanecem sentidos de modos comuns e díspares.
Desses todos; duas imagens se moem do texto, do encontro, do corpo-meu, das pedaladas e agora desse texto. A idéia de suplemento e as reflexões sobre viagem e como nomandar. Saber do encontro, dos modos de audição que se permitiram na tarde de ontem na UFS e que ressoam por essas linhas.
Suplemento. Diz no texto-deleuze que “o suplemento e verdadeiramente a função estética do filme, precária, mas isolável em certos casos e certas condições, um pouco de arte e de pensamento”( p. 95, 1992). Daí discutindo a função de conservação do cinema, diz o texto-deleuze de várias maneira de como a imagem cinematográfica conserva e que por conservar, tome-se algo como fazer durar e coexistir, uma espécie de contra-tempo ao invés de se dispor como em entre-tempo. Daí ser “próprio do suplemento só poder ser criado, e é está a função estética ou noética, ela mesmo suplementar”.
Andressa-incomodada-com-o-texto-deleuze dizia de um não encontro na realidade que se experimenta dessas coisas que o texto-deleuze diz. De um modo estranho, os textos-deleuze que estávamos a problematizar dizem isso também. Cadê o que me é suplementar? Conversávamos sobre idéias de alimento, complemento e suplemento. Tendemos na atualidade a viabilizar complementos para algo que parece faltar. Completamos assim, via de regra, o que não nos falta, talvez, supondo estarmos a alimentar, aquilo que não deveríamos dar de comer, mas de beber. No caso o espírito; o corpo-espírito. Espírito não tem fome, espírito tem sede e sede de que?
Não enveredamos por essa seara. Ela me veio agora. Linha de inquietação que atravessa a tela. Ficamos mesmo na idéia de que algo não acontece, quando seria próprio do fazer esse acontecimento, que se revela nas artes do existir e do pensar. Aquilo que é função, jamais atributo. Em tempo; o texto-deleuze endereçado ao mundo e ao serginho danado problematizava possibilidades para o cinema e a televisão, digamos assim, nos anos 80 do século passado.
Bom, não tardou e como suplemento nessa prosa aparece a passagem onde o texto-deleuze realiza reflexões sobre viajar. São quatro observações que fazem encontrar no texto-deleuze pulsações de Fitzgerald, Toynbee, Beckett e Proust. Do primeiro diz que viajar levando consigo a ordem de cada dia (“bíblia”), não rompe o espaço, não se viaja. Do segundo questiona a dimensão nômade da experiência. Nômade não é o desgarrado, marca-viajante, mas “aquele que não se mexe, que não quer partir e se agarra a sua terra deserdada” (p. 100, 1992). Parênteses: o que se pode tomar por agarrar-se a “sua terra deserdada”?
Terceiro, no caso deleuze-Becket, que se viaja para verificar algo, que se dá de modo diverso, sendo o motivo vão ou não, se viaja porque se quer saber. Do terceiro, o quarto se faz complemento e em referência a Proust, dispara que “o verdadeiro sonhador é o que vai verificar alguma coisa”. Observações que são além da ordem que as agrupa, melhor que podem ser.
Em mim e naquilo que dura do encontro, permanecem, pois quando começamos a pensar e falar sobre nomadismo fomos nos afastando, como se fosse possível uma certificação da expressão-conceito-experiência. João lembrou dos cursos, povo desterritorializado que se inventa a noite numa política de fazer viver o que outros não querem vivo. Lembrei no exemplo e fui com ele até Elen falar da necessidade de uma “terra deserdada”para a condição de nômade. Thiago, se lembro bem, questiona a necessidade da terra e fomos naquilo por alguns minutos nos desencontrando e nos encontrando.
Daí, arrisco dizer do que me soou suplementar nessa audição-em-nós que não precisou ser, pois estava contente sendo. Creio que inventamos algo interessante, talvez como nômades de uma terra-acadêmica precária e careta que cada vez mais verticaliza ordens e procedimentos para o fazer. Em mim reverbera uma alegria de estar ali, talvez essas linhas todas tenham tentado dizer isso, mas isso não se pode resumir em linhas. Abraço!

4 comentários:

Juaum disse...

Lembro d'algum deles dizendo sobre um pensamento-nômade. algo se produziu ali, todavia não está mais lá, foi ser outra coisa em outros cantos.
Lembro da gente dizendo sobre o devir, tentativa fajuta...
talvez agora devir-nômade seja até redundante.
Os nômades e os devires nos escapam. não estão mais lá. pois quando dizemos "é", se acabam. enraizam-se com a teimosia do "ser". Mas nunca estão lá nem cá nem ali, os nômades e os devires. estão sempre em cantos outros. penso agora que nômades e devires povoam sempre indecisas esquinas (nem uma rua nem outra) com a leveza do "estar".

Kleber disse...

o nômade resiste ao devir-raiz?

Andressa disse...

Xiiiii... pra mim toda essa estória me faz pensar no "fulgaz" das coisas, que tudo é temporário, tudo se constrói, quase nada fica, nem nômades, nem suas identidades, nem os devires... Viajei! Agora, esse lance de devir-raiz, boiei...
Fora isso, qual é o do "nomandar"? Fiquei curiosa... Inté

Kleber disse...

Corrigi no título nomandar por nomadar. Pois bem, nomadar, como penso, é assumir essa fulgacidade a qual você se refere, Andressa. Não temos como fugir do tempo. Encará-lo talvez signifique percebê-lo em duas dimensões. O tempo representado e o tempo das durações. Uma paixão pode dar em namoro ou mesmo em casamento. O casamento é um modo de representar essa relação. Em geral as paixões duram menos que os casamentos, quando postos na medida do mesmo tempo. Eles habitam tempos distintos. Um se quer identidade, a outra experiência. Há finitude nos dois casos, mas num, tudo pode ser diferente.E aí?