segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Nietzsche, a Genealogia e a História

“A genealogia não se opõe à história como a visão ativa e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da origem” (Foucault).

Ursprung. Encontramos, em Nietzsche, dois usos do termo. Um, enquanto busca do “aquilo mesmo”, origo da moral e da culpa, da lógica e do conhecimento. Outro, coloca a origem como invenção, artifício, fabricação. Tal distinção torna-se necessária para entendermos o porquê da recusa de Nietzsche à Ursprung, à pesquisa de origem.

O genealogista – com os pés na história e repudiando a metafísica – aprende que, por detrás do véu das coisas não há nenhuma realidade numinosa. Não há nenhuma veritas aeterna, nenhuma essência absoluta, nenhum segredo a ser velado ou desvelado. Melhor dizendo, encara que sua essência foi – tão somente – construída por figuras, forças e atravessamentos outros que nada tem de ver com uma identidade pura a ser encontrada no gênese. Se na teleologia metafísica encontramos – no começo das coisas – a preciosa perfeição duma essência pura e luminosa, na genealogia histórica destrinchamos uma verdade da ordem do discurso.

Fazer genealogia, assim, não é aventurar-se rumo aos tesouros ideais da origem. Ao contrário, é abandonar as formas da metafísica e deter-se no singular, no acidente, no acaso. É demolir os castelos da teleologia e dirigir-se aos bairros mais baixos. É referir-se aos episódios mais simplórios e, sem pudor, apontar as personas envolvidas. Destarte, termos outros – como Herkunft e Entestehung – traduzem muito melhor a atividade genealógica do que a ambivalente Ursprung.

Entendemos Herkunft como a “proveniência”. Não a já gasta pertença ao grupo, ao sangue, à tradição. Não falamos, aqui, de reencontrar nos indivíduos, em suas idéias ou em seus ideais traços duma categoria maior que permita classificá-lo junto a outros, mas sim numa desconstrução de si, no desembaraçamento da rede de marcas que se nos entrecruzam. A Herkunft não funda conhecimentos. A proposta da pesquisa da proveniência é – justamente – agitar, fragmentar, mostrar a diferença no que se julgava uniforme. Verdadeira análise da articulação corpo-história, visto que é no corpo que se dão os desejos e as quedas, os movimentos e os desfalecimentos. Corpo atado e desatado, marcado e arruinado de história.

Entestehung, designamos como “emergência”. Ponto de surgimento. A metafísica acredita numa destinação escatológica que busca, desde a origem dos tempos, desde o surgimento das coisas, vir à tona. Na genealogia, entretanto, trazemos à luz os sistemas de submissão, o jogo das dominações, o lugar de afrontamento. Conceitos como liberdade, diferença de valores, lógica ou mesmo a Verdade tiveram o seu nascimento na história. História, esta, de homens contra homens, classes contra classes, dominantes contra dominados. É da guerra, do conflito, do combate que nascem as regras do jogo, que vêm para fundar – e não findar! – a violência. O grande jogo da história é, vemos aqui, aprender tais regras e utilizá-las contra aqueles que as tinham imposto. Interpretar deixa de ser buscar a realidade oculta da origem e passa a ser apoderar-se das regras do jogo – que, vale lembrar, não possuem significação em si – e moldá-las numa nova regra, num novo jogo.

A história teleológica – história atemporal – a tudo julga com uma pretensa objetividade, rumo à verdade eterna, à alma imortal, à consciência imutável. O genealogista escapa desta seara, visto que seu trabalho não se funda sob um céu absoluto. Saber, poder, conhecer – genealogicamente – não é reencontrar nem, tampouco, nos reencontrar. É construir e desconstruir, continuação e descontinuação de nosso ser sem Ser. Não se dissolve as singularidades em categorizações ideais, mas recria-se e faz-se ressurgir a “coisa” no que ela tem de única. Sem princípios originais. Sem destinações últimas. Apenas o acaso e a necessidade. Sem mais. Longe das formas elevadas, dos tipos nobres e das idéias puras, encontramos o corpo, visceral, cru, vivo. Assumindo-se perspectiva, a genealogia também se assume como uma pesquisa de baixa extração. A tudo aceita. A nada diferencia. Da plebe para a plebe.

A genealogia, enquanto sentido histórico, é assumidamente antiplatônica. É – primeiramente – paródica, carnavalesca, criadora e destruidora da realidade, opondo-se à história-reminiscência. Em segundo, é dissociativa e – novamente – destruidora da identidade, visto que não pretende encontrar as origens de um Eu qualquer, mas fazer aparecer as forças que nos atravessam, proibindo-nos toda máscara, toda tradição, todo essencialismo. Por fim, genealogia é destruição – mais uma vez, destruição! – do próprio sujeito epistêmico, do próprio eu-que-conhece, visto que todo saber é fundado em tal perspectiva do conhecimento.

Retornamos, assim, à recusa inicial do Nietzsche genealogista à pesquisa de origem. Abomina-se a Ursprung, mas não a pesquisa-proveniência ou a pesquisa-emergência. Seja Herkunft ou Entestehung, “a veneração dos monumentos torna-se paródia; o respeito às antigas continuidades torna-se dissociação sistemática; a crítica das injustiças do passado pela verdade que o homem detém hoje torna-se destruição do sujeito do conhecimento pela injustiça própria da vontade de saber” (Foucault, 1979, p.37).

Nenhum comentário: