sábado, 20 de fevereiro de 2010

Uma breve história sobre sistemas e órgãos

Aprendemos na escola que um sistema é um conjunto de órgãos; um órgão é um conjunto de tecidos; um tecido é um conjunto de celulas. As células são as unidades básicas que compõem um organismo vivo. E as células, por sua vez, são formadas por várias outras microentidades chatas das quais não lembro o nome e que não fazem a menor diferença na minha vida, apesar de eu ser formada por elas também. Explicando melhor, fazem diferença no sentido de que meu corpo é também assim formado, mas não fazem diferença os nomes pelos quais são classificadas e nem todo o repertório de conhecimento científico acerca dessas microentidades, pois, enquanto microentidades, não sei se são de fato aquilo de que meu corpo é composto.
Há aí então uma certa distância entre eu, o objeto de conhecimento, e o conhecimento de fato. Bom, parece que esse distanciamento não tem ocorrido só no que diz respeito aos conhecimentos gerados acerca do corpo humano, mas a toda espécie de conhecimento científico. Ao menos, essa é a opinião de Bruno Latour, e a minha também já que ele acabou por me convencer. Para embasar essa opinião, Latour recorre à metáfora do sistema circulatório da ciência. Como já foi dito antes, um sistema é um conjunto de órgãos. No caso do sistema circulatório, ele é composto por sangue, coração e vasos sanguíneos e tem como uma de suas funções distribuir oxigênio e nutrientes para todo o corpo. Então, através da metáfora do sistema circulatório, Latour tenta nos mostrar quais são os órgãos que mantêm a ciência respirando e bem alimentada. Para ele, um mau* entendimento desse sistema tem alimentado a distância entre o conhecimento científico e seus objetos de conhecimento, e é também o que tem contribuído para uma noção errada do fazer ciência e do “adjetivozinho social”. Para ilustrarmos onde estão os erros e os acertos, acompanhemos o exemplo dado por Latour através da história de Joliot.
Joliot levava uma vida calma e feliz ao lado de seus amigos e família, até que um dia resolveu ser cientista e pior, levar a sério o que fazia! Joliot, empenhado em fazer bem o seu trabalho, um dia descobriu características maravilhosas do urânio com o que poderia construir um reator atômico. Então Joliot, compromissado que era, arregaçou as mangas e se pôs a trabalhar. Não tinha mais uma noite sequer de sono pensando no que precisaria fazer para conseguir o seu reator, pois, como diz o ditado, se quer algo bem feito faça você mesmo. Enumerando as coisas das quais precisava para dar vida ao seu reator, Joliot viu que suas atribuições iam muito além do que aprendeu na faculdade. Seu raciocínio foi mais ou menos assim: “preciso conseguir urânio para poder estudar melhor suas propriedades, preciso de outros cientistas para me ajudarem nos estudos, precisaremos de dinheiro para levar adiante os estudos, precisaremos convencer pessoas de que os nossos estudos chegaram algum lugar se quisermos receber financiamentos, e isso só pra começar!”
Parando por aqui a história de Joliot, antes que vertam lágrimas dos nossos olhos, vamos agora apontar onde estariam os erros e os acertos de possíveis interpretações dessa história. De um lado, alguém vidrado em narrar os fatos “puramente científicos” poderia se ater apenas a contar a história de Joliot narrando apenas as descobertas científicas. Por outro, alguém interessado em tramas políticas contaria apenas sobre os acordos e negociações envolvendo a corrida pelo reator atômico. Uma versão científica e outra social. Onde estão os erros? Nas duas! Para Latour, nem uma nem outra se aproximariam mais da realidade. O que chega mais perto é a versão em que ambos os aspectos são levados em conta, uma versão que admita os intricamentos entre política e ciência. Sendo que aquele que tenta contar a história puramente científica vai acabar esbarrando em questões políticas, mas considerará que essas questões não estão senão poluindo a sua narrativa, e assim também quem contar a história meramente política considerará elementos científicos como meros figurantes do espetáculo.
Então, como faremos para contar corretamente a história do nosso querido amigo Joliot e outras tantas que conhecemos? É aí que entra a questão do sistema circulatório! Se você falar do sangue não necessariamente você está falando do coração; se falar do coração pode não estar falando dos vasos; e falando dos vasos não é obrigado a falar do sangue. Mas, falando do sistema, você não só estará falando de todos eles, mas também de como eles se comunicam e relacionam, assim, a história ficará completa. Vejamos então por quais órgãos é composto o sistema circulatório da ciência.
Segundo Latour, para se compreender de forma realista o que determinada disciplina científica procura, deve-se considerar, em primeiro lugar, cinco tipos de atividades dos estudos científicos: mobilização do mundo; autonomização; alianças; representação pública; e vínculos e nós. Expliquemos cada uma delas. Através da mobilização do mundo os cientistas podem carregá-lo para onde quer que forem, pois o mundo agora está entendido através de padrões que serão os mesmos onde quer que seja. A autonomização diz respeito ao mérito que certa disciplina científica conquistou; para ser uma disciplina isolada ela precisa de profissionais específicos e conhecimentos suficientes para se tornar independente de outras. As alianças se referem a outros campos com os quais essa disciplina precisa conversar se quiser se manter ativa, esses campos podem ser científicos ou não. A representação pública mostra que os cientistas precisam convencer leigos de sua relevância e veracidade, pois se uma disciplina científica não conquista o apoio da população, que fim terá ela? E, por último, os vínculos e nós são o que os cientistas chamariam de conteúdo conceitual, mas que recebe outro nome para não ser entendido como algo que se basta, pois, vínculos e nós são coisas que exercem a função de interligar pontos. Os vínculos e nós estão perpassando os outros quatro circuitos, e estes por sua vez também estão conversando entre si.
Se o pensamento de Joliot fosse expresso através da nomenclatura desses órgãos ele poderia pensar: "é preciso mobilizar o urânio baseado em todas as características necessárias que contribuam para a realização do reator atômico nodular; ara conseguir isso preciso que a minha disciplina seja reconhecida como autonôma e de colegas empenhados nessa mesma disciplina; preciso também de colaboradores de outras áreas que possam subsidiar o meu projeto; preciso de uma certa porcentagem de apoio da população para que os colaboradores se sintam um pouco mais pressionados e seguros em nos apoiar; e, é claro, que toda essa rede de relações está girando em torno da concretização do reator que serve aqui como ponto de intersecção entre todos os outros pontos.
Assim, com essa representação de sistema circulatório, nenhum órgão será menos importante que outro. Cada um em seu lugar, executando sua função, não pode ser entendido sem a compreensão dos outros quatro e o resultado que conseguem juntos não seria atingido se faltasse um sequer. A história do social não pode ser separada da científica, esse abismo é criado porque nos acostumamos a olhar apenas para uma das extremidades e o que está passando entre elas é justamente o trabalho executado por diferentes órgãos do sistema e que merecem igual atenção para a compreensão de todo o processo.

(texto elaborado a partir do capítulo 3 do livro "A esperança de pandora", Bruno Latour)

3 comentários:

Diego disse...

Não seria mais simples se Latour escrevesse como Elen? Homens tem sempre que complicar as coisas...

Kleber disse...

Adoro esse marcador: Filosofia Barata. Ele nào para de me dizer coisas e quando vem junto com Elen, Latour, Joliot e outrso, dai a conversa permanece em mim, circulando e atravensando aquilo que se quer definição. Thiago foi feliz quando disse que o texto da Elen parecia um filme, durante nossa reunião. "Sessão da tarde!". Em mim, parece também um filme, mas em outro horário e por isso vou interromper a escrita, para não perder a próxima cena...
aBRAÇO!

J. Thiago disse...

Texto bom! Mas, como tudo que é bom, durou pouco. Seria legal falar mais sobre os órgãos que fazem circular o sangue fresco e nutritivo: Alianças, representação pública, vínculos e nós e... Pensando melhor, o filme ficaria muito cult! E chato. E chato não é bom. E, não sendo bom, não teria sabor de quero mais! Texto-filme-pipoca! :D