sexta-feira, 8 de maio de 2009

Um gosto de vidro e corte¹

Um senhor de farda e óculos escuros, rosto de quem carrega o peso de alguma coisa disse da violência que ocorre nas feiras de Aracaju: “sei apenas de um caso: o do feirante que foi assassinado no Agamenon Magalhães por ter reagido a um assalto. E um caso não é dado estatístico”. Os homens de farda efetuam um trabalho ostensivo inteligente, ou seja, verificam situação por situação, problema por problema e de forma técnica, dizem não ter dados estatísticos sobre assaltos e mortes nas feiras. Ele completa: “às vezes dizem que em certa região está acontecendo vários assaltos e quando mandamos verificar, ocorreu apenas um.”. Apenas um.

Neste mês passado, à luz de velas e sabor de bolo com refrigerante, comemorou-se um ano de falta de iluminação na feira-livre do Augusto Franco, um bem humorado pedido por mínima segurança. Seu Antônio, vendedor de tipos de queijos e laticínios e também presidente da Associação de Feirantes declara que a entidade já fez várias reclamações às autoridades competentes, porém nenhuma foi atendida e assim inventa um modo de contornar as intempéries: “eu mesmo, como já fui vítima, pego todo o dinheiro e mando por uma pessoa antes.”, “e não fui eu apenas. Aqui os assaltos são constantes. Quase todo mundo já perdeu dinheiro, carro e até mesmo a mercadoria. Os consumidores não são poupados, o que vem gerando um clima de medo no local”.

O noticiário informa que, conforme dizem os feirantes, as regiões de maior fluxo de gente são as mais afetadas pela violência, a exemplo dos conjuntos Augusto Franco, Orlando Dantas, Agamenon Magalhães, Dom Pedro, Lourival Batista, bairros Siqueira Campos, Dezoito do Forte. Acerca de um mês atrás morreu um feirante na Av. São Paulo, o seu Antônio disse que “antes os delinquentes deixavam os trabalhadores vivos, agora além de levar a renda, já estão matando”. Este foi apenas um caso, não estatística.

Adriano de Jesus Oliveira, 30 anos, outro feirante, não é um dado estatístico, talvez o mais novo apenas um. Sua morte provocou comoção entre os moradores do Agamenon Magalhães na tarde do dia 17 do ultimo mês, após assalto a mão armada no meio da rua, em plena luz do dia. Não me lembro de ter conhecido o Adriano, nem ao menos sei o que vendia e se ao menos trabalhava na feira do Castelo Branco, o nome Adriano de Jesus Oliveira é retrato e na feira as palavras, os gestos e as coisas são de vez; é então um corpo, e sua morte acaba por também matar, em mim, possibilidades de conhecer por onde passa a vida.

Não se fala nada além de sua morte, a fotografia feia da insegurança urbana é o que interessa, sua microhistória pouco importa afinal ele é um estudo de caso do medo. Sua morte não presta nem mesmo para dado estatístico; os homens infames², de cotidianos pequenos, não têm direito a uma história. A rua como lugar de possibilidade morre um tanto mais sem o Adriano e sua história e enrijece enquanto lugar do medo. Na feira híbrida um “sonho estranho” acontece, na boca fica “um gosto de vidro e corte/.../no corpo e na cidade/um sabor de vida e morte”³.

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¹ Impressões sobre o texto disponível em: http://www.infonet.com.br/cidade/ler.asp?id=84892&titulo=especial

² FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. in: FOUCAULT, Michel. Estratégias poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

³ Fragmento da canção San Vicente de Milton Nascimento e Fernando Brant, Clube da Esquina, 1972

6 comentários:

Bruna_ disse...

Muito bom texto! :]

Mairla disse...

ótima colocação, Jão. Foi como tinha dito no e-mail: é muita estranho justificar a "não-atenção" a uma morte porque ela não é um dado estatístico.
Acho que foi bem colocado quando se diz que os homens infames não têm direito a uma história. Não mais agora que, já morto, o Adriano tem seu nome no jornal e é lembrado de alguma forma por mais que seja pelo medo. É contada uma história em torno de sua morte que não poderíamos dizer que é uma história sua, mas agora faz parte de uma... "o medo dos assaltos na feira".
Muito infeliz isso que o delegado falou. Muito mesmo! Fiquei foi com raiva e aposto que a família do moço mais ainda.
Cada vez mais vemos produções de medo na cidade: as ruas desertas, as mal iluminadas, as favelas, os bairros "perigosos". Mais pessoas trancafiadas sem sair às ruas e por aí vai...
Tendo mesmo as ruas como lugar de possibilidades consideremos, então, toda essa construção de medos e perigos que nelas surgem...
É interessante ver que consideramos uma rua que não passa ninguém como um lugar perigoso. E, agora, capaz das feiras livres serem vistas com esse olhar de perigo também.... por mais que o delegado fale que a morte do rapaz não é um dado estatístico e ficar a idéia de que foi algo corriqueiro e banal.
São dois lados a serem vistos.

J. Thiago disse...

E, só pra agravar a angústia, até nossa indignação frente à retórica do senhor delegado seria condenável! Afinal, ele está "funcionando" corretamente, sua lógica é estratagemática, seu discurso é legal... Enfim, ele "está bem encenando o seu papel"! Mas reclamar, igualmente, do "sistema produtor de delegados" não é interessante. Seria - como me expôs o João a muitos posts atrás - personalizar entidades, além de colocar tais forças fora e além de nós mesmos... O buraco é um pouco mais pro-fundo...

Juaum disse...

bem atento, james. É disso que falo quando digo que há um peso de alguma coisa no rosto dele, algo que é expresso na pele, que é ele e outro ao mesmo tempo. ele está corretíssimo: o Adriano não é dado estatítico. Não há culpados com relação a isso, é um discurso que antecede e se atualiza no instante da fala.
Acho que minha questão é, e penso agora que também moveu a escrita, como podemos abrir espaço para o que, no inferno, não é inferno.

Kleber disse...

Juaum, abrir espaço para que no inferno não seja inferno e também não seja céu é algo que precisamos. Preciso. Como? Conectando. Alguma saída se faz sempre pelo verbo. Tipo, aqui estamos multiplicando o Adriano que o delegado quis reduzir. Mais que de personagens, a história carece de verbos.

Lázaro disse...

Entao...

Joao, voce, acho, é um dos debutantes psis que mais sabem o quanto me interesso pelos infames Seu texto abre a possibilidade de os tornarmos vivos. Isso é bonito. Dar vida a quem andam matando (literalmente!)deveria ser mote...

E, esse comentario se destina a agradecê-lo por me fazer enxergar isso, a partir de hoje sei perfeitamente porque gosto dos infames: eles nao sao dados estatísticos.

Abraço