segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A descrição etnográfica

Introdução
- A especificidade da antropologia está ligada a um projeto: o estudo do homem como um todo, quer dizer em todas as sociedades, sob todas as latitudes, em todos os seus estados e em todas as épocas. (página 9).
- Atividade de observação, a etnografia é antes de tudo uma atividade visual, ou, como dizia Marcel Duchamp acerca da pintura, uma “atividade retiniana”. (página 10)
- A descrição etnográfica não consiste apenas em ver, mas em fazer ver, ou seja, em escrever o que vemos. A descrição etnográfica enquanto escrita do visível põe em jogo não só a atenção do pesquisador, mas um cuidado muito particular de vigilância em relação à linguagem , já que se trata de fazer ver com as palavras, ..., relatar da maneira mais minuciosa a especificidade das situações, sempre inéditas, às quais estamos confrontados. (página 10).

A Etnografia como atividade perceptiva: o olhar

“Um historiador pode ser surdo, um jurista cego, um filósofo
a rigor pode ser os dois, mas é preciso que o antropólogo ouça
o que as pessoas dizem e veja o que fazem”.
Raymond Firth

- Localizados, de fato, em uma só cultura, não apenas nos mantemos cegos diante das culturas dos outros, mas míopes quando se trata da nossa. (página 13).
- Todos somos, de fato, tributários das convenções da nossa época, de nossa cultura e do nosso meio social que, sem que percebamos, nos designa: o que é preciso olhar, como é preciso olhar. (página 13 e 14)
- Ver, é, na maioria das vezes, por memorização e antecipação, desejar encontrar o que esperamos e não o que ignoramos ou tememos. (página 14)
- Essa experiência que consiste em nos espantar com aquilo que nos é mais familiar e tornar mais familiar àquilo que nos parecia inicialmente estranho e estrangeiro é por excelência a da etnografia. É uma atividade decididamente perceptiva, fundada no despertar do olhar e na surpresa que provoca a visão. (página 15).

- Lévi-Strauss qualifica o campo de “revolução interna que fará do candidato à profissão antropológica um homem novo”.

Ver e olhar
- Na linguagem cotidiana, a palavra vê é utilizada para designar um contato direto com o mundo que não necessita nenhuma preparação, nenhum treino, nenhuma escolaridade. Ver é receber imagens. (página 17)
- Ver imediatamente o mundo tal como é, cujo corolário consistiria em descrever exatamente o que aparece aos olhos, não seria realmente ver, mas crer, e crer em especial na possibilidade de eliminar a temporalidade. Seria reivindicar uma estabilidade ilusória do sentido do que se vê e negar à vista e ao visível seu caráter inelutavelmente mutante. (página 17).
- Olhar do etnógrafo: um olhar quanto não inquieto, pelo menos questionador, que vai em busca da significação das variantes. (página 17-18)
- O olhar do etnográfico não pode confundir-se com o olhar perfeitamente controlado, educado, abalizado por referências ocidentalizantes, que consistiria em fixar e escrutar seu objeto como um urubu sua presa, e que acentuaria de certo modo a acepção medieval de regarder = colocar sob guarda, que é também a de “droit de regard” (direito de controle). Página 18.
- “Não consiste apenas” como diz Affergan “em ficar atento, mas também e, sobretudo, em ficar desatento, a se deixar abordar pelo inesperado e pelo imprevisto”. (página 18)

Corpo e olhar
- A descrição etnográfica não se limita a uma percepção exclusivamente visual. Através da vista, do ouvido, do olfato, do tato e do paladar, o pesquisador percorre minuciosamente as diversas sensações encontradas. (página 20)
- Geertz: “empregar para a percepção o vocabulário da visão (ver, observar, etc.) é uma coisa natural para os Europeus, mas aqui (em Bali) tanto com o corpo como com os olhos, agitando a cabeça, tronco e membros para repetir a música, os gestos e as manobras dos galos. Quer dizer que o indivíduo recebe essencialmente uma impressão mais fisiológica do que visual do combate. (página 21)
- Construímos o que olhamos à medida que o que olhamos nos constitui, nos afeta e acaba por nos transforma. (página 21)

Experimentação in vitro e experimentação in vivo
- O trabalho do etnógrafo não consiste unicamente numa metodologia exclusivamente indutiva, coletando um monte de informações, mas sim em impregnar-se dos temas obsessivos de uma sociedade, dos seis ideais, de suas angústias.(página 22)
- O etnógrafo deve ser capaz de viver no seu íntimo a tendência principal da cultura que está estudando.

Uma aculturação ao invés
- A etnografia é antes de tudo uma experiência física de imersão total, onde, longe de tentar compreender uma sociedade unicamente nas suas manifestações “exteriores” (Durkheim), eu devo interiorizá-lo através das significações que os próprios indivíduos atribuem a seus próprios comportamentos. (página 23).
- Quando o etnólogo pretende a neutralidade absoluta, quando ele acredita ter recolhido os fatos “objetivos”, quando ele elimina dos resultados de sua pesquisa tudo o que contribuiu a alcançá-la e que ele apaga cuidadosamente os traços de sua implicação pessoal no objeto de seu estudo, é então que ele corre o maior risco de se distanciar do tipo de objetividade e do modo de conhecimento específico da sua disciplina, ou seja: a apreensão, ou melhor, a construção daquilo a que Marcel Mauss chamou de “fenômeno social total” que supõe a integração do observador no próprio campo da observação. (página 23-24)
- Se ser é perceber, é também, como disse Berkeley, “ser percebido”. Merleau-Ponty escreve: “sou um vidente visível”. Não existe etnografia sem confiança mútua e sem intercâmbio. (página 24)
- O que vive o pesquisador, em sua relação com seus interlocutores, (o que ele recalca ou que ele sublima, o que ele detesta ou o que ele aprecia), faz parte integrante de sua pesquisa. Assim, a antropologia também é a ciência dos observadores susceptíveis de se observar a eles mesmos, procurando que uma situação de interação (sempre inédita) se torne o mais consciente possível. (página 26)
- A análise, não somente das reações dos outros à nossa presença, mas de suas próprias reações as reações dos outros, é um instrumento por excelência, que traz à nossa disciplina vantagens científicas consideráveis. (página 27)
Laplatine, François, 1943. A descrição etnográfica. Tradução João Manuel Ribeiro Coelho e Sérgio Coelho. São Paulo: Terceira Margem, 2004.

sábado, 22 de novembro de 2008

Diário de campo, 18/11/08

Fiz o máximo que pude para chegar antes das práticas começarem, consegui! Foi uma pena não ter chegado antes de Marcos, por coincidência o encontrei pelo percurso, peguei uma carona e no restante do caminho fui ouvindo seus diversos aforismos e máximas, um deles foi: "cigano é bicho ruim";"cigano só gosta de sombra e água fresca", D. Joaninha e D. Francisca, por sua vez, assentiram proferindo também algumas notas de repúdio aos ciganos. Marcos fez ao menos uma caridade, me livrou do sol apino de 1:00h da tarde. Mas apesar de Marcos ter chegado cedo e começado a cantoria, durante os trinta minutos anteriores ao horário marcado pude estabelecer uma agradável conversa com D.Maria de Lourdes e com outra Maria, esta sem complemento nominal. As conversas não foram simutâneas. Assim que cheguei sentei do lado de uma senhora de Simão Dias, que não me pareceu afeita a conversação. Migrei para o lado de D.Lourdes, perguntei-a há quanto tempo ela frenquentava o espaço, se ela gostava de lá ! A maneira como conduzimos a conversa nada se pareceu com uma entrevista, mais parecíamos pessoas que estavam se conhecendo e de fato era a primeira vez que nos falávamos. Algumas falas de D. Lourdes foram importantes para o entendimento de seu modo de encarar o grupo: "a gente vem aqui para brincar, se divertir, dançar".
Depois de algum tempo comecei a fazer meu crochê e ao me ver fazendo ela começou a falar que fizera muito crochê, pintura, e outros artesanatos para vender na feira do Eduardo Gomes. E demonstrou um incômodo por naquele espaço essas atividades nunca terem sido realizadas.
O crochê, levei a propósito para incitar algumas falas, mas exceto D. Lourdes, as senhoras que estavam ao meu redor não sabiam fazer crochê, fato para mim estranho por não corresponder a imagem que eu tinha de velhinhas bordando, tricontando...!
Nos mesmos 30 min de adiantamento conversei com D.Maria. Foi uma conversa rápida, em que pude perceber a sua alegria por ter encontrado aquele espaço, onde ela poderia ir seguindo um novo roteiro senão o do médico, da feira, e da igreja. O restante da conversa foi preenchida com a sua reclamação por ter a percata se quebrado no caminho, obrigando-a a voltar de pés descalços. Depois de alguns minutos ela com toda sua inventividade teve a idéia de fazer um buraquinho na percata, com a minha agulha, e amarrar o pedaço quebrado com uma linha. Foi genioso, ela notou os instrumentos disponíveis, a agulha e a linha, e zap!
A conversa mais interessante do dia foi com D. Joaninha, uma senhora incrível com seus 94 anos, dos quais ela me pareceu ter muito orgulho. Nas três ocasiões a conversa foi puxada quando eu perguntava há quanto tempo elas frequentavam o grupo, como resposta ouvi mais de 11anos, alguns meses, e D. Joaninha não fez os cálculos, só afirmou que havia muito tempo. Não me lembro como que ela começou a falar do seu marido. Ela me contou um bocado de coisa sobre seu casamento e sua vida. Pelo que ela contava, percebi o destaque dado as coisas ruins(por ela significado como ruins) sucedidas na sua vida.Um exemplo foi sua declaração de que e nos 68 anos de casamento não havia amado o marido. Outro fato a muito ocorrido foi sua saída de casa para a dos pais, uma tentativa de desistir do casamento...Enquanto todas as conversações a dança rolava no centro do salão!

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Diário de campo - 19/11/2008

i.) Cheguei ao local dos encontros das quartas por volta das 15:30. Já de longe percebi uma movimentação diferente. Vi que os idosos estavam do lado de fora do prédio, e orientados pelo estudante de educação física formavam um grande fila, encabeçados por Dona Zefa. Ali estavam, além dela, os idosos que freqüentam com assiduidade os encontros semanais no Lions Club Serigy. Tratava-se de um ensaio da apresentação que Marcos Monteiro tanto tem alardado.
Por falar nisso, o grande dragão estavam (bem?!) acompanhado: além de sua esposa, também a cunhada e o esposo dela também participaram do ensaio, cada um com um intrumento musical. Figuras estranhas, assim como o Marcos...
Bom, outra novidade que a mim se apresentou foi a presença de idosos que nunca tínhamos visto às terças. Por volta de quinze pessoas estavam lá, mas permaneceram sentados durante a maior parte do tempo.Liguei essa postura a dois motivos. Num primeiro momento acreditei que porque se tratava de um ensaio e como muitos daqueles não sabia o que se passava, seria difícil para eles acompanharem as atividades. Depois acabei descobrindo não se tratar exatamente disso. Daqui a pouco retornaremos nesse ponto.

ii.) Como eu também não podia participar das atividades de dança, resolvi sentar e assistir. Ao meu lado estava uma idosa de 58 anos que havia faltado às ultimas quatro reuniões em virtude de uma artrose no joelho direito. Segundo ela me disse, apesar de ainda sentir dores, “não agüentava mais ficar sem vir”. Perguntei o porquê. “Ela me disse que achava as reuniões divertidas, que ia para elas para rir. Por que é engraçado ver um monte de velhos fazendo essas coisas.” Depois de falarmos sobre os benefícios dos analgésicos, da natação e do repouso pra inflamações nas articulações, voltamos a falar sobre as reuniões. Perguntei a ela o que os filhos achavam de ela sair com o joelho doente para uma reunião. Ela me disse que eles riem dela, mas que apóiam. “Eles dizem que é melhor do que ficar em casa sem fazer nada. E se eles viessem ia ver que é engraçado mesmo!”

iii.) Não sei exatamente como, mas quando dei por mim estava sentado ao lado das idosas que nunca tinha visto antes nas reuniões. Resolvi falar com uma delas. Ela se chamava Dona Zete e estava pela primeira vez no grupo. Ela me disse que participava das reuniões há muito tempo atrás (antes da era Marcos Monteiro), ainda no centro paroquial, mas que por causa da saúde debilitada havia se afastado. Apesar de conhecer muitos dos idosos ali presentes, d. Zete estava um pouco assustada porque as reuniões que freqüentava antigamente eram bem diferentes. Ao invés de dançarem e se exercitarem, as pessoas iam aprender a bordar, costurar, fazer crochê. E também não tinha tanta gente velha, eram muito mais novas.” Dona Zete não soube me dizer se ficaria mais à vontade numa reunião com pessoas mais jovens ou com idosas, mas gostaria que ainda existissem as oficinas.
Dona Zete também me contou de suas experiências em outros grupos. Já fez, por exemplo, natação e ginástica noutros projetos desenvolvidos pela Universidade. “E agora voltou pra o grupo?”, lhe perguntei. Depois de um pois é, ela me disse que estava lá para ver como era que funcionavam as reuniões, também iria ao Lions, mas ainda não sabia como chegar lá. Disse-me também que era melhor estar freqüentando as reuniões do que estar em casa: “pra quê ficar perdendo tempo pensando nos problemas, se isso não vai resolver nada?”, foi o que me disse. Mas dona Zete não veio sozinha, ao seu lado estava sua vizinha e amiga, dona Gildete.
Dona Gildete, sorriso aberto e conversa solta. Num certo momento da conversava com dona Zete começamos a falar sobre a interferência dos filhos e a amiga foi instada a participar. Gildete tem “quase 60”, é viúva há dezoito anos e mora com um filho de 35 anos. Segundo ela, ele não interfere mais na vida dela. Ainda está “amarrado à barra da saia, mas não se intromete mais”. Segundo ela, depois de ter mostrado a ele que nessa altura da vida a única coisa que se pode fazer é brincar, ele se resignou (“já perdi minha juventude, então tenho que aproveitar o que resta”, disse ela).
Como tem “quase 60” dona Gildete disse que estar ansiosa para completar 60 anos logo. Pois com essa idade ela pode andar gratuitamente no transporte público e poderá, finalmente, freqüentar os bailes da terceira idade que acontecem de domingo a domingo em Aracaju: “Quando trocar a carteirinha, aí não vai prestar não!” E, para me provar que não estava mentindo, ela listou, disse o horário de início e término e onde ocorriam cada um dos principais bailes!
Sua única queixa é o fato de haver muito mais velho do que novos freqüentando esse tipo de festa. “velhos”, leia-se homens mais velhos. Por isso, pelo menos no melhor dos bailes que freqüenta (nos domingos à noite), dona gildete só chega depois das seis da tarde. A festa começas às quatro, mas só depois das seis é que começam a chegar os coroas, até aí a maioria é de idosos que vão para casa porque tem que dormir cedo.
Não pude deixar de perguntar se ela costumava namorar nesses encontros. Depois de um sorrizinho malicioso ela acenou positivamente com a cabeça. Então, com ar de surpreso, lhe perguntei como era isso, de namorar nessa idade e como era que acontecia. Ela me disse que era “normal”, mas que deixava claro que não queria se envolver profundamente com ninguém. Ainda meio sem saber o que dizer, repeti a pergunta. Ela, então, resolveu me explicar com um exemplo.
Falou-me de um passeio a que ela tinha ido na semana anterior. Disse que lá havia encontrado um senhor e se interessado por ele. Ressaltou que gostou da idéia de ele ser de outra cidade, “assim nunca mais a gente volta a se encontrar!”. Depois de um certo tempo de paquera, os dois resolveram aproveitar o passeio juntos. Ainda não sabia o que lhe perguntar, estava meio assustado de encontrar e soltei um “e deu para aproveitar?” Vi novamente aquele sorrisinho de canto de boca. Dona Gildete olhou para mim e disse: “a gente tinha o dia inteiro...” Dizer mais o quê?

terça-feira, 18 de novembro de 2008

pra que meu nome?

Como a feira começa dentro de casa, começarei daí percorrendo todo meu caminho. Saí vasculhando tudo pra ver o que faltava em casa e notei que a feira tinha sido feita no dia anterior. Nada para comprar, então! Pelo menos de necessário. Pelo caminho fui imaginando o que poderia comprar, percorrendo a Francisco Porto, Saneamento, Rio de Janeiro, por fim Castelo Branco, chego ao meu destino, hoje de carona, com a idéia de comprar folha de hortelã. Pronto! Ótima idéia, nada melhor do que uma combinação com suco de abacaxi.

Desço pelo lado da caixa d’água às sete e quarenta e cinco da manhã, mais tarde do que o costume. Ando devagar, notando o movimento intenso de carro, guardador-de-carro, carrinho-de-mão e gente passando. Caminho em direção à praça e sento no banco de sempre. Eu realmente fico fascinada com a habilidade que os vendedores de carne têm com a faca. Fico vidrada olhando os cortes que fazem e a rapidez que é! Chama mais minha atenção a mulher que dentre os homens se destaca por ser mulher-macho-sim-sinhô. Engraçado como ela é bruta! O homem, também vendedor de carne, da banca ao lado vinha todo cheio de graça pra cima dela e ela nem aí pra ele. Mandava embora e saia toda machão. O rapaz saia rindo desconfiado e trocando olhares com o moreno da banca do lado esquerdo. E ela sustentando a pose! Senta no balde d’água azul, apóia a perna na banca e pega o celular, toda séria, sempre!

Em meio aos gritos incessantes e repetidos a cada 2 minutos de “tomate a 1 real, 1 real”, passa uma galega que faz o outro do lado de cá, o moreno, parar de fazer o que fazia e gritar: “Êta galeguinha linda, meu deus! Olhe...(pausa) sou apaixonado por você viu?”. Não me agüento e começo a rir sozinha.

Já meio enjoada de ficar só, penso em ir pra casa, mas sem antes de dar uma volta por toda feira. Quando menos espero, encontro João que acabara de chegar. Resolvemos dá uma volta juntos. Conversa vai e vem, entramos num consenso de que é melhor irmos juntos, de dois em dois, para o tédio não bater. A feira com mais alguém passa a ser divertida. Pelo caminho vamos dando risadas das pessoas, principalmente da vendedora de sacolas que nos oferece a venda duas vezes! Seguimos ela por um momento, mas depois a perdemos de vista quando paramos pra comprar as folhas de hortelã.

Encontros e desencontros, aparece Kleber com a senhora sua mãe. Que faz o favor de nos apresentar como “uns alunos aí que estão trabalhando aqui na feira”. Apresentação que foi repetida por João como comentário, porque por mim teria passado que nem notaria. Mas enfim, saímos andando e proponho ir dar uma olhada nos banheiros. Fomos andando por fora da feira, pela avenida, até chegar na praça. Lá não tenho nem coragem de chegar perto pra sentir o cheiro enquanto João briga com uma das portas tentando abrir. Nisso aparece um doidão todo cheiroso à planta natural reclamando do banheiro. Dizendo que é uma falta de respeito, mesmo ele não precisando porque caga em casa. Nos pergunta se somos da vigilância sanitária e diz que o banheiro vive ocupado, de merda! E que pra entrar, “os caras” só vão com cigarro ou um baseado pra agüentar o cheiro...

Surge mais um e reclama também e um senhor sai cambaleando do banheiro que João brigava tentando abrir. “Tava aí era meu velho? Como é que agüentou, ein?” – diz rindo o doidão que apareceu primeiro. João estava mais inteirado com o cara, perguntando, fazendo comentários e respondendo ao que ele perguntava. Já eu tava meio de retaguarda só olhando o movimento dos outros atrás que estavam conversando. Nos despedimos e João pergunta o nome dele:
- Pra que meu nome? Nome é retrato, minha palavra é de vez.
- Tá, meu nome é João – cumprimentando com as mãos.
- Fábio, diz ele. João Carlos?
- Não, não, só João mesmo.
- João de Deus, então!

Saímos rindo e bestas com a frase que o cara disse. Não esquece não, viu? E repetimos umas duas vezes pra ficar guardada na memória.
Em direção à sorveteria, vamos ao encontro de Finha e Nininha. Finha comenta que pensara que eu tinha parado de ir à feira porque por duas sextas não aparecia. Toda simpática vem com a coca-cola, pão e queijo pra gente comer. Se senta próximo a nós, na calçada da sorveteria, enquanto Nininha, que é toda agoniada, fica pra lá e pra cá atendendo os fregueses dela e os da Finha, enquanto essa come uma empada reclamando do recheio.

Em meio a nossa distração e conversa, aparece um senhor com dois pedaços de cana na mão e um livro debaixo do braço gritando qualquer coisa de que a cana era dura e a cana era mole. Rimos e o homem fala: Ta vendo isso aqui? Só eu tenho! Só vendo por 100 reais. Se o cabra me oferecer 99 eu num dou, só vendo por 100!

Esse senhor tinha apostado uma cachaça com um outro lá no bar de que um jogador fazia ou não parte da delegação do Brasil em algum ano. Ele foi a casa buscar o livro pra provar com foto e tudo que o cara era sim e que ganhara a aposta. Nisso o cara já estava sentado do nosso lado contando toda a história, mostrando as fotos com Pelé e como tinha sido aquela copa, que nem eu nem o João éramos nascidos. O homem sai todo agoniado puxando o livro das mãos de João dizendo que vai ao bar que tem logo ali. Se despede e sai todo apressado.

Bom, hora de irmos também. Damos uma última volta por toda a feira e nos despedimos de onde saímos. Vou ao ponto de ônibus e João ao carro.

Circular indústria e comércio é quem me faz chegar em casa novamente, com sacola de hortelã e ameixas na mão.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Olhai os lírios do campo...

Curioso ler o texto anterior, da Bruna. Senti-me numa sincronicidade, à velha moda junguiana. Isto porque, assim como nossa colega, passei a enxergar os lírios do campo de pesquisa. Antes de entrar neste detalhe, coloco em crônica minhas experiências.

Fui andando, temperado sob o sol, mais uma vez. O "Era Uma Vez" de todo personagem começa, de facto, com uma andança. E, nessa destemperança encontrei, no meio do caminho, algo muito maior - e melhor! - do que pedras. Dois lindos senhores - um casal, em verdade - estavam sentados na calçada, seguros da fúria dantesca e sustenida de um Sol Maior. Reconheci, parei, sentei, conversei e conjurei mais alguns verbos em companhia deles. Falamos sobre istos, aquilos e um pouco mais.

Uma frase acertou-me, certeira, como o arqueiro inspirado por Kairós. Enquanto caminhávamos, percebi que a senhora me percebeu um pouco mais ágil do que ela e seu companheiro de pernas. Disse que "velho anda devagar, que é pra esperar outros velhos". Senti-me indigesto com aquela seta carregada de movimentos e intensidades. Enquanto eu voava, ambos continuaram a caminhar e a trilhar uma nova estrada. Começaram a falar de comida.

O Senhor pronuncia: "Eu não como peixe com escama, caranguejo, pitu..." Daí, a Senhora o interrompe: "Você não come peixe carregado, é!?" Ele finaliza: "Carregado, não! Só comprado, mesmo!" Nós três, após segundos eternos de silêncio, nos pusemos a rir. Não a gargalhada do bufão, mas o sorriso do menestrel. Riso interno, só nosso! Só meu e de meus velhos amigos!

Chegamos na arena e, como de costume, Monteiro já havia chegado. Aconchegamo-nos - os três - em lugares distintos, e procedeu-se os rituais costumeiros. Minto! Marcos parecia um pouco mais tranqüilo do que a sua essência - a nós revelada - permitia. A reunião transcorreu divertida. Peso leve e jugo suave. Curiosa, no entanto, foi a minha visada de consciência sobre duas senhoras que, enquanto todos explodiam em festividade, implodiam em sorumbatismos. Cabeças baixas que me fizeram levantar a visão para um plano de contemplação outro, tentando imaginar que metafísica as tirava daquele lugar e em que outro lugar ela as colocava.

Uma outra flor que colhi exalou miríficos odores. Falo da pequeníssima Dona Joana que, durante o encontro, lançou duas pérolas-aos-porcos. Eis a primeira, quando a abracei e elogiei seu perfume. Ela devolveu: "Velho tem que ser cheiroso. Velho e Rabugento não dá, né!?". A segunda foi quando, numa conversa-cochicho com outras senhoras, ela declama: "Não somos velhos, não! Velha é a estrada!"

Depois de transcorrida a reunião, Marcos se retira para a sua aula, no Campus, e abandona o campo. Ficamos uns minutinhos a mais, para apresentar nossa nova companheira de campanha e ver se colhíamos mais algumas rosas, com ou sem espinhos. Começa a se organizar um bingo, mas abandonamos o local - infelizmente - antes que ele frutificasse.

A flor mais bela que colhi nesta reunião foi perceber que o gramado não possui cercas. Antes - confesso - fazia reflexões sobre o que os idosos faziam na reunião, o que pensavam na reunião, o que falavam na reunião. Enfim, ao menos eu, fazia, pensava e falava sobre reuniões, não sobre idosos. Falava sobre lugares, danças e poemas, mas não encarava as caminhadas, as quedas e as poesias. Poesia de mim. Não quero mais colocar cercas nos meus jardins. Não mais. Olhai os lírios do campo, homens. Olhai os lírios do campo...

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Estranhamento

Amiguinha, querida, meu amor. Essas foram as formas como fui chamada enquanto passava pelas bancas de venda e os vendedores me ofereciam seus produtos.
Tem dias que parece tudo que você faz é no automático. Acho que nesse dia eu estava assim. Passava por entre as barracas, já tinha um percurso certo na cabeça, sabia mais ou menos a ordem em que estas se sucediam. Via frutas, no balcão, no chão, gente, carrinhos, carregadores. Tudo numa mistura que já não me era estranha. Era como se enxergasse tudo, mas ao mesmo tempo estivesse me guiando pelo que já tinha visto não pelo que estava vendo.
Quando cheguei em casa, e parei para pensar sobre o que havia acontecido me dei conta de que a feira não era mais algo estranho pra mim, pelo contrário, já havia absorvido alguns de seus aspectos, coisas que antes eram novas , que me chamavam a atenção passavam agora despercebidas, ou melhor, como velhas conhecidas.Daí então me veio um questionamento: a feira assim como várias outras coisa com que tenho contato no meu dia- a – dia estava caindo na rotina.Deste questionamento surgiu um possível problema: talvez estivesse deixando de ver as peculiaridades da feira. Provavelmente, isso não seria uma boa coisa. Porém, depois pensei que talvez fosse precipitado da minha parte ter tal acontecimento do dia como a verdade para todos os outros.
O que mais posso falar é que foi uma visita estranha, diferente das outras. E, sem muitos detalhes a serem descritos. Acredito até que devido a forma como me encontrava no dia. No entanto, achei importante postar, mesmo que em poucas linhas o que tinha a dizer, porque esse dia me revelou um outro olhar, distinto de todos os outros que já havia tido da feira.

domingo, 9 de novembro de 2008

O dragão rei e as rainhas leoas (ou Da Felicidade...)

Mais uma vez, atraso com as minhas impressões. Desta vez, não há Máquinas, Redes ou Arquétipos à culpar. Culpo - tão somente - o espírito da indolência que de mim se apossou esta semana (isto ainda é transferêcia de culpa, certo? Ficarei calado, desta vez...).

Para melhor configurar o dia 4, relembro o 28 do passado mês. Esperando levar o novo aos velhos, pedi a estes que trouxessem aos encontros poemas ou músicas, cantigas ou anedotas, composições ou empréstimos. Enfim, faríamos algo com aquele algo já feito. Decompor a composição. Expirar a inspiração. E aqui eu demonstro meu desencanto com o feitiço que não encantou. Não foi lá estas coisas! Nem cá!!! Sem lá nem cá para colocar os pés no chão, o sonho não encontrou lugar para acordar. O próprio Monteiro não fez sua rotineira sessão de exercícios, talvez esperando que a semente frutificasse.

"A letra mata", disse Paulo De Tarso, "o espírito é que vivifica". Letras demais, alma de menos. A reunião transcorreu morgada, esperançosa que o milagre redentor do fim viesse nos elevar. E o fim chegou! Chegou junto a senhoras felinas, jubilosas com suas jubas. Inicia-se, então, uma conversa pra lá de dialéctica entre o Rei e as Rainhas. Chamas e garras, urros e rugidos, disfarçados de academicismos e afins...

Poderia terminar o relato aqui, mas não o farei. Dentre todos os poemas, todas as criações, todas as aberturas, chamou-me a atenção, em especial, este escrito da Dona Helena:

FELICIDADE

Diz o Mestre:
Muita gente tem medo da felicidade. Para estas pessoas, esta palavra significa mudar uma série de hábitos e perder sua própria identidade. Muitas vezes, nos julgamos indignos das coisas boas que acontecem conosco. Não aceitamos, pois que aceitá-los nos dá a sensação de que estamos devendo alguma coisa a Deus. Pensamos: "É melhor não provar o cálice da alegria, porque, quando este nos falta, iremos sofrer muito". Por medo de diminuir, deixamos de crescer. Por medo de chorar, deixamos de rir.

Não farei reflexões mil sobre o texto. Deixo a ascese pesada para os senhores. Mas só para bem-fechar a Gestalt, comento um comentário do Monteiro sobre a cor do tecido de uma senhora, levemente divergente aos demais: "É diferente. Mas, tudo misturado, passa batido..."

Só dançando, mesmo!

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Memória e Sociedade

Memória e Sociedade
Ecléa Bosi

“O velho não tem armas. Nós que temos de lutar por ele.” (Ecléa Bosi)
TEMA E VARIAÇÕES
A mulher, a criança e o velho não são classes: são antes aspectos diversificados e embutidos por entre as classes sociais. Assim como não se pode falar, com prioridade, em classes de artistas ou de cientistas. Estes, como aqueles, pertencem a uma ou outra classe social que o configura e deles exige definições.
Já se sabe: o que define a classe social é a posição ocupada pelo sujeito nas classes objetivas de trabalho. (p. 11)

1. MEMÓRIA-SONHO E MEMÓRIA-TRABALHO

AÇÃO E REPRESENTAÇÃO
O sentimento difuso d apropria corporeidade é constante e convive, no interior da vida psicológica, com a percepção do meio físico ou social que circunda o sujeito. (p. 44).
Ação e representação estariam ligadas ao esquema geral corpo-ambiente: positivamente, a ação, negativamente, a representação. (p. 45)

O “CONE” DA MEMÓRIA
A memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere o processo “atual” das representações. (p. 46)
O que o método introspectivo de Bergson sugere é o fato da conservação dos estados psíquicos já vividos; conservação que nos permite escolher entre as alternativas que um nove estímulo pode oferecer. (p. 47)
Bergson afirma: “é do presente que parte o chamado ao qual a lembrança responde”. (p. 48)

AS DUAS MEMÓRIAS
O passado conserva-se e, além de conservar-se, atua no presente, mas não de forma heterogênea. De um lado, o corpo guarda esquemas de comportamento de que se vale muitas vezes automaticamente na sua ação sobre as coisas: trata-se da memória-hábito, memória dos mecanismos motores. De outro lado, ocorrem lembranças isoladas independentes de quaisquer hábitos: lembranças isoladas, singulares, que constituiriam autênticas ressurreições do passado. (p. 48)
A memória-hábito faz parte de todo nosso adestramento cultural. (p. 49)
Na tábua de valores de Bergson, a memória pura, aquela que opera nos sonhos e na poesia, está situada no reino privilegiado do espírito livre, ao passo que a memória transformada em hábito, assim como a percepção “pura”, só voltada para ação iminente, funcionam como limites redutores da vida psicológica. A vida activa aproveita-se da vida contemplativa, e esse aproveitar-se é, muitas vezes, um ato de espoliação. (p. 51)

HALBWACHS, OU A RECONSTRUÇÃO DO PASSADO
Halbwachs não vai estudara memória, como tal, mas os “quadros sócias da memória”. Nessa linha de pesquisa, as relações a serem determinadas já não ficarão adstritas ao mundo da pessoa, mas perseguirão a realidade interpessoal das instituições sociais. (p. 54)
O instrumento decisivamente socializador da memória é a linguagem. (p. 56)
As convenções verbais produzidas em sociedade constituem o quadro ao mesmo tempo mais elementar e mais estável da memória coletiva. (p. 56)

A MEMÓRIA DOS VELHOS
Para Halbwachs, bem outra seria a situação do velho, do homem que já viveu sua vida. Ao lembrar o passado ele está se ocupando consciente e atentamente do próprio passado, da substância mesma da sua vida. (p. 60)
Na sociedade em que vivemos, é a hipótese mais geral de que o homem ativo (independentemente de sua idade) se ocupa menos em lembrar, exerce menos frequentemente a atividade da memória, ao passo que o homem já afastado dos afazeres mais prementes do cotidiano se dá mais habitualmente à relação do seu passado. (p. 63)

MEMÓRIA, CONTEXTO E CONVENÇÃO
A “convencionalização” é, a rigor, um trabalho de modelagem que a situação evocada sofre no contexto de idéias e valores dos que a evocam. (p. 66)
A elaboração grupal comum seria decisiva. Sem ela, tenderia a reproduzir-se com mais força o teor da “primeira impressão”, matéria daquela lembrança-imagem e da “memória pura” de Bergson. Com ela, ao contrário, a primeira impressão ficaria cancelada e substituída pelas representações e idéias dominantes inculcadas no sujeito (hipótese de Halbwachs), ou apenas amortecida no inconsciente, de onde poderia sair durante o sonho e nos raros momentos de livre evocação (hipótese de Bergson). (p. 67)
Para William Stern, a unidade pessoal conserva intactas as imagens do passado, mas pode alterá-las conforme as condições concretas de seu desenvolvimento. (p. 68)
O único modo concreto de sabê-lo é levar o sujeito a fazer sua autobiografia. A narração da própria vida é o testemunho mais eloquente dos modos que a pessoa tem de lembrar. É a sua memória (p. 68)

2. TEMPO DE LEMBRAR

MEMÓRIA E SOCIALIZAÇÃO
Integrados em nossa geração, vivendo experiências que enriquecem a idade madura, dia virá em que as pessoas que pesam como nós irão se ausentando, até que poucas, bem poucas, ficarão para testemunhar nosso estilo de vida e pensamento. Os jovens nos olharão com estranheza, curiosidade; nossos valores mais caros lhes parecerão dissonantes e eles encontrão em nós aquele olhar desgarrado com que, às vezes, os velhos olham sem ver, buscando amparo em coisas distantes e ausentes. (p. 75)
Em nossa sociedade, os fracos não podem ter defeitos; portanto, os velhos não podem errar. Deles esperamos infinita tolerância, longanimidade, perdão, ou uma abnegação servil pela família. Momentos de cólera, de esquecimento de fraqueza são duramente cobrados aos idosos e podem ser o início de seu banimento do grupo familiar. (p. 76)

A VELHICE NA SOCIEDADE INDUSTRIAL
A velhice é uma categoria social. (p. 77)
Quando as mudanças históricas se aceleram e a sociedade extrai sua energia da divisão de classes, criando uma série de rupturas nas relações entre os homens e na relação dos homens com a natureza, todo sentimento de continuidade é arrancado de nosso trabalho. Destruirão amanhã o que construiremos hoje. (p. 77)
Quando se vive o primado da mercadoria sobre o homem, a idade engendra desvalorização. A racionalização, que exige cadências cada vez mais rápidas, elimina da indústria os velhos operários. (p. 78)
A criança sente voltar para si os reflexos de amor que sua imagem desperta. O velho, a contrário, não pode realizar sua imagem, concebê-la como é para ou outros. (p. 79)
Como deveria ser uma sociedade para que na velhice, o homem permaneça um homem? A resposta é radicalmente para Simone de Beauvoir: “Seria necessário que ele sempre tivesse sido tratado como homem”. (p. 81)

HISTÓRIA DE VELHOS
A civilização burguesa expulsou de si a morte; não se visitam moribundos, a pessoa que vai morre é apartada, os defuntos já não são mais contemplados. (p. 88)
Os agonizantes, diz Benjamin, são jogados pelos herdeiros em sanatórios e hospitais. Os burgueses desinfetam as paredes da eternidade. (p. 88) O narrador está presente ao lado do ouvinte. Suas mãos, experimentadas no trabalho, fazem gestos que sustentam a história, que dão assa aos fatos principiados pela suas voz. Tira segredos e lições que estavam dentro das coisas, faz uma sopa deliciosa das pedras do chão, como no conto da Carochinha. A arte de narrar é um a relação alma, olho e mão: assim transforma o narrador sua matéria, a vida humana. (p. 9
O narrador vence a distância no espaço e volta para contar suas aventuras num cantinho do mundo de onde suas peripécias têm significados:
Quando no mundo é mocidade,
verde a árvore, moça a natureza;
e cada ganso te parece um cisne;
e cada rapariga um princesa;

Venham minhas esporas, meu cavalo!
Vou correr mundo em busca da alegria!
O sangue moço quer correr, ardente,
e cada criatura quer seu dia...

Nas frias tardes da velhice, quando
é parda toda árvore que vive;
em que todo desporto é já cansaço,
e toda a roda corre na declive;

Oh! Volta, à casa, busca o teu cantinho,
vai, mesmo assim, cansado e sem beleza:
lá acharás o rosto que adoravas
quando era jovem toda a natureza.
(Holderlin, em trad. De Manuel Bandeira)
Meu dia outrora principiava alegre,
No entanto, à noite eu chorava. Hoje, mais velhos,
Nascem-me em dúvida os dias, mas
Findam sagrada, serenamente.

Outro poema, sem autor
Ficou no adulto a nostalgia dos sentidos novos:
Tendo perdido as ânforas da infância,
ânforas que tomadas ou aspiradas
derramavam no ar a substância
de que as coisas bebiam inebriadas;

tendo perdido o verde som dos bortos
descer pelas ramagens nos silentes
degraus, ainda vejo no sol posto
o fruto ou flor fechada e rescendente.

Sonho com as espigas debulhadas
Com grãos que a luz unia ou separava
Para cobrir o chão de áureo tecido

E meus pés afundavam na dureza
Macia desses grãos que me fugia
Sem que ouvisse no ar o seu gemido.
(Clemente Rebora)
Os amigos mortos revivem em ti
E as mortas estações

Versos ditos por um velho entrevistado por Ecléa
A mão tremula é incapaz
De ensinar o apreendido