segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A descrição etnográfica

Introdução
- A especificidade da antropologia está ligada a um projeto: o estudo do homem como um todo, quer dizer em todas as sociedades, sob todas as latitudes, em todos os seus estados e em todas as épocas. (página 9).
- Atividade de observação, a etnografia é antes de tudo uma atividade visual, ou, como dizia Marcel Duchamp acerca da pintura, uma “atividade retiniana”. (página 10)
- A descrição etnográfica não consiste apenas em ver, mas em fazer ver, ou seja, em escrever o que vemos. A descrição etnográfica enquanto escrita do visível põe em jogo não só a atenção do pesquisador, mas um cuidado muito particular de vigilância em relação à linguagem , já que se trata de fazer ver com as palavras, ..., relatar da maneira mais minuciosa a especificidade das situações, sempre inéditas, às quais estamos confrontados. (página 10).

A Etnografia como atividade perceptiva: o olhar

“Um historiador pode ser surdo, um jurista cego, um filósofo
a rigor pode ser os dois, mas é preciso que o antropólogo ouça
o que as pessoas dizem e veja o que fazem”.
Raymond Firth

- Localizados, de fato, em uma só cultura, não apenas nos mantemos cegos diante das culturas dos outros, mas míopes quando se trata da nossa. (página 13).
- Todos somos, de fato, tributários das convenções da nossa época, de nossa cultura e do nosso meio social que, sem que percebamos, nos designa: o que é preciso olhar, como é preciso olhar. (página 13 e 14)
- Ver, é, na maioria das vezes, por memorização e antecipação, desejar encontrar o que esperamos e não o que ignoramos ou tememos. (página 14)
- Essa experiência que consiste em nos espantar com aquilo que nos é mais familiar e tornar mais familiar àquilo que nos parecia inicialmente estranho e estrangeiro é por excelência a da etnografia. É uma atividade decididamente perceptiva, fundada no despertar do olhar e na surpresa que provoca a visão. (página 15).

- Lévi-Strauss qualifica o campo de “revolução interna que fará do candidato à profissão antropológica um homem novo”.

Ver e olhar
- Na linguagem cotidiana, a palavra vê é utilizada para designar um contato direto com o mundo que não necessita nenhuma preparação, nenhum treino, nenhuma escolaridade. Ver é receber imagens. (página 17)
- Ver imediatamente o mundo tal como é, cujo corolário consistiria em descrever exatamente o que aparece aos olhos, não seria realmente ver, mas crer, e crer em especial na possibilidade de eliminar a temporalidade. Seria reivindicar uma estabilidade ilusória do sentido do que se vê e negar à vista e ao visível seu caráter inelutavelmente mutante. (página 17).
- Olhar do etnógrafo: um olhar quanto não inquieto, pelo menos questionador, que vai em busca da significação das variantes. (página 17-18)
- O olhar do etnográfico não pode confundir-se com o olhar perfeitamente controlado, educado, abalizado por referências ocidentalizantes, que consistiria em fixar e escrutar seu objeto como um urubu sua presa, e que acentuaria de certo modo a acepção medieval de regarder = colocar sob guarda, que é também a de “droit de regard” (direito de controle). Página 18.
- “Não consiste apenas” como diz Affergan “em ficar atento, mas também e, sobretudo, em ficar desatento, a se deixar abordar pelo inesperado e pelo imprevisto”. (página 18)

Corpo e olhar
- A descrição etnográfica não se limita a uma percepção exclusivamente visual. Através da vista, do ouvido, do olfato, do tato e do paladar, o pesquisador percorre minuciosamente as diversas sensações encontradas. (página 20)
- Geertz: “empregar para a percepção o vocabulário da visão (ver, observar, etc.) é uma coisa natural para os Europeus, mas aqui (em Bali) tanto com o corpo como com os olhos, agitando a cabeça, tronco e membros para repetir a música, os gestos e as manobras dos galos. Quer dizer que o indivíduo recebe essencialmente uma impressão mais fisiológica do que visual do combate. (página 21)
- Construímos o que olhamos à medida que o que olhamos nos constitui, nos afeta e acaba por nos transforma. (página 21)

Experimentação in vitro e experimentação in vivo
- O trabalho do etnógrafo não consiste unicamente numa metodologia exclusivamente indutiva, coletando um monte de informações, mas sim em impregnar-se dos temas obsessivos de uma sociedade, dos seis ideais, de suas angústias.(página 22)
- O etnógrafo deve ser capaz de viver no seu íntimo a tendência principal da cultura que está estudando.

Uma aculturação ao invés
- A etnografia é antes de tudo uma experiência física de imersão total, onde, longe de tentar compreender uma sociedade unicamente nas suas manifestações “exteriores” (Durkheim), eu devo interiorizá-lo através das significações que os próprios indivíduos atribuem a seus próprios comportamentos. (página 23).
- Quando o etnólogo pretende a neutralidade absoluta, quando ele acredita ter recolhido os fatos “objetivos”, quando ele elimina dos resultados de sua pesquisa tudo o que contribuiu a alcançá-la e que ele apaga cuidadosamente os traços de sua implicação pessoal no objeto de seu estudo, é então que ele corre o maior risco de se distanciar do tipo de objetividade e do modo de conhecimento específico da sua disciplina, ou seja: a apreensão, ou melhor, a construção daquilo a que Marcel Mauss chamou de “fenômeno social total” que supõe a integração do observador no próprio campo da observação. (página 23-24)
- Se ser é perceber, é também, como disse Berkeley, “ser percebido”. Merleau-Ponty escreve: “sou um vidente visível”. Não existe etnografia sem confiança mútua e sem intercâmbio. (página 24)
- O que vive o pesquisador, em sua relação com seus interlocutores, (o que ele recalca ou que ele sublima, o que ele detesta ou o que ele aprecia), faz parte integrante de sua pesquisa. Assim, a antropologia também é a ciência dos observadores susceptíveis de se observar a eles mesmos, procurando que uma situação de interação (sempre inédita) se torne o mais consciente possível. (página 26)
- A análise, não somente das reações dos outros à nossa presença, mas de suas próprias reações as reações dos outros, é um instrumento por excelência, que traz à nossa disciplina vantagens científicas consideráveis. (página 27)
Laplatine, François, 1943. A descrição etnográfica. Tradução João Manuel Ribeiro Coelho e Sérgio Coelho. São Paulo: Terceira Margem, 2004.

4 comentários:

Mairla disse...

texto bom e acho que serve pra todo mundo =)
ahn, esse fichamento é só da introdução e primeira parte (A etnografia como atividade perceptiva: o olhar).
beijos

Bruna_ disse...

muito boa pedida mairla!
:]

J. Thiago disse...

Texto que pensa e que faz pensar. Gostei bastante e, se não me engano, creio Manoel já ter passado este livro em "Observação", embora não tenha pensado (ou sentido) algumas matizes no 1º período. Mas... Tenho uma perguntinha! Na introdução, diz-se que

"A especificidade da antropologia está ligada a um projeto: o estudo do homem como um todo, quer dizer em todas as sociedades, sob todas as latitudes, em todos os seus estados e em todas as épocas."

Isso não seria uma busca pelos invariantes do humano!?

Juaum disse...

James, realmete há esse risco. assim como nossa psicologia que tem em sua história histórias divergentes e também essa que como vc bem falou busca pelos invariantes do humano, é a antropologia (arriscaria dizer ciências humanas). Penso que seja esse o risco de trabalhar com um corpo de mil lados como é o humano.
mas então há realmente antropologias que visam fuçar invariantes humanos em todas as culturas. Mas peço que depreenda mais atenção ao que vem após ao "quer dizer" da sua citação, acho que aí podemos ter outras antropologias caminhando junto, e aqui lembro do Augé quando ele argumenta sobre a possibilidade de uma antropologia do mundo contemporâneo.
Aí ela deixa de ser definida pelo estudo de um campo específico (estudo dos primitivos visando um entendimento da evolução das culturas) e torna-se desenhada pelo seu método descritivo do homem "em todas as sociedades, sob todas as latitudes, em todos os seus estados e em todas as épocas."