segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Memória e Sociedade

Memória e Sociedade
Ecléa Bosi

“O velho não tem armas. Nós que temos de lutar por ele.” (Ecléa Bosi)
TEMA E VARIAÇÕES
A mulher, a criança e o velho não são classes: são antes aspectos diversificados e embutidos por entre as classes sociais. Assim como não se pode falar, com prioridade, em classes de artistas ou de cientistas. Estes, como aqueles, pertencem a uma ou outra classe social que o configura e deles exige definições.
Já se sabe: o que define a classe social é a posição ocupada pelo sujeito nas classes objetivas de trabalho. (p. 11)

1. MEMÓRIA-SONHO E MEMÓRIA-TRABALHO

AÇÃO E REPRESENTAÇÃO
O sentimento difuso d apropria corporeidade é constante e convive, no interior da vida psicológica, com a percepção do meio físico ou social que circunda o sujeito. (p. 44).
Ação e representação estariam ligadas ao esquema geral corpo-ambiente: positivamente, a ação, negativamente, a representação. (p. 45)

O “CONE” DA MEMÓRIA
A memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere o processo “atual” das representações. (p. 46)
O que o método introspectivo de Bergson sugere é o fato da conservação dos estados psíquicos já vividos; conservação que nos permite escolher entre as alternativas que um nove estímulo pode oferecer. (p. 47)
Bergson afirma: “é do presente que parte o chamado ao qual a lembrança responde”. (p. 48)

AS DUAS MEMÓRIAS
O passado conserva-se e, além de conservar-se, atua no presente, mas não de forma heterogênea. De um lado, o corpo guarda esquemas de comportamento de que se vale muitas vezes automaticamente na sua ação sobre as coisas: trata-se da memória-hábito, memória dos mecanismos motores. De outro lado, ocorrem lembranças isoladas independentes de quaisquer hábitos: lembranças isoladas, singulares, que constituiriam autênticas ressurreições do passado. (p. 48)
A memória-hábito faz parte de todo nosso adestramento cultural. (p. 49)
Na tábua de valores de Bergson, a memória pura, aquela que opera nos sonhos e na poesia, está situada no reino privilegiado do espírito livre, ao passo que a memória transformada em hábito, assim como a percepção “pura”, só voltada para ação iminente, funcionam como limites redutores da vida psicológica. A vida activa aproveita-se da vida contemplativa, e esse aproveitar-se é, muitas vezes, um ato de espoliação. (p. 51)

HALBWACHS, OU A RECONSTRUÇÃO DO PASSADO
Halbwachs não vai estudara memória, como tal, mas os “quadros sócias da memória”. Nessa linha de pesquisa, as relações a serem determinadas já não ficarão adstritas ao mundo da pessoa, mas perseguirão a realidade interpessoal das instituições sociais. (p. 54)
O instrumento decisivamente socializador da memória é a linguagem. (p. 56)
As convenções verbais produzidas em sociedade constituem o quadro ao mesmo tempo mais elementar e mais estável da memória coletiva. (p. 56)

A MEMÓRIA DOS VELHOS
Para Halbwachs, bem outra seria a situação do velho, do homem que já viveu sua vida. Ao lembrar o passado ele está se ocupando consciente e atentamente do próprio passado, da substância mesma da sua vida. (p. 60)
Na sociedade em que vivemos, é a hipótese mais geral de que o homem ativo (independentemente de sua idade) se ocupa menos em lembrar, exerce menos frequentemente a atividade da memória, ao passo que o homem já afastado dos afazeres mais prementes do cotidiano se dá mais habitualmente à relação do seu passado. (p. 63)

MEMÓRIA, CONTEXTO E CONVENÇÃO
A “convencionalização” é, a rigor, um trabalho de modelagem que a situação evocada sofre no contexto de idéias e valores dos que a evocam. (p. 66)
A elaboração grupal comum seria decisiva. Sem ela, tenderia a reproduzir-se com mais força o teor da “primeira impressão”, matéria daquela lembrança-imagem e da “memória pura” de Bergson. Com ela, ao contrário, a primeira impressão ficaria cancelada e substituída pelas representações e idéias dominantes inculcadas no sujeito (hipótese de Halbwachs), ou apenas amortecida no inconsciente, de onde poderia sair durante o sonho e nos raros momentos de livre evocação (hipótese de Bergson). (p. 67)
Para William Stern, a unidade pessoal conserva intactas as imagens do passado, mas pode alterá-las conforme as condições concretas de seu desenvolvimento. (p. 68)
O único modo concreto de sabê-lo é levar o sujeito a fazer sua autobiografia. A narração da própria vida é o testemunho mais eloquente dos modos que a pessoa tem de lembrar. É a sua memória (p. 68)

2. TEMPO DE LEMBRAR

MEMÓRIA E SOCIALIZAÇÃO
Integrados em nossa geração, vivendo experiências que enriquecem a idade madura, dia virá em que as pessoas que pesam como nós irão se ausentando, até que poucas, bem poucas, ficarão para testemunhar nosso estilo de vida e pensamento. Os jovens nos olharão com estranheza, curiosidade; nossos valores mais caros lhes parecerão dissonantes e eles encontrão em nós aquele olhar desgarrado com que, às vezes, os velhos olham sem ver, buscando amparo em coisas distantes e ausentes. (p. 75)
Em nossa sociedade, os fracos não podem ter defeitos; portanto, os velhos não podem errar. Deles esperamos infinita tolerância, longanimidade, perdão, ou uma abnegação servil pela família. Momentos de cólera, de esquecimento de fraqueza são duramente cobrados aos idosos e podem ser o início de seu banimento do grupo familiar. (p. 76)

A VELHICE NA SOCIEDADE INDUSTRIAL
A velhice é uma categoria social. (p. 77)
Quando as mudanças históricas se aceleram e a sociedade extrai sua energia da divisão de classes, criando uma série de rupturas nas relações entre os homens e na relação dos homens com a natureza, todo sentimento de continuidade é arrancado de nosso trabalho. Destruirão amanhã o que construiremos hoje. (p. 77)
Quando se vive o primado da mercadoria sobre o homem, a idade engendra desvalorização. A racionalização, que exige cadências cada vez mais rápidas, elimina da indústria os velhos operários. (p. 78)
A criança sente voltar para si os reflexos de amor que sua imagem desperta. O velho, a contrário, não pode realizar sua imagem, concebê-la como é para ou outros. (p. 79)
Como deveria ser uma sociedade para que na velhice, o homem permaneça um homem? A resposta é radicalmente para Simone de Beauvoir: “Seria necessário que ele sempre tivesse sido tratado como homem”. (p. 81)

HISTÓRIA DE VELHOS
A civilização burguesa expulsou de si a morte; não se visitam moribundos, a pessoa que vai morre é apartada, os defuntos já não são mais contemplados. (p. 88)
Os agonizantes, diz Benjamin, são jogados pelos herdeiros em sanatórios e hospitais. Os burgueses desinfetam as paredes da eternidade. (p. 88) O narrador está presente ao lado do ouvinte. Suas mãos, experimentadas no trabalho, fazem gestos que sustentam a história, que dão assa aos fatos principiados pela suas voz. Tira segredos e lições que estavam dentro das coisas, faz uma sopa deliciosa das pedras do chão, como no conto da Carochinha. A arte de narrar é um a relação alma, olho e mão: assim transforma o narrador sua matéria, a vida humana. (p. 9

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